A loucura da queima de florestas e terras avança novamente na Indonésia, em ritmo acelerado. Até 16 de novembro, o Global Fire Emission Database (GFED) registrou 122.568 focos de incêndio em todo o arquipélago. O aumento no número de incêndios desde janeiro de 2015 é o maior, em comparação com 2003 e 2014. (1) Em termos de tamanho, os incêndios teriam queimado cerca de 21.000 quilômetros quadrados de áreas florestais e turfeiras (2) em apenas alguns meses, entre junho e outubro de 2015. (3)
Durante esse período, os imensos incêndios criaram problemas de saúde de longa duração para mais de 43 milhões de indonésios nas províncias. (4) No mesmo período, eles teriam matado pelo menos 31 pessoas; (5) dezenove delas, muitas das quais eram crianças em idade escolar, viviam nas províncias de Riau, Sumatra do Sul, Jambi, e Kalimantan Oeste, Central e do Sul. Outras ficaram presas entre incêndios na Ilha de Java. Não está nem um pouco claro se o governo vai pagar as despesas médicas desses milhões de pessoas nos próximos anos, decorrentes de impactos maiores e diferentes sobre a saúde, causados pela exposição excessiva à fumaça. A incapacidade do governo de prever e enfrentar os incêndios já foi até chamada de “crime contra a humanidade”. (6) Muito mais poderia ser dito sobre o sofrimento na vida concreta das pessoas.
O Ministério do Ambiente e Florestas publicou uma lista de mais de 286 empresas de plantações que são responsáveis, de uma forma ou de outra, pela propagação do fogo em suas áreas de concessão. (7) O número de empresas na lista do governo é substancialmente menor do que o das identificadas de forma independente, bem acima de 300. Os incêndios também aconteceram em áreas de exploração de madeira. De 299 empresas madeireiras registradas em 2010, 276 permanecem ativas. (8) A julgar por essa subestimação do número de empresas e da explícita falta de disposição do Governo para divulgar todas as empresas envolvidas nos incêndios deste ano, muitos grupos e indivíduos críticos na Indonésia expressaram sérias dúvidas sobre se o Governo vai tomar qualquer atitude contra essas empresas de plantações.
Por que a sensação de surpresa?
Uma queima tão enorme é inédita, ou inesperada? Na verdade, não. Os incêndios de 2015 têm um padrão anual semelhante e bem registrado que ocorre, pelo menos, desde 2003. (9) Então, onde, exatamente, o incêndio espetacular acontece este ano? Os dados sobre os focos de incêndio oriundos de observações feitas em imagens de satélite e em terra se ajustam de forma clara à distribuição espacial das concessões para plantações e extração de madeira, não só em Sumatra e Kalimantan – os conhecidos cinturões de plantações, mas também em muitas partes de Sulawesi (10), Molucas (11) e Papua (12).
Apenas para o dendê, em 2003, o governo indonésio estabeleceu a cifra total de “terras apropriadas” em 32 milhões de hectares. Isso é quase quatro vezes mais do que o total das terras ocupadas por plantações de dendezeiros em 2014, que foi de cerca de 8.25 milhões de hectares. (13) O problema que a indústria cria implica mais do que incêndios florestais e poluição do ar, que tomou Singapura, Malásia, Brunei e a maioria das regiões da Indonésia. Em comparação com os custos decorrentes do dano evidente para a saúde humana e a terra, o ganho monetário do governo com exportação e tributação é desprezível. O dendê certamente não é o único fator de perpetuação da crise. Além das subvenções do governo à exploração madeireira em grande escala, a Indonésia tem assistido à rápida ascensão de outras grandes plantações. Um exemplo disso é a expansão das plantações de madeira para celulose e biocombustíveis nas últimas duas décadas. Ambas são classificadas oficialmente, em indonésio, como hutan tanaman industri (“floresta de plantas industriais”) – uma perfeita tradução da definição paradoxal da FAO para floresta. Entre 1995 e 2014, o Governo indonésio alocou 8,7 milhões de hectares de florestas para plantações, apenas de madeira para celulose. (14) No ano passado, o governo visou dar um salto na produção de madeira, para chegar a 100 milhões de metros cúbicos por meio de uma maior expansão da área de plantio, para 15 milhões de hectares. (15)
Essa brutalidade do “desenvolvimento em ação” também tem sua dimensão Norte-Sul. Para isso, é útil examinar a correlação entre o desmatamento e a dívida (16). Entre 1970 e 1989, antes da crise da dívida, a perda de florestas na Indonésia estava estimada entre 12 e 24 milhões de hectares (17). Durante esse período de duas décadas, a velocidade do desmatamento aumentou 83%, registrando a terceira maior aceleração, depois de Brasil e Vietnã. (18) De 1989 a 2011, a dívida externa da Indonésia aumentou três vezes, passando de 15,7 bilhões de dólares para 45,7 bilhões. (19) Entre 1990-2010, a cobertura florestal encolheu ainda mais, em outros 27,8 milhões de hectares, mais do que a perda durante as duas décadas anteriores. (20) Como solução ao desmatamento industrial para a expansão das culturas de exportação, veio a nova proposta de preservar as joias da floresta, financiadas com subvenções e empréstimos para REDD+ e iniciativas semelhantes que poderiam andar juntas com a solução do corte industrial de florestas, sem que uma interferisse na outra. Nessa perspectiva, tanto o corte industrial quanto a “proteção do carbono florestal” tem conexão com o “financiamento do desenvolvimento”: diferentes esquemas para regimes fiscais diferentes.
Examinando mais de perto a dinâmica do desmatamento até final de 1990, o “Grupo de Trabalho Indonésio sobre Causas Subjacentes do Desmatamento e Degradação Florestal” sugeriu causas estreitamente entrelaçadas, como o paradigma de desenvolvimento adotado pelo governo da Indonésia – que é influenciado por empréstimos para o ajuste estrutural, empréstimos bilaterais e multilaterais, pressões comerciais internacionais e regionais, e a prescrição de crescimento econômico com recursos naturais esgotados. (21)
Desde o início de 2000, após a crise econômica asiática, alguns fatores novos complicaram a trama. Entre eles, a reorganização espacial do Estado, em conjunto com um regime de planejamento do território que facilita ainda mais a aquisição de grandes extensões de florestas para imensos projetos de infraestrutura, como os Corredores Indonésios de Desenvolvimento Econômico (MP3EI) e o projeto MIFEE, a privatização do setor energético, que ajudou a criar o problema do “subsídio” para os combustíveis fósseis, e um aumento no consumo de energia e matérias-primas, bem como uma maior expansão do uso de florestas para mineração, plantações para biocombustível, grandes projetos de extração de minérios ou geração de energias “renováveis”. Esses grandes investimentos, por sua vez, abrem mercados a projetos de compensação de carbono, compensação da biodiversidade e pagamento por serviços ecossistêmicos. Afinal de contas, os incêndios de 2015 são um desastre que vem se gestando há muito tempo, e não devem ser totalmente surpreendentes.
Os incêndios na Indonésia e o clima
Os incêndios de 2015 ocorrem às vésperas das negociações climáticas da ONU. No contexto político-climático em evolução, os principais atores do capital industrial e financeiro global conseguiram afastar os holofotes do esforço para mitigar a mudança climática – transferindo-os da redução da fixação mundial nos combustíveis fósseis para a avaliação financeira do carbono armazenado nas florestas e seu uso nos mecanismos fictícios de compensação. Em consequência, os desastrosos incêndios na Indonésia podem dar aos comerciantes e promotores do carbono – incluindo gestores estatais de países com florestas – uma linha distorcida de argumentação para que obtenham mais apoio aos mecanismos de compensação de carbono decorrentes de uso da terra, mudanças no uso da terra e florestas, como o REDD, enquanto menosprezam os impactos da combustão global de combustíveis fósseis.
De acordo com a análise do Global Fire Emission Database, os incêndios deste ano na Indonésia geram mais emissões do que as da queima de combustíveis fósseis no Japão em 2013, mais de duas vezes as da Alemanha, e mais do que o triplo das emissões da Indonésia no mesmo ano. (22) Durante os meses de setembro e outubro de 2015, as emissões diárias da Indonésia decorrentes dos incêndios excederam as geradas pela economia dos Estados Unidos. (23)
Os incêndios, no entanto, causaram muito mais do que emissões. Eles queimaram terras e territórios, e liberaram fumaças ameaçadoras. O que os principais relatórios não mostram é a ligação entre a expansão das plantações industriais e o dano permanente ao espaço vital e ao regime alimentar indígenas, o rápido aumento no consumo de combustíveis fósseis pelo país, para a importação de biomassa, a devastação de sistemas ribeirinhos vitais como resultado do elevado uso de águas superficiais e subterrâneas por parte das indústrias de mineração e imobiliária, bem como conflitos e despejos forçados. A expansão das plantações sempre foi uma causa do desmatamento, e não a sua solução. Se as plantações são apresentadas como exemplo de uma “economia de baixo carbono”, sabe-se o quanto essa economia pode ser ruim. A temporada de incêndios da Indonésia demonstra que esses problemas negligenciados não serão resolvidos incorporando-se a contabilidade da pegada de carbono à medição do PIB, nem pelo apoio financeiro internacional a projetos de compensação voluntária.
No atual regime climático internacional – anárquico na prática – segundo o qual, na ausência de um acordo vinculante para todos os países membros da ONU, cada país apresenta a contribuição que pretende dar, determinada em nível nacional (Intended Nationally Determined Contribution, INDC). Significa que o destino dos sistemas ecológicos mais precários, principalmente as florestas, fica sujeito, em grande parte, ao imperativo de manter a liquidez dos circuitos de capital através da representação economicista da Terra.
O documento de INDC indonésio – considerado inadequado pela Climate Action Tracker, uma avaliação independente dos compromissos e ações dos países para enfrentar a crise climática – menciona uma moratória sobre o desmatamento de florestas primárias e a conversão de turfeiras a partir de 2010-2016. (24) O documento não menciona que, mesmo que essa moratória tenha sido prolongada pela terceira vez desde 2011, as maiores empresas de plantações já acumularam centenas de milhares de hectares de turfeiras ao longo do tempo. (25) A drenagem sistemática das vastas turfeiras – que facilitou e acelerou a queima de terras – permaneceu intocada pela moratória. Da mesma forma, mecanismos e programas de compensação de carbono e financeirização da floresta, como o REDD, são visivelmente inócuos diante de um nível tão alarmante de concentração de terras e emissões terrestres. O fato é que, apenas na província de Sumatra do Sul, as concessões de plantações industriais para extração de madeira cobrem 80% de todas as turfeiras. As áreas de concessão registraram 13.348 focos de incêndio até 27 de outubro deste ano – todos na área onde a turfeira atinge a profundidade de três metros ou mais. (26) Na verdade, 46% dos incêndios entre 1º de agosto e 26 de outubro – o que se traduz em 51 mil eventos – ocorreram em turfeiras. (27) Em outras palavras, a conservação e a devastação das terras de turfa continuam sob o mesmo marco jurídico e político.
Algumas lições dos incêndios indonésios de 2015
O que podemos aprender com a temporada de incêndios de 2015 na Indonésia? Em primeiro lugar, eles revelaram que o problema não começou na primeira labareda. O fogo tem tudo para se repetir em qualquer ano no futuro – provavelmente com resultados iguais ou piores – porque é um método muito mais barato para preparar a terra para o plantio. Pensemos nisso como uma queimada corporativa... Em segundo lugar, a mesma receita para o desastre tem evoluído ao longo de mais de quatro décadas, à custa da capacidade de autorregeneração dos sistemas ecológicos terrestres e marinhos das ilhas, e da segurança humana dos cidadãos indonésios. Ao mesmo tempo em que os povos que dependem das florestas em todo o arquipélago foram muito atingidos, os incêndios reduziram em muito a resiliência dos sistemas ecológicos das ilhas e das gerações que ainda não nasceram. A ausência de medidas corretivas adequadas vai contra o compromisso do país de contribuir para a mitigação e a adaptação das alterações climáticas. Em função daquilo que o Estado tem ou não tem feito desde os primeiros anos de negociações climáticas da ONU, a menção a “metas” de redução de emissões no documento INDC indonésio dificilmente encobre a atitude, voltada ao dinheiro, dos gestores estatais ao lidar com a sua responsabilidade de mitigação e ao antecipar um fluxo maior de fundos internacionais para um longo e péssimo histórico de compromisso.
Hendro Sangkoyo
School of Democratic Economics, Indonésia
(2) http://qz.com/538558/indonesias-fires-have-now-razed-more-land-than-in-the-entire-us-state-of-new-jersey/
(3)http://nasional.kompas.com/read/2015/10/30/13070591/LAPAN.Tahun.Ini.Dua.Juta.Hektar.Hutan.Hangus.Terbakar
(4) Ministério do Meio Ambiente e Florestas, datas variadas.
(5) http://www.jpnn.com/read/2015/10/28/335432/Ini-Jumlah-Korban-Meninggal-karena-Kabut-Asap-versi-Mensos-
(6) http://www.theguardian.com/world/2015/oct/26/indonesias-fires-crime-against-humanity-hundreds-of-thousands-suffer
(7) http://www.thejakartapost.com/news/2015/09/19/govt-looks-suspend-licenses-forest-burning-companies.html
(8) http://www.hutan-aceh.com/system/publications/documents/000/000/059/original/Daftar_IUPHHK-HA_tahun_Mei_2014.pdf?1416937132
(9) http://www.globalfiredata.org/, ibid.
(10) http://manado.tribunnews.com/2015/10/14/luas-hutan-sulut-yang-ludes-terbakar-capai-5683-hektar
(11) http://www.antaranews.com/berita/524055/menteri-siti-nurbaya-konfirmasi-kebakaran-hutan-di-seram
(12) http://pusaka.or.id/potret-kebakaran-hutan-dan-lahan-di-merauke-2/
(13) USDA Foreign Agricultural Service (2009). Indonesia Palm Oil Production Growth To Continue. Commodity Intelligence Report.
(14) FWI, Jikalahari, WALHI Jambi, WBH (2014). Lembar Fakta 2014.
(15) Ibid.
(16) George, Susan (1992). The Debt Boomerang: How Third World Debt Harms Us All. Pluto Press,especialmente Cap. 1, p.1-34.
(17) Sunderlin and Resosudarmo (1996), citados em Anne Casson; Muliastra, Y.; Obidzinski, K. (2014). Large-scale plantations, bioenergy developments and land use change in Indonesia, Working Paper 170. Technische Universitat Darmstadt and CIFOR., p.49.
(18) Ibid., p.11.
(19) Dólar atual. http://www.indexmundi.com/facts/indonesia/external-debt-stocks
(20) Miettinen et al (2011), citado em Anne Casson; Muliastra, Y.; Obidzinski, K. (2014). Ibid.
(21) http://wrm.org.uy/oldsite/deforestation/Asia/Indonesia.html
(22) http://edgar.jrc.ec.europa.eu/overview.php?v=CO2ts_gdp1990-2014
(23) http://www.vox.com/2015/10/30/9645448/indonesia-fires-peat-palm-oil
(24) http://climateactiontracker.org/indcs.html
(25) http://sains.kompas.com/read/2015/05/13/18530831/Moratorium.Hutan.Positif.Diperpanjang
(26) http://www.mongabay.co.id/2015/10/30/jokowi-cegah-kebakaran-lahan-gambut-akan-dihutankan/
(27) http://www.bbc.com/indonesia/berita_indonesia/2015/10/151029_indonesia_data_perusahaan