Uma agenda unificada dos povos diante da mudança climática
Com a Conferência dos Povos sobre a Mudança Climática e os Direitos da Mãe Terra, o governo plurinacional da Bolívia habilitou a geração de um fato político transcendente: os movimentos sociais, com uma representatividade realmente importante, elaboraram uma agenda própria e unificada com uma posição radical diante da mudança climática- radical porque foi focalizada na raiz do problema. Tal unificação também foi fruto, certamente, do amadurecimento de um longo processo de integração de diversos movimentos sociais, na busca de estratégias de solução genuína não apenas para a mudança climática como também para as diversas crises emergentes- energética, alimentar, financeira, perda de biodiversidade, etc. – que não fazem outra coisa a não ser evidenciar uma grande crise estrutural.
O Acordo dos Povos, a declaração final que resume as conclusões de 17 grupos de trabalho integrados por todos aqueles que se inscreveram e assistiram à Conferência, reafirma que não se trata de discutir a mudança climática “como um problema reduzido à elevação da temperatura”; é preciso questionar sua causa.
Nesse sentido, todas as conclusões dos grupos de trabalho partilham a idéia expressa no Acordo da seguinte forma: enfrentamos “a crise terminal do modelo civilizatório patriarcal baseado na submissão e destruição de seres humanos e natureza que se acelerou com a revolução industrial”. O sistema capitalista, com sua lógica de crescimento ilimitado, ultrapassou em mais de 30% a capacidade do planeta para se regenerar e, se continuar o ritmo atual de exploração excessiva, até 2030 seriam necessários os recursos de dois planetas, concluiu o Grupo de Trabalho 2 ‘Harmonia com a Natureza para o Bem Viver’.
Por sua vez, o Grupo de Trabalho 1 ‘Causas estruturais’ alertou que toda alternativa de vida “deve nos levar a uma profunda transformação civilizatória já que sem ela não seria possível a continuidade da vida no planeta terra. A humanidade está diante de uma grande disjuntiva: continuar no caminho do capitalismo, do patriarcado, do progresso e da morte, ou empreender o caminho da harmonia com a natureza e o respeito à vida”
Harmonia, integração, inter-relação, complementaridade, equidade, justiça são conceitos que se repetem nas conclusões dos grupos. A necessidade de conservar- para alguns-, recuperar ou encontrar- para outros- um vínculo de pertença com a natureza, com a Mãe Terra, é uma constante. A Mãe Terra é um ser vivo, com direitos. É assim que o Grupo de Trabalho 3 ‘Direitos da Mãe Terra’ elaborou o Projeto de Declaração Universal de Direitos da Mãe Terra, cujo Artigo 1 define a Mãe Terra como ser vivo com direitos explicitados no Artigo 2, e estabelece no Artigo 3 as obrigações dos seres humanos em relação a ela.
Essa terra viva tem filhos diletos que conviveram ancestralmente com ela, ligados em sua sabedoria e espiritualidade, e que sofrem na própria pele a agressão. “As violações contra nossos solos, florestas, flora, fauna, biodiversidade, rios, lagos, ar e o cosmos são golpes contra nós mesmos... Não são respeitados nossos territórios, particularmente dos povos em isolamento voluntário ou em contato inicial, e sofremos a mais terrível agressão desde a colonização só para facilitar o mercado e a indústria extrativa”. Assim falam os povos indígenas no Grupo de Trabalho 7 ‘Povos Indígenas’.
Mas além da denúncia, os Povos Indígenas têm muito para oferecer. Eles têm tecnologias e conhecimentos próprios, sabedoria ancestral que propõem integrar nos planos e metodologias educacionais. E têm seu conceito do “Bem Viver”, que o Grupo de Trabalho 9 ‘Visão compartilhada’ recolhe ao explicar: “A visão compartilhada é um mundo no qual todas as pessoas buscam “viver bem” em harmonia com a Mãe Terra e os outros seres humanos.” “A visão compartilhada do “viver bem” respeita os princípios de interdependência e responsabilidade e portanto pratica a reciprocidade, complementaridade, solidariedade, equidade e a vida em harmonia com a Mãe Terra e com os outros. É uma sociedade global de povos e movimentos sociais, que se levantam em solidariedade para mudar o sistema que está colocando o planeta em risco. Esta mudança surgirá de revalidar o conhecimento tradicional que respeita a natureza em todos os cantos do planeta.”
Mas essa mudança também virá do fato de os responsáveis honrarem suas responsabilidades. Para estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa de forma a limitar o incremento da temperatura média global a um nível máximo de 1ºC, os países industrializados ricos, que colonizaram o espaço atmosférico, devem reduzir as emissões em seus países sem usar os mercados de carbono. O Grupo de Trabalho 10 ‘Protocolo de Kioto’ reafirma que “as reduções dos países desenvolvidos devem ser atingidas domesticamente sem o uso do mercado de carbono ou outros mecanismos de desvio que permitam driblar a adoção de medidas reais para a redução de emissões de gases de efeito estufa”. O grupo reclama uma profunda revisão do mecanismo de mercado criado pelo próprio Protocolo de Kioto, que permitiu que os países industrializados do Norte, principais responsáveis da lenta morte do Planeta Terra, eludissem suas verdadeiras obrigações de redução de gases de efeito estufa.
Esses países, que só representam 20% da população mundial, “se apropriaram do espaço atmosférico da Terra através da emissão da vasta maioria das emissões históricas de gases de efeito estufa”, gerando assim uma dívida climática histórica. Assim está expresso nas conclusões do Grupo de Trabalho 8 ‘Dívida Climática’, que além disso propõe que o enfoque dessa dívida “ deve ser não apenas de compensação econômica mas também principalmente de justiça restaurativa- ou seja, restituindo a integridade às pessoas e aos membros que formam uma comunidade de vida na Terra”. O Grupo responsabiliza não só os países industrializados do Norte, como também as empresas transnacionais e especuladores financeiros, que também têm a responsabilidade “de compensar pelos desastres que provocaram”.
As medidas reclamadas aos países chamados “desenvolvidos” implicam, em especial, a modificação de “seus modelos de vida e desenvolvimento, anulando a dívida externa de forma imediata, detendo a produção de material bélico, trocando o uso de energia fóssil por energia renovável e modificando os sistemas financeiros, econômicos e sociais internacionais, que perpetuam os modelos atuais”.
Isso deixa de lado as falsas soluções dos mecanismos do mercado de carbono, condenados nas conclusões de vários grupos. O Grupo de Trabalho 15 ‘Perigos do Mercado de Carbono’ é bem claro ao alertar sobre o categórico fracasso do mercado de carbono já que “as emissões de gases de efeito estufa (GEI) aumentaram em 11,2% nos países desenvolvidos no período 1990- 2007”. Por outro lado, o mundo foi testemunha de uma crise financeira que não fez outra coisa a não ser demonstrar “que o mercado é incapaz de regular o sistema financeiro, que é frágil e inseguro diante da especulação e o surgimento de agentes intermediários”. A conclusão é óbvia: “seria uma irresponsabilidade deixar em suas mãos [do mercado] o cuidado e a proteção da própria existência humana e de nossa Mãe Terra”.
Também são rejeitadas outras falsas soluções, como a energia nuclear, a engenharia dos transgênicos, a geo- engenharia, as mega empresas, os agrocombustíveis e toda mudança do uso do solo com destruição dos ecossistemas existentes para transformá-los em enormes extensões de plantações de árvores de espécies exóticas de rápido crescimento (eucalipto, pinheiro, acácia, etc.) para cumprir a função de “sumidouros de carbono”. “As plantações de árvores sob o mecanismo MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo) no contexto do protocolo de Kioto são uma falsa solução que ameaça florestas e selvas nativas e viola os direitos dos Povos. As plantações florestais para créditos de carbono bem como para agrocombustíveis são uma falsa solução para a mudança climática, concluiu o Grupo de Trabalho 14 ‘Florestas’ que também se manifestou com contundência contra a tentativa de incluir as florestas no mercado de carbono: “Condenamos os mecanismos de mercado neoliberal, como o mecanismo de REDD (Redução de emissões pelo desflorestamento e degradação de florestas) e suas versões + [plus] e ++ [plus plus], que estão violando a soberania de nossos Povos e seu direito ao consentimento livre, prévio e informado, bem como a soberania dos Estados nacionais porque este mecanismo está violando os direitos, usos e costumes dos Povos e os Direitos da Natureza”.
“Requeremos, em seu lugar, a obrigação dos países poluidores a reconhecer sua dívida histórica ecológica e climática, e em decorrência, transferir de maneira direta os recursos econômicos e tecnológicos para pagar a restauração e manutenção das florestas e selvas, em favor dos Povos, nações e estruturas orgânicas ancestrais indígenas, originárias, camponesas e assim garantir o financiamento real dos planos de vida integrais e o viver bem. Isso deverá ser uma compensação direta e adicional às fontes de financiamento comprometidas pelos países desenvolvidos, fora do mercado de carbono e nunca servindo como as compensações de carbono” (offsets).
“O futuro da humanidade está em perigo”, conclui o Acordo dos Povos, “e não podemos aceitar que um grupo de governantes de países desenvolvidos queira definir por todos os países como tentaram fazer infrutuosamente na Conferência das Partes de Copenhague. Esta decisão cabe a todos os povos. Por isso é necessária a realização de um Referendo Mundial, plebiscito ou consulta popular sobre a mudança climática em que todos nós sejamos consultados sobre: o nível de reduções de emissões que devem fazer os países desenvolvidos e as empresas transnacionais; o financiamento que devem providenciar os países desenvolvidos; a criação de um Tribunal Internacional de Justiça Climática; a necessidade de uma Declaração Universal de Direitos da Mãe Terra e, a necessidade de modificar o atual sistema capitalista”.
Com esta agenda os movimentos sociais deverão continuar construindo uma solução genuína para a mudança climática e uma saída para o sistema que a originou.
Os documentos comentados estão disponíveis no site oficial da Conferência:http://cmpcc.org
Por Raquel Núñez, WRM, correio electrônico: raquelnu@wrm.org.uy