Um projeto de redução de desmatamento no Paraná, Brasil, e a perseguição das comunidades

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Em 1999, anos antes do lançamento do mecanismo REDD, um dos primeiros projetos de carbono em áreas de floresta no mundo já havia iniciado. Tratava-se de um projeto da ONG brasileira SPVS (Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental), em parceria com a ONG norteamericana TNC (The Nature Conservancy). O projeto está sendo desenvolvido no litoral do estado do Paraná, na região Sul do Brasil, mais especificamente nos municípios de Antonina e Guaraqueçaba.

Com recursos de três empresas americanas, a General Motors, a American Eletric Power e a Chevron, a SPVS adquiriu áreas que, juntas, abrangem 18,6 mil hectares. Com atividades de preservação e restauração de áreas degradadas, a entidade afirma já ter removido 860 mil toneladas de carbono da atmosfera (1). Na lógica dos projetos REDD, os créditos advindos do carbono seriam aproveitados pelas empresas norteamericanas que financiam a SPVS para compensar parcela das suas emissões de poluentes. No entanto, não foram encontradas muitas informações no site da SPVS, nem no site das empresas Americanas, sobre os valores repassados por essas empresas à SPVS. As comunidades locais visitadas tampouco têm informação a respeito, o que já mostra uma falta de informação e transparência nesse aspecto.

O site da SPVS (2) divulga que, segundo o Serviço Florestal Brasileiro, o projeto está na categoria de “ações de REDD que têm gerado bons resultados”. No entanto, o projeto tem causado um impacto devastador sobre as comunidades locais residentes em torno das reservas da SPVS.

Breve histórico

Desde o processo de colonização da região, o litoral paranaense tem sido habitado por comunidades chamadas de ‘caiçaras’(3), além de comunidades indígenas e quilombolas. As comunidades se caracterizam por serem agricultoras e extrativistas. Elas convivem com a mata onde produzem seus alimentos de subsistência pelo sistema de pousio, com destaque para a produção da farinha de mandioca. Tiram da Mata Atlântica o palmito para se alimentar, cipó para fazer artesanatos e madeira para construção de moradias, cercas e canoas para a pesca. Praticam a caça e a pesca para a alimentação de suas famílias.

Portanto, percebe-se que essas comunidades dependem profundamente da floresta com a qual construíram uma convivência harmoniosa. Prova disso é o fato de que essa região situa-se entre as mais preservadas do bioma Mata Atlântica no Brasil, o mais devastado do país.

As comunidades nunca se preocuparam em registrar ou cercar as terras onde moram, já que costumavam considerar esse território como uma área de uso comum, de usufruto de todos/as. As terras são, na sua maioria, devolutas e sobre as quais as famílias sempre tiveram suas posses que foram repassadas de geração em geração. Trabalhavam no território, às vezes de forma individual, por família, e às vezes coletivamente, nas roças itinerantes.

A chegada dos fazendeiros

Uma primeira grande mudança que ocorreu na região a partir dos anos 1960 foi a chegada de madeireiras e, sobretudo, de fazendeiros. Os últimos começaram a registrar e se apropriar das terras, muitas vezes utilizando-se da grilagem, prática comum nas áreas rurais no Brasil. Em conseqüência disso, as famílias das comunidades foram ameaçadas e muitas expulsas de suas áreas. Os fazendeiros usavam ‘jagunços’ e até mesmo búfalos para invadir e tomar as propriedades dos pequenos agricultores. Os fazendeiros nessa região optaram pela criação do búfalo em vez do gado bovino por se tratar de um animal mais rústico e, portanto, mais adequado para conviver com o ambiente local nas áreas desmatadas, muitas vezes alagadas e, em geral, de difícil acesso e locomoção.

A chegada da SPVS: as promessas

No final dos anos de 1990, a SPVS chegou à região e começou a comprar grandes áreas das mãos dos fazendeiros. Ela também conseguiu comprar algumas áreas de posseiros, sobretudo daqueles que se sentiram mais pressionados pela ação da ONG. Segundo os moradores, inicialmente a SPVS empregou 47 pessoas da comunidade, pagando pouco mais de um salário mínimo. Três das funcionárias eram mulheres com salários ainda menores que os dos homens. A SPVS prometeu que os empregos durariam cerca de 40 anos, o mesmo tempo de existência previsto para o projeto. A maioria dos funcionários foi empregada como guarda florestal. Além do emprego, a SPVS prometeu melhorias na renda e na vida das famílias.

Os impactos do projeto sobre a comunidade

No entanto, a chegada da SPVS constituiu um verdadeiro golpe para as comunidades. Foi a partir da compra das terras pela SPVS que as comunidades nessas áreas e do entorno começaram a perder o acesso à floresta abundante na região e aos rios, ou seja, começaram a perder sua liberdade, sua autonomia, seu direito de ir e vir e o direito do seu modo de vida. Perderam até mesmo o direito de cortar árvores nativas da própria propriedade, como foi o caso de um morador que plantou para sua sobrevivência uma área com palmito-juçara, uma árvore nativa. Hoje, ele não pode mais cortar essas árvores, mesmo que estejam localizadas em sua própria terra.

Para amedrontar as comunidades, a SPVS começou, junto com a polícia ambiental do estado do Paraná, chamada de ‘Força Verde’, a perseguir as comunidades. Essa violência continua até hoje, pois a ‘Força Verde’ invade até mesmo as casas das pessoas, sem que possua a devida autorização para isso:

Um morador de uma das comunidades conta que:

“Queriam fazer parceria com nós ali. Nós até aceitemos de fazer uma parceria (..) mas aí de repente eles começaram a mandar as guardas também. Passou mais ou menos uns três dias aí, começaram a mandar os guardas lá em casa. Entravam dentro da casa dizendo que tinha coisas escondido ali, tanta coisa errada, e se tivesse fechada a porta, entrava para dentro. Batiam na porta, eles falaram que era ordem de juiz, não estavam nem ligando, mas entravam assim mesmo. (..) a Força Verde, aí entrava ali, isso várias vezes, não era uma nem duas vezes, muitas  vezes ali. (...) Nossa casa ali, se tiver algum tipo de arma aí, que prendesse tudo, levasse (...) Não podia ter um facão que eles queriam levar, queriam tudo (...) Não apresentavam nada, só chegavam e estavam dentro de casa lá. Nessa hora não estava em casa quando eles chegavam, com revolver em punho. Meu cunhado estava deitado na cama, a porta estava encostada assim, meu pai estava lá fora. Eles entravam para dentro, empurraram a porta, bateram até na porta até sair a trancazinha da porta. Ainda o meu cunhado estava meio adoentado com gripe e dor de cabeça. Já levou o revólver em punho, meu cunhado disse: “o que é isso rapaz, estou adoentado aqui, você entra desse jeito aí” (...). É dessa maneira que eles chegaram várias vezes em casa. E a parceria?  Desse jeito não adianta parceria; parceria para te incomodar. Então, não adianta, melhor suspender. E eles queriam enganar muita gente desse jeito.

Uma outra moradora conta que o marido foi algemado em casa pela Força Verde, que disse que era o “serviço” deles.  Em outro momento, quando ele cortou uma árvore para fazer uma canoa, ficou preso durante 11 dias. Para sair, teve que pagar fiança. Hoje vivem com dificuldades e medo: se ficar em casa, não tem como sobreviver, mas se o marido sai para conseguir algum trabalho fora, a esposa e as crianças ficam numa situação de medo e insegurança, o que mostra também que os impactos da perseguição e do projeto da SPVS afetam as mulheres e as famílias como um todo.

Hoje, muitas famílias vivem traumatizadas e a situação é de tamanha gravidade que várias acabaram desistindo de continuar vivendo no local onde moram há gerações. Famílias que produziam e vendiam farinha compram hoje tudo para comer, inclusive a farinha. Com isso, mudou a qualidade da alimentação, um dos motivos pelos quais a saúde das pessoas não é mais a mesma, segundo relatos dos moradores. Hoje, parte da população local tem hipertensão arterial, estresse, entre outros problemas de saúde. Além disso, como há um esvaziamento das comunidades, a classe média de Curitiba tem comprado casas e áreas para passar seus finais de semana e feriados.

As promessas de melhoria das condições de vida e geração de renda resultaram em algumas iniciativas, que foram se esvaziando ao longo dos anos. Um trabalho de organização de um grupo de mulheres em torno do propósito de gerar renda através de corte-costura funcionou algum tempo, mas hoje está parada, segundo os depoimentos de várias mulheres das comunidades. E a promessa de emprego por parte da SPVS tampouco foi cumprida. Ex-empregados das comunidades contam que a grande maioria foi demitida, restando apenas 7 funcionárias. Apenas um trabalho de produção de mel parece ter dado certo, porém não envolve diretamente as comunidades mais impactadas.

A luta das comunidades

No entanto, as comunidades buscam resistir à pressão da SPVS que só pode ter como objetivo a expulsão de todas elas. Uma delas organizou-se de forma especial. No início da década passada, em uma das localidades no município de Antonina, um fazendeiro queria vender sua área para SPVS, o que poderia levar à expulsão de todas as famílias que viviam no local. Elas se organizaram e com o apoio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), realizaram, em 2003, uma ocupação. Atualmente, há 20 famílias no local que lutam pela oficialização do acampamento, com o nome do ambientalista José Lutzenberger, para que seja um assentamento da reforma agrária.

Ao longo da luta árdua dessa comunidade contra as pressões do fazendeiro, da SPVS e de órgãos ambientais, foram denunciados crimes ambientais cometidas pelo próprio fazendeiro, como o desvio de um rio e o uso indiscriminado de agrotóxicos, os quais não foram ouvidos pelos órgãos ambientais. Foram realizados pequenos trabalhos de reflorestamento e, a partir da opção pela agroecologia, foi escolhida a proposta de trabalhar coletivamente através do sistema agroflorestal, como proposta principal para futuramente gerar renda para as famílias. Além disso, cada uma das famílias terá sua área individual para sua subsistência básica.

A área do acampamento faz limite com a área da SPVS, mas, segundo os moradores, as áreas de florestas sob controle das comunidades estão em melhores condições, se comparadas com as áreas da SPVS.

O futuro

Perto de uma das comunidades encontra-se uma casa de pesquisa no meio da floresta onde a SPVS faz pesquisas das espécies da Mata Atlântica, segundo contam moradores. Para isso, entrou numa parceria com o banco privado HSBC, através da ‘Parceria de clima da HSBC’(HSBC climate partnership). Segundo o site da HSBC, trata-se de um ‘programa ambiental inovador’ para ‘dar continuidade à preservação do planeta’. (4)

Enquanto isso, o futuro das comunidades está extremamente ameaçado se a proposta de preservação das áreas florestais da SPVS, que conta com todo o apoio do aparelho estatal, principalmente da área ambiental e da área policial, continue dominando na região. É absolutamente urgente que parem o abuso e a perseguição das comunidades. O que ocorre nessa região, conforme testemunham os moradores, são violações graves dos direitos humanos, inclusive sociais, culturais e ambientais.

Uma moradora conta que:

Sim, a gente sempre manteve a floresta, só que às vezes a gente precisa derrubar alguma coisa também, às vezes a gente precisa construir uma casa, precisa tirar uma madeira. No caso não pode, aí fica difícil (...) Antes a gente fazia para plantar roça onde hoje você não pode mais. No caso, quando a SPVS entrou, acabou tudo. Onde meu pai morava, hoje não pode mais. Que antes ele fazia roça, ele plantava mandioca, ele plantava feijão, hoje ele não tem nada mais, acabou tudo. (..) Antes não comprava feijão, não comprava milho, muitas verduras plantava que podia desmatar um pouco, que não mata alta mais baixa ele roçava, plantava, ele colhia a maioria das coisas da terra. E hoje não pode plantar, tudo tem que comprar. O arroz e o feijão que ele plantava bastante, a mandioca (..) antes a gente não via enfermidade, e hoje a maioria vive até doente, muitos. (...) Eles falaram, prometeram, que iam ajudar meu pai, mas até hoje a gente nunca viu nenhuma ajuda, sempre piorou, porque no caso, eles falaram que iam ajudar e depois veio a Força Verde e ainda queriam levar meu pai preso. Essa é a ajuda deles.

Para atacar o aquecimento global, é urgente também que as empresas norteamericanas envolvidas no projeto da SPVS comecem imediatamente a reduzir suas emissões de carbono, em vez de compensar emissões por meio de compra de créditos de carbono vindos de uma área onde o povo é castigado por algo que deveria ser motivo de respeito: sua prática de conservação da floresta.

(1) http://www.revistavisaoambiental.com.br/site/index.php?
option=com_content&view=article&id=643:projeto-de-carbono-colabora-com-o-
desenvolvimento-sustentavel-de-comunidades-no-parana&catid=5:noticias&Itemid=5

(2) http://www.spvs.org.br/download/boletins/bol_jan10.html :
(3) Comunidades que surgiram da miscigenação genética e cultural entre os primeiros colonizadores portugueses e indígenas que viviam no litoral. Vivem de forma isolada, praticando diferentes atividades para sua sobrevivência. (fonte:http://www.ilhabela.com.br/CULTURA/index.html)
(4) http://www.hsbc.com.br/1/2/portal/pt/sobre-o-hsbc/sustentabilidade/meio
-ambiente/hsbc-climate-partnership