Que é a felicidade? Poderíamos ter muitas respostas e poderíamos até considerar que ser feliz é um assunto estritamente pessoal. Todavia, pelo menos dois aspectos da felicidade são universais: todas e todos a queremos, e dificilmente alguém pode declarar-se feliz se tiver fome, frio, falta de casa, falta de acesso ao conhecimento construído e acumulado pela humanidade.
Como estamos em termos de ‘coeficiente de felicidade’? Desde o ponto de vista de ser mulher, muito mal. Desde o ponto de vista de ser camponesas e trabalhadoras, muito mal. Desde o ponto de vista de ser mães, mal.
Mal, por que?
Dentro de casa, o serviço doméstico ainda é considerado “tarefa feminina”, onde os homens que dizem já haver superado o machismo “ajudam” a fazer, mas não tomam essas tarefas como suas. As posições sexuais comumente femininas são usadas para achacar e minimizar pessoas, por exemplo alguns refrões de torcedores no futebol. Ser “mulherzinha” é ser nada, é ser escravo, é ser objeto.
Ser mãe não é apenas “padecer no paraíso”. Os locais de trabalho, as escolas, espaços públicos e privados, mui poucos disponibilizam cirandas infantis para que as mães possam estar efectivamente nas atividades, sejam quais sejam. Ao buscar trabalho, a pergunta: “tens filhos?” pode ser o começo da dispensa. Em geral, o individualismo tão cultivado na modernidade não reconhece as crianças como responsabilidade coletiva, como pessoas cujo bem estar deve interessar a todos e todas. Filhos são responsabilidade unicamente de suas mães.
Como trabalhadoras ainda recebemos menos que os homens pelo mesmo trabalho fora de casa. Muitos chefes e patrões consideram as trabalhadoras também como objetos sexuais. E como camponesas, sofremos diretamente os impactos do avanço do capitalismo no campo, na forma de atuação das empresas transnacionais do agronegócio.
Ademais de tudo isso, somos espancadas e violentadas diariamente, e, o que é mais triste ainda, com um alto índice de violência praticada por pais, maridos, filhos, tios, avós..., ou seja, uma violência nascida dentro da família.
Voltemos à questão das camponesas. Poderia parecer que é um curso “natural” do desenvolvimento humano a desaparição de ofícios, como ocorreu na Revolução Industrial; logo, a desaparição das camponesas também seria “natural”, pois que a “modernidade” avança para o campo. Também poderia parecer que a população que vive nas cidades não tem nada que ver com as ocorrências do campo, como com a violência das empresas do agronegocio contra as camponesas e camponeses.
Atentando para o que comemos, podemos ver duas opções nas cidades: comida “industrializada”, e comida “natural”. Como comida industrializada estamos falando de redes de fast-food e alimentos prontos nascidos da Bunge e outras empresas. Por comida natural estamos falando de leite, grãos, frutas, legumes, etc. cuja produção está entre 60 e 80% respondida por camponeses e camponesas.
Os efeitos de ambas as opções alimentares estão já bastante evidenciados. Altos índices de obesidade, câncer, suicídios, depressão e uma ampla variedade de enfermidades por dietas tipo McDonald. Nunca ouvimos falar de alguém doente por comer alimentos saudáveis produzidos pelo campesinato.
Logo, a tarefa de produzir a alimentação, imprescindível para a felicidade de qualquer pessoa, não pode ser um negocio, e em toda a história da humanidade as camponesas foram protagonistas em garantir alimentação de todos e todas.
O negócio de empresas transnacionais como Monsanto, Syngenta, Nestlé, Bayer, Cargill, Dupont, Basf, não é produzir comida, é produzir lucros. Nesse caminho de sempre buscar lucro, vão tentando exterminar o campesinato. E as primeiras afetadas são as mulheres camponesas.
Onde avança o agronegocio, recua o campesinato. Os poucos postos de trabalho que permanecem, são ocupados por homens mal pagos e muito explorados; para as mulheres, as alternativas são: migrar para cidades, ficar em casa totalmente dependentes, ou prostituir-se.
Para toda a sociedade isso significa menos trabalho, menos comida, menos moradias, mais violência. Que felicidade esse modelo pode construir? Se até mesmo o orgulho de saber e poder produzir o alimento, e a identidade campesina, herdada e aperfeiçoada a cada geração, podem ser roubados pelas empresas do agronegocio?
Quando uma empresa patentea uma semente, que é um patrimônio dos povos e deve estar a serviço da humanidade, está roubando os saberes construídos historicamente pelos campesinos e campesinas.
Em várias regiões do Brasil, as empresas de celulose estão espalhando seus desertos verdes de eucaliptos. Na Bahia, no Espírito Santo, no Maranhão, no Rio Grande do Sul, Stora Enso, Votorantin/Fíbria, Suzano, vão arrancando povos indígenas, descendentes de escravos, camponeses e camponesas de suas terras, e instalando seus exércitos clonados, na forma de eucaliptos e na forma de soldados.
Nós, as camponesas, nativas, negras, do Movimento Sem Terra e da Via Campesina, nos lançamos contra o projeto de morte das empresas transnacionais. Nesse 08 de Março reafirmamos nossa luta, porque 08 de Março é dia de rosas, sem deixar de ser dia de continuar a luta, de pôr abaixo os eucaliptos e a fome que eles representam.
Anunciamos em nosso manifesto que “a gente não quer só comida, a gente quer alimento saudável, a gente quer soberania alimentar!” No Brasil, segundo pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 80% das pessoas sem acesso à renda são mulheres. O cambio dessa situação passa pela construção da soberania alimentar.
O que é Soberania Alimentar? É um povo, mulheres, homens, jovens, idosas e idosos, decidir o que quer em sua alimentação, e ter capacidade de produzir e consumir alimentos saudáveis, na quantidade necessária e de acordo com sua cultura. Soberania alimentar implica em uma transformação cultural, onde estão contempladas novas relações entre as pessoas.
Alguns tentam desqualificar nossas lutas nos chamando de criminosas, de ignorantes, nos comparam aos quebradores de máquinas que agiram quando o sangue das trabalhadoras e trabalhadores têxteis começou a ser derramado durante a Revolução Industrial.
Qual é nosso crime? Derrubar eucalipto para produzir alimento? Barrar o roubo do patrimônio coletivo, como são as sementes, repelindo as sementes transgênicas patenteadas? Propor a construção de uma sociedade com pão, com água, com ar, educação, para todas e todos, esse é o crime e a ignorância?
Para construir soberania alimentar, precisamos combater o agronegocio e o avanço do deserto verde de eucalipto. Soberania alimentar é base da felicidade de um povo, pois implica em alimentos abundantes, saudáveis e acessíveis, e novas relações entre as pessoas, e entre pessoas e ambiente.
Homens, tenham em mente que uma mulher que convive, que luta ao lado de um homem que se declara machista, é como um escravo convivendo com alguém que se declara escravista. Que relação de igualdade e respeito pode existir numa situação assim?
Quando lutamos por uma nova sociedade, com soberania alimentar, lutamos por nossa felicidade, pessoal e coletiva. No Dia Internacional da Mulher Trabalhadora, continuamos lutando por comida, mas, não queremos só comida, queremos soberania alimentar, queremos ser felizes em nossa vida no campo.
Por Janaina Stronzake, MST de Rio Grande do Sul, correo electrónico:terrajana@gmail.com