Resposta do WRM referente à “Nota de esclarecimento” da Biofílica Ambipar

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A empresa Biofílica Ambipar enviou uma "Nota de Esclarecimento" em resposta a um artigo sobre REDD no Pará, Brasil, que foi publicado no Boletim do WRM. Gostaríamos de aproveitar esta oportunidade para fazer vários esclarecimentos sobre a grave acusação da empresa de que o WRM está publicando "informações falsas".

 

Após a publicação do artigo mencionado acima sobre REDD no Pará, Brasil, a empresa Biofílica Ambipar enviou e solicitou ao WRM a publicação de uma “Nota de esclarecimento”. Aproveitamos a oportunidade para prestar necessários esclarecimentos contra a grave acusação realizada pela empresa por meio da nota, de que o WRM estaria publicando “informações falsas”.

Esclarecemos que:

1. Sobre a alegação de que o WRM estaria usando “fontes anônimas” sem apresentar “evidências das alegações”, a Biofilica Ambipar parece ignorar completamente a realidade da Amazônia e do estado do Pará em particular, onde a violência contra defensores de direitos humanos com ameaças, perseguições e assassinatos é parte do dia a dia de membros de comunidades e de organizações de apoio, sobretudo em torno de conflitos fundiários com empresas e fazendeiros. Proteger testemunhas e seus depoimentos em regiões com conflitos fundiários como as onde atuam a Jari Florestal e Agropalma é, portanto, agir com responsabilidade. Além do mais, a prática de preservar fontes não pode ser confundida com falta de evidências.

2. Sobre a alegação da Biofílica Ambipar de que estaria seguindo procedimentos de consentimento livre, prévio e informado (CLPI) em seus projetos de carbono, declaramos que durante nossa visita na região do projeto REDD no Pará, os moradores nos pediram reiteradas vezes informações básicas sobre o que era mesmo REDD e em que consistia o projeto da Biofílica. A falta ou insuficiência de informação demonstra que a alegação da Biofílica Ambipar não procede. Na nossa percepção, assim como ocorre em vários outros projetos REDD que já visitamos no Brasil e em outros países, a única consulta que parece ter ocorrido foi sobre o tipo de benefício assistencial que a comunidade gostaria de receber, como oficinas ou cursos, acesso a serviços de saúde, acesso a eletricidade, etc. Porém nada disso está relacionado ao foco do projeto REDD, que afirma combater o desmatamento para gerar créditos de carbono a serem comercializados para empresas poluidoras.  Portanto, os membros de comunidades com quem conversamos não foram informados suficientemente para poder tomar uma decisão livre e informado sobre o mesmo.

3. Ainda a respeito da relação com as comunidades, nos causa espanto a desfaçatez com que a Biofílica Ambipar afirma em sua nota, no mesmo parágrafo, que o projeto REDD da Jari é desenvolvido com o devido respeito às comunidades locais, mas imediatamente depois atribui o problema do desmatamento à agricultura de subsistência e a pequenos agricultores. Trata-se de uma grande contradição dos projetos REDD em geral. Em vez de responsabilizar empresas como a Jari, que já desmatou milhares de hectares de florestas, os projetos culpam pelo desmatamento comunidades locais que dependem da floresta para sua sobrevivência e pouco ou nada contribuem para sua destruição. Nestes últimos anos, o fracasso do REDD tem sido confirmado mais uma vez em pesquisas acadêmicas contundentes, justamente mostrando que, via de regra, os projetos apresentam estimativas de desmatamento exageradas, atribuídas normalmente a pequenos agricultores de subsistência.

4. Outra alegação da Biofílica Ambipar que não pode ficar sem resposta é de que a “Jari Celulose não está sendo investigada, ou até mesmo acusada de qualquer tipo de crime ou má conduta como mencionado no texto do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais”. Tentando embasar essa afirmação, a Biofílica cita tão somente uma decisão judicial de uma vara local, de primeira instância, em Monte Dourado de 17 de dezembro de 2021, que teria confirmado que ”Jari Celulose é proprietária das terras onde está localizada e desenvolve suas atividades”.

Primeiro, vale ressaltar que há décadas a Jari tem usado a Justiça local para criminalizar comunitários, mas nunca levava esses casos para a vara agrária, mesmo sendo a matéria dessa competência. Essa realidade somente mudou com a criação da Promotoria Agrária e a Defensoria Pública.

Segundo, a Biofílica novamente parece estar em outro mundo que não a Amazônia brasileira, além de adotar inteiramente o discurso da Jari Florestal de que a empresa seria vítima em relação a “erros” no registro dos títulos das terras que ocupa. No entanto, reafirmamos que o que ocorreu no caso da Jari Florestal, da Agropalma e em tantos outros no Brasil faz parte de um processo histórico de apropriação ilegal de terras públicas – a grande maioria das terras na Amazônia são públicas –, também chamado de grilagem de terras.  As vítimas desse processo são as comunidades expulsas ou seriamente ameaçadas de perder o direito sobre suas terras, como têm ocorrido nos casos da Agropalma e Jari Florestal. As empresas têm responsabilidade e cometem crimes na medida em que afirmam ou agem para tentar transformar títulos fraudulentos em títulos legais.  

As ilegalidades em torno da questão fundiária das empresas com as quais a Biofílica Ambipar trabalha são apontadas por procuradores e promotores de justiça, especializados nesse assunto:

- Em 2005, o governo de estado do Pará moveu uma ação contra a Jari Florestal, pedindo que fosse declarado que a empresa não era proprietária das terras que buscava legitimar junto ao Instituto de Terras do Pará. (1) Na ação, o procurador do estado do Pará questiona a suposta propriedade do grupo Jari sobre a gleba que no passado era a Fazenda Saracura, na época uma área de 2,6 milhões de hectares. Segundo afirma um estudo histórico, “as circunstâncias nas quais [o suposto dono por volta de 1882] obteve essas áreas são rodeadas de relatos de fraudes eleitorais e nos cartórios da região, dando início a uma complicada situação fundiária até hoje sem solução.” (2) Por isso, a corregedoria do Tribunal de Justiça do estado de Pará promoveu o cancelamento das matrículas, transcrições, registros e averbações constantes sobre o imóvel [Fazenda Saracura], “(..) a fim de evitar a legitimação daquilo que a Jari fez transformando a Fazenda ‘num passe de mágica’ em propriedade”, como afirma o procurador na ação de 2005.

- A segunda Ação contra a Jari Florestal data de 2011 e tramita na Justiça Federal do Pará em base de denúncia do Ministério Público Federal contra o diretor do Grupo Jari. Ele teria praticado o crime de falsidade ideológica na apresentação de documentos fundiários para obter a autorização de exploração de madeira nativa. Esse plano de manejo florestal do Grupo Jari foi apresentado para o órgão federal ambiental IBAMA em 2001 para conseguir, naquele momento, a autorização para começar o corte de madeira. O Ministério Público Federal foi acionado em 2005 a partir de suspeitas do IBAMA de fraude nos documentos fundiários. (3)

- Desde 2017, a certificação FSC da Jari Florestal está suspensa, mas não pela questão fundiária. (4) A decisão foi tomada pela consultora de certificação SCS com base em uma auditoria especial realizada em 2015 depois que uma operação do IBAMA multou a Jari Florestal em 6 milhões de reais (US$ 1,6 milhões, na época) por irregularidades no manejo florestal, que apontou para a comercialização ilegal de madeira. Por falta de cooperação da empresa na investigação da certificadora, a SCS decidiu pela suspensão do selo. (5)

- Em 2022, foi ajuizada uma Ação Civil Pública da Promotoria de Justiça Agrária no estado do Pará, contra o Grupo Jari Celulose, pedindo que parte de seus títulos de propriedade fossem anulados. A Ação decorre da investigação de sucessivas práticas fraudulentas e ilegais relacionadas à emissão de títulos de propriedade e fraudes em registros públicos em uma área de cerca de 126 mil hectares, no município de Almeirim, desde 1937. (6)

- Recentemente, em setembro de 2023, em uma ação que pede que o Estado do Pará seja indenizado pelo uso ilegal de terra pública, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) denuncia a Jari Celulose por uma prática que pode ser caraterizada como uma grilagem de terras em sobreposição a outra, tratando-se novamente da Fazenda Saracura. Na Ação, a PGE afirma que “não existe a mínima dúvida de que a JARI CELULOSE não é proprietária da área, e, assim, sendo, se a terra não é de propriedade privada, necessariamente ela é pública, portanto, nada mais correto que a sua arrecadação e matrícula como terra do Estado do Pará.” E, de fato, isso já ocorreu, a Fazenda foi registrada como Gleba Arraiolos. Agora, a PGE denuncia as ações da Jari de continuar com tentativas de se apropriar da área, dando continuidade à prática de grilagem de terras públicas. E mais, a PGE denuncia também que a empresa vendeu e realizou lucros com créditos de carbono oriundos desta gleba de terra pública, portanto, uma prática ilegal e que implica seu parceiro de negócios de carbono, a Biofílica Ambipar. A PGA classifica essa venda ilegal como “grilagem de carbono”. (7)

Em relação à Agropalma:

- Desde 2016, a Polícia Federal no estado do Pará investiga a Agropalma pela suposta existência de um esquema criminoso. Documentos falsos teriam sido produzidos e usados por funcionários da empresa para a regularização das terras junto a órgãos públicos, e possível acesso a recursos oriundos de financiamento público em detrimento dos moradores que ali viviam.

Em março de 2018, foram cumpridos mandados de prisão temporária de quatro pessoas diretamente envolvidas no esquema, inclusive um funcionário da Agropalma, e mandados de busca e apreensão de materiais da empresa. Segundo afirma o delegado responsável pela investigação: "Indícios apontam para que sejam casos de grilagem (...). A Agropalma é a real beneficiária de todo o esquema criminoso". Ele afirma ainda que “(...). Eles vinham até um cartório em Belém [capital do Pará], faziam uma escritura falsa, toda uma cadeia dominial falsa, terminando sempre na empresa, como se a terra depois de todas essas vindas fosse por último vendida para a empresa. Depois voltavam ao município em questão e restauravam livros que supostamente estariam extraviados.” (8)

Segundo a investigação, uma portaria do Tribunal de Justiça do Pará autoriza que um livro de escrituras extraviado possa ser restaurado caso o interessado tenha um indício documental. Usando esse artifício, a Agropalma estaria fazendo esse restauro com base em documentos falsos, colocando as terras em nome da empresa e aumentando suas áreas. Em seguida, dava seguimento ao processo de regularização fundiária em órgãos públicos.

Em agosto de 2018, o Ministério Público do Estado do Pará ajuizou uma Ação Civil Pública na qual requer, entre outras providências, a nulidade e o cancelamento de registros imobiliários referentes a duas fazendas, Roda de Fogo e Castanheira, as quais somariam mais de 9.501 hectares, equivalente à área de quase 9 mil campos de futebol. Ambas teriam sido adquiridas pela Agropalma por meio de registros falsos, realizados num cartório fictício da cidade, e em tramitação no Instituto de Terras do Pará (Iterpa). (9)

5. Ainda em relação a Agropalma, inúmeros membros das comunidades quilombolas e indígenas que foram diretamente impactadas pela instalação da empresa e são hoje diretamente atingidos pelo projeto REDD em parceria com a Biofílica Ambipar relatam que a situação que eles enfrentam é desesperadora, devidamente publicado em vários artigos disponíveis e publicados nos últimos anos. (10) As terras que por direito são suas foram completamente bloqueadas pela Agropalma com cercas e portões de acesso. Ex-moradores precisam se identificar aos seguranças da empresa como se fossem estranhos em sua própria terra, até mesmo para visitar seus cemitérios. Isso é apenas uma mostra da opressão às comunidades mencionada pelo WRM.

Por fim, diante do convite da Biofílica Ambipar para visitar seus projetos, lamentamos o equívoco – ingênuo ou proposital – de que através de seus projetos é possível entender a realidade local. Consideramos impossível compreender o modo de vida e as opressões vividas pelas comunidades a partir de projetos que chegam de fora com o objetivo de “gerar valor para o mercado de ativos ambientais”, (11) por meio de uma mercadoria completamente alheia e abstrata às comunidades (os créditos de carbono) que gera lucro para os proprietários das empresas, igualmente estrangeiros ao seus territórios. É isso que tem levado (membros de) comunidades que dependem das florestas e que enfrentam projetos REDD dentro de seus territórios a procurarem e convidarem o WRM para visitar suas comunidades. Considerando nosso compromisso com essas comunidades, são esses os convites que o WRM costuma aceitar e priorizar.

(1) Ação declaratória de inexistência de domínio e impossibilidade reconhecimento de domínio fora da via administrativa, com pedido de liminar. Belém, 21/09/2005. Ibraim José das Mercês Rocha, procurador do Estado do Pará Coordenador da Procuradoria Fundiária, distribuição por conexão ao processo 2004100356-1.
(2) FOLHES, Ricardo; CAMARGO, Maria Luiza. LATIFÚNDIO. Conflito e desenvolvimento no Vale do Jari: do aviamento ao capitalismo verde. Agrária (São Paulo. Online), n. 18, p. 114-140, 2013.
(3) Inquérito Policial (Polícia Federal de Santarém: Número: 192/2004-DPF/SNM/PA e Processo na Vara Federal de Santarém: No. 423-06.2012.4.01.3902.
(4) FSC.
(5) SCS Global Services, 2015, Relatório de Avaliação Anual do Manejo Florestal e da Cadeia de Custódia desde a Floresta até a Saída do Produto.
(6) Ministério Público do Estado do Pará, 2021, Ação requer cancelamento de registros imobiliários realizados pela Jari Celulose.
(7) Tribunal de Justiça do estado do Pará, 2023. No. Ação 0814181-47.2023.8.14.0051.
(8) PF investiga esquema de grilagem de terras no Pará; Agropalma é alvo de operação, 2018.
(9) Ministério Público do Estado do Pará, 2018, I REGIÃO AGRÁRIA: MPPA requer cancelamento de registros imobiliários realizados pela Agropalma.
(10) Mongabay, 2022, Exportadora de óleo de palma acusada de fraude, grilagem de terras em cemitérios quilombolas;
Global Witness, 2022, A sombra do dendê;
Metrópoles, 2022, Ouro líquido: produção de dendê explora populações negras e indígenas no Brasil; and
Avispa Midia, 2023, Palma e Conservação: aliadas na expulsão de comunidades na Amazônia brasileira.
(11) Biofílica Ambipar Environment.