A partir maio de 2023, o Uruguai enfrentou uma crise hídrica sem precedentes durante mais de 60 dias. Quase metade da população do país, que vive na região metropolitana, ficou sem acesso a água potável. As razões dessa crise foram muitas. A mais óbvia e mais mencionada nos meios de comunicação e pelos políticos da vez foi a seca prolongada que o país atravessou, mas nós, das organizações sociais, sabemos que foram a falta de planejamento e a má gestão do território. Embora o abastecimento de água potável tenha sido restabelecido, a crise hídrica que o país atravessa não está resolvida.
Plantações industriais de árvores
O Uruguai tem apenas 17 milhões de hectares de território, mas quase 1,3 milhão de hectares de plantações industriais de árvores, a grande maioria de duas espécies: pínus e eucalipto. Um punhado de atores corporativos opera no país, incluindo a empresa finlandesa UPM, a sueco-finlandesa Stora Enso, a chilena Arauco, além de diversos fundos de investimento do setor, como GFP (Global Forest Partners), BTG Pactual Timberland Investment Group, The Rohatyn Group, Liberty Mutual e Stafford. Além disso, a UPM e a Montes del Plata (que surgiu da fusão da Arauco com a Stora Enso em 2009) instalaram três fábricas de celulose, com produção total anual de aproximadamente 5 milhões de toneladas.
Desde que o modelo de monocultura de árvores começou a se expandir no país, os efeitos negativos têm sido significativos. Um dos mais difíceis, que os produtores rurais que ficaram completamente cercados por plantações tiveram de suportar, foi o impacto sobre os cursos de água. Muitos e muitas delas tiveram que abandonar suas terras por não conseguir enfrentar esse impacto e não poder produzir em suas terras. Diante da negação dos impactos por parte das empresas responsáveis pela expansão das monoculturas, a Universidade da República teve um papel importante ao contribuir com dados para o debate.
Estudos acadêmicos alertam para uma diminuição de 50% nos fluxos de água quando são plantadas monoculturas de árvores em nossas bacias hidrográficas (1). Mesmo atualmente, pesquisas realizadas por empresas de plantaciones industriales de árboles reconhecem que essa redução chega a 30% (2 e 3).
Apesar desses dados, as árvores continuaram a ser plantadas em grande escala nas bacias no Uruguai, substituindo os campos, que fazem parte do bioma Pampa e se estendem até o sul do Brasil e partes da Argentina e do Uruguai. Os campos são ecossistemas extremamente ricos em biodiversidade e cumprem funções vitais (4). Substituí-los por monoculturas de soja ou eucalipto é tão criminoso quanto derrubar a Amazônia para plantar monoculturas de dendê (5).
Desde o início da década de 1990, a REDES – Amigos da Terra Uruguai – juntamente com outras organizações e representantes da academia, vem alertando sobre os impactos que as grandes monoculturas de árvores plantadas em ecossistemas campestres têm sobre a água. Foram trazidos ao debate estudos e casos de legislações de outros países, como África do Sul e Espanha, que tentaram impedir a diminuição da vazão hidrológica.
A evidência
Assim, na década de 90 se iniciaram estudos nacionais, principalmente na academia, mas também por parte de uma empresa do setor, para comparar o impacto sobre o ciclo hidrológico de uma bacia com monoculturas de árvores e o comportamento hídrico de uma bacia com pastagens ou campos. Depois de décadas, os resultados foram alarmantes.
Um estudo que inclusive foi financiado por uma empresa de plantaciones industriales de árboles, a norte-americana Weyerhauser (que vendeu suas operações no Uruguai em 2017), determinou que, em bacias com plantações, “a vazão tem perdas que ficam entre 25% e 30%” (2 e 3).
Entretanto, outros estudos (dos quais participou a Universidade da República) chegaram a resultados que indicam uma redução de até 50% na vazão de água nas bacias onde houve intervenções com monoculturas (6).
Embora haja dados disponíveis, muito pouco se fala sobre esses impactos. Pior ainda, não são tomadas medidas para prevenir ou conter esses impactos, mesmo apesar da recente crise hídrica.
Durante os 12 meses em que se prolongou a seca no país, os burocratas responsáveis por essas questões não mencionaram, muito menos analisaram, o papel das grandes plantações de árvores ou das monoculturas de soja entre as causas da falta de água em rios e arroios.
Também é preocupante a falta de vontade política para analisar e colocar na mesa os resultados dos estudos científicos acerca do impacto da florestação sobre a vazão dos nossos rios, arroios e aquíferos, apesar de todos os relatórios nacionais e internacionais alertarem que os eventos extremos vão se tornar cada vez mais frequentes devido às mudanças climáticas.
A organização REDES – Amigos da Terra Uruguai, há décadas milita em defesa da água e denuncia o avanço das plantações de árvores. A bacia do rio Santa Lucía, de grande importância porque fornece água potável a 60% da população do país, está sendo florestada, e tudo indica que a área vai se expandir. Temos insistido junto às autoridades na necessidade de frear a expansão, alterando a definição dos chamados “solos de prioridade florestal”, ou seja, aqueles onde são permitidas plantações industriales de árboles, mas cuja classificação foi feita com base em parâmetros obsoletos que não levam em consideração, por exemplo, o impacto sobre as bacias hidrográficas. Mas essas denúncias não tiveram eco.
A área total da bacia do rio Santa Lucía é de 1.347.000 hectares. Atualmente, 47.362 hectares plantados (ou seja, 3,5% do total) estão localizados principalmente nas nascentes do noroeste da bacia. Como os solos de prioridade florestal somam 161.522 hectares (12% da bacia), a expansão das monoculturas na bacia irá avançar. Além disso, continua havendo intensa pressão das empresas de plantaciones industriales de árboles, principalmente da Montes del Plata, para declarar um tipo de solo como sendo de prioridade florestal, ou seja, onde as plantações podem ser expandidas. Atualmente, o plantio de árvores nesse tipo de solo não é permitido devido aos impactos que geraria, mas empresas como a Montes del Plata têm pressionado para que eles sejam reclassificados. Caso ocorra essa reclassificação do solo, outros 346.178 hectares (25%) poderiam ser florestados, que também estão situados principalmente nas nascentes da bacia (7).
O futuro
As mudanças climáticas geraram um aumento na frequência de eventos extremos com períodos significativos de seca (8) e têm fortes impactos sobre o ciclo hidrológico através de alterações na precipitação, na evapotranspiração e na umidade do solo devido ao aumento das temperaturas, que se somam a efeitos anteriores à crise ambiental. A recente seca foi um alerta sobre a mudança drástica que é urgente para preservar a água em terras uruguaias.
Portanto, é importante implementar planos de gestão ambiental e ordenamento territorial das bacias hidrológicas em todo o território nacional, principalmente na bacia do rio Santa Lucía. Reconhecer o impacto significativo das plantações industriais sobre a captação de água nas bacias hidrográficas e os consequentes impactos sociais e ambientais que isso tem para a população deveria ser uma prioridade para o governo do Uruguai.
Maria Selva Ortiz e Marcel Achkar, integrantes da Redes – Amigos da Terra Uruguai.
* Este artigo foi adaptado da versão originalmente publicada no semanário Brecha, em 17/2/2023
(1) Vazão hídrica: volume médio de água que flui pelo leito de um rio.
(2) Facultad de Ingeniería, Facultad de Agronomía, Eufores S. A., Forestal Oriental S. A. (2016). Red de microcuencas experimentales para la obtención de indicadores hidrológicos y edáficos de plantaciones forestales. ANII, Convocatoria Alianzas para la Innovación, proyecto ALI_1_2011_1_2349. Relatório final.
(3) Femi, M. J. “Ríos de información”, revista En Contexto, F29.
(4) Jobbágy, E. G. et al. Forestación en pastizales: Hacia una visión integral de sus oportunidades y costos ecológicos. Agrociencia. (2006) Vol. X N° 2 pág. 109-124.
(5) La Diaria, 2022, Pastizales, un ecosistema olvidado a la hora de hablar de conservación.
(6) Brecha, 2023, El impacto de la forestación en el déficit hídrico.
(7) División de Información Ambiental, Dirección Nacional de Medio Ambiente, Ministerio de Vivienda, Ordenamiento Territorial y Medio Ambiente (2019). Mapa de uso/cobertura del suelo de la cuenca del río Santa Lucía.
(8) Vários autores (2019), Climate Change and Land: an IPCC special report on climate change, desertification, land degradation, sustainable land management, food security, and greenhouse gas fluxes in terrestrial ecosystems.