Indonésia: o que é uma Concessão para Restauração de Ecossistemas?

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Floresta do Hutan Harapan, Jambi. Foto: EJAtlas

Em 2004, as ONGs de conservação e o Ministério das Florestas da Indonésia foram pioneiros em um modelo chamado Concessões para Restauração de Ecossistemas. Este artigo analisa mais de perto esse modelo no contexto de novas e antigas ameaças às florestas e do impulso mundial pela “restauração florestal”.

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A maioria das florestas da Indonésia é de propriedade do Estado. Nas últimas décadas, as chamadas “florestas produtivas”, que representam mais de 50% das que pertencem ao Estado, foram distribuídas a empresas privadas, principalmente indústrias madeireiras e de plantações. Isso resultou em grande destruição de florestas para produção de madeira, óleo de dendê, e celulose e papel. (1)

A categoria de Concessões para Restauração de Ecossistemas (CREs) foi lançada oficialmente em 2004, a fim de reverter a tendência de desmatamento nas “florestas produtivas”. As CREs foram criadas por entidades de conservação – como British Royal Society for the Protection of Birds (RSPB), BirdLife International e sua afiliada indonésia Burung Indonesia – e pelo antigo Ministério das Florestas. (2) A ideia principal era criar uma ferramenta governamental voltada ao mercado, capaz de reverter o desmatamento nessas “florestas produtivas” que, apesar da destruição florestal, ainda teriam alto potencial para a conservação.

Para receber uma licença de restauração do Ministério do Meio Ambiente e Florestas, é preciso criar uma empresa e apresentar um plano de negócios. A licença é concedida por um período de 60 anos, renovável por mais 35. A primeira empresa a receber uma CRE foi a PT REKI em 2007, para o Projeto Harapan Rainforest, em Sumatra. A PT REKI é detentora da licença, enquanto as três entidades de conservação mencionados acima criaram uma fundação sem fins lucrativos, que se tornou a principal acionista da empresa.

O regulamento para o manejo de CREs estabelece que o titular da licença promova atividades de restauração para “restabelecer um equilíbrio biológico”, e depois poderá voltar a extrair madeira. Enquanto isso não acontece, são permitidas nas CREs atividades de geração de renda, incluindo a venda de créditos por serviços ecossistêmicos, como carbono, conservação da biodiversidade ou recursos hídricos, além de ecoturismo e produção e venda de produtos florestais não madeireiros. O cultivo de plantas medicinais e ornamentais, a apicultura e a criação de animais também são opções que o detentor da licença pode explorar. O regulamento define que os CREs devem garantir que os benefícios sejam divididos de forma equitativa com as comunidades locais. Até 2016, haviam sido concedidas 15 licenças sobre 573.455 hectares de terra em Sumatra e Kalimantan. (3)

Ao longo dos anos, grandes ONGs de conservação que atuavam em torno desses esquemas na Indonésia, como WWF, TNC e Birdlife, conseguiram mobilizar fundos consideráveis ​​para essa ideia, provenientes de agências e instituições doadoras europeias. O banco de desenvolvimento alemão KfW, por exemplo, investiu pelo menos 15,6 milhões de euros em três CREs até 2016. (4)

O modelo privado de “restauração” funcionou?

Desde que o modelo de CREs foi criado, em 2004, o desmatamento aumentou ainda mais na Indonésia, em termos de perda de florestas primárias e de cobertura total de árvores. (5) Por que o modelo não conseguiu reverter essa tendência constante à destruição?

Em primeiro lugar, a área total coberta pelas CREs é insignificante se comparada com a área de “florestas produtivas” do país, estimada em 69 milhões de hectares até 2015. Isso significa que as 15 licenças de CRE concedidas, totalizando 573.455 hectares, abrangem apenas uma parcela minúscula, de 0,8%, da área total dessas “florestas produtivas”. Mesmo se tivesse sido atingida, a meta do governo, de mais 1,7 milhão de hectares para CREs, ainda cobriria apenas 3,2% dessa área total. (6)

Mas uma questão fundamental permanece: as CREs existentes conseguiram reverter a destruição florestal em suas áreas de concessão? A documentação disponível aponta na direção oposta. Por exemplo, o Projeto Harapan Rainforest foi palco de extração ilegal de madeira, uma causa direta de degradação da floresta e desmatamento, enquanto também ocorreu conversão em grande escala de florestas em plantações de dendezeiros. Além disso, houve disputas de terras intensas e não resolvidas com comunidades por acesso e controle sobre partes da área de concessão. (7)

Em 2018, incêndios florestais destruíram 16.000 km2 do Parque Nacional de Bukit Tigapuluh, no oeste de Sumatra. É a mesma região onde, desde 2015, a PT Alam Bukit Tigapuluh (ABT), empresa criada pela ONG WWF em parceria com a Frankfurter Zoological Society (FZS) da Alemanha, administra uma CRE. A destruição das florestas causada pelos incêndios teria motivado a peculiar decisão tomada pelo Ministério do Meio Ambiente e Silvicultura da Indonésia em 2019, de encerrar sua parceria de conservação florestal com o WWF, três anos antes de ela expirar. Segundo um porta-voz do governo, “o WWF Indonésia tem uma concessão, ela foi queimada e eles não conseguiram administrá-la”. A concessionária ABT, por sua vez, disse que os incêndios provavelmente foram causados ​​por pessoas que invadiram ilegalmente a área e a limparam com queimadas. (8)

Em 2019, incêndios florestais afetaram a CRE do Projeto de Restauração e Conservação de Turfeiras de Katingan, no centro de Kalimantan, criado em 2013 pelas ONGs de conservação Wetlands International e Puter Indonesia Foundation, junto com a desenvolvedora de projetos britânica Permian Global. A CRE é administrada pela empresa PT Rimba Makmur Utama, e perdeu pelo menos 2.000 hectares de florestas devido aos incêndios. Portanto, também perdeu os créditos de carbono que estão sendo comprados pela transnacional de petróleo Shell, que acabaram sendo transformados em ar quente. A Shell compra créditos de poluição desse projeto, argumentando que eles “compensam” suas emissões de carbono. Nessa área de projeto de CRE, também foram relatados conflitos pela terra e seu uso com comunidades indígenas dayaks. (9)

Quem se beneficia dessas concessões de “restauração”?

As CREs seguem uma lógica semelhante às Parcerias Público-Privadas (PPPs) promovidas pelo Banco Mundial, pois são convênios de longo prazo em que se usa dinheiro público para financiar uma empresa privada que supostamente poderia proporcionar resultados melhores do que o Estado, nesse caso, para atividades de restauração de ecossistemas. As ONGs de conservação por trás das CREs reclamaram das “opções limitadas de geração de renda” e dos “altos custos”, e exigiram mais apoio e incentivos do Estado. (10) Somente a venda de “créditos” de carbono se destaca como opção lucrativa, o que explica por que 10 das 15 CREs que existiam em 2016 venderam “créditos” de carbono e por que esse modelo vem sendo chamado de “REDD indonésio” desde que o governo, ao contrário do que aconteceu em outros países com florestas tropicais, fechou sua agência de REDD+ em 2015.

Enquanto isso, os exemplos mencionados mostram que continua ocorrendo destruição florestal dentro das CREs, tornando, no mínimo, questionável o impacto real desses projetos na reversão da destruição das florestas. Inquestionável, porém, são os milhões de dólares das agências de ajuda ao desenvolvimento, principalmente europeias, entrando nas contas bancárias das grandes ONGs que criam e são donas das chamadas empresas de conservação. Não se encontra nenhum registro público de como os milhões de dólares foram gastos até agora nem de quanto as verbas beneficiaram os acionistas das empresas de CREs. Essas são algumas das perguntas não respondidas em torno de um processo em que as chamadas ONGs conservacionistas se transformam em uma indústria da conservação com fins lucrativos.

O contexto mais amplo: maior pressão sobre florestas e comunidades

Dezesseis anos após seu lançamento, o modelo de Concessão para a Restauração de Ecossistemas ainda está funcionando. Além disso, a “restauração florestal” se tornou a palavra de ordem em espaços internacionais onde se discutem políticas florestais, como parte essencial da mais nova tendência, as Soluções Baseadas na Natureza (SBN), que recebeu muito destaque durante a última conferência climática da ONU em Madri, em 2019, e é considerada o “novo REDD+”.

As CREs se encaixam perfeitamente no novo conceito de Soluções Baseadas na Natureza, em função do comércio de créditos de carbono que a maioria delas já pratica. Peter Ellis, da The Nature Conservancy (TNC) – uma das principais ONGs de conservação envolvidas nas CREs na Indonésia – sugeriu que também se poderiam alcançar reduções nas emissões de carbono melhorando a “extração de madeira de impacto reduzido”. (11) Isso se enquadra no objetivo maior das CREs: reiniciar as atividades de exploração madeireira quando a “restauração” estiver concluída. Porém, experiências que as grandes ONGs de conservação e o Banco Mundial consideram “histórias de sucesso da economia verde” na floresta tropical – por exemplo, de comunidades do estado brasileiro do Acre, na Amazônia – mostram como a chamada extração sustentável de madeira contribuiu apenas para mais degradação florestal, desmatamento e exploração. (12)

O Projeto Harapan Rainforest, uma estrada que visa conectar várias grandes minas de carvão no sul de Sumatra ao rio Bayung Lencir, na província de Jambi, está planejado para atravessar a CRE. Embora o Ministério das Florestas o tenha interrompido em sua primeira tentativa de construir a estrada em 2013, o projeto foi apresentado novamente ao Ministério em 2017. (13) Com o apoio do governo local, as chances de aprovação aumentaram, mas nenhuma decisão final foi tomada. (14)

Outra pressão sobre as florestas da Indonésia é o novo impulso para a transição à chamada economia de “baixo carbono”, baseada em “energia verde” ou “limpa”, fortemente promovida pela União Europeia como parte do chamado Acordo Verde Europeu. Energia verde – ou limpa – e baixo carbono parecem coisas boas, mas, na prática, significam um nível “alto” de destruição florestal para mineração, principalmente de cobalto e níquel, minerais essenciais para atender ao aumento exponencial da demanda esperada por transporte elétrico. A Indonésia possui depósitos imensos desses minerais em Kalimantan, Molucas e Papua. A “energia limpa” também inclui o impulso destrutivo dos agrocombustíveis, como plantações de cana-de-açúcar, barragens hidrelétricas e energia geotérmica, fortemente promovido pelo governo indonésio como parte de sua própria política econômica de “baixo carbono”. (15) A nova legislação foi aprovada em 2014, com a ajuda do Banco Mundial, que não considera a mineração geotérmica como atividade de mineração e, portanto, não a vê como uma atividade prejudicial, apesar de seus impactos negativos e do fato de a maioria das áreas de extração estar dentro de áreas florestais.

Considerações finais

Tanto o impulso mais recente pela “energia verde” quanto o aumento das Concessões para Restauração de Ecossistemas que acontece desde 2004 tem uma forte presença na Europa. Enquanto, em 2004, as agências oficiais europeias de ajuda ao desenvolvimento apoiaram as CREs como uma oportunidade para os poluidores europeus “compensarem” suas emissões enquanto os governos europeus podiam mostrar preocupação com a necessidade de “conservação”, hoje em dia a União Europeia vê a Indonésia como uma importante fornecedora de minerais estratégicos para sua transição à chamada “energia verde”. A destruição florestal e social causada pela corrida aos minerais em função da transição da Europa à energia verde se tornará cada vez mais evidente, e isso, além da destruição “normal” que os investimentos europeus continuam causando, faz com que as CREs continuem sendo uma ferramenta útil para “compensar”, enquanto permite mostrar uma suposta preocupação com a “conservação”.

Tudo isso não significa apenas um aumento da pressão sobre as florestas indonésias como resultado de “restauração florestal”, “compensação”, “economia verde” e a conhecida destruição causada pela indústria extrativa e de plantações. Esses diferentes projetos implementados de cima para baixo e seus planos de expansão disputam cada vez mais os mesmos espaços, como mostra o caso da estrada para transporte de carvão que atravessa a CRE do Projeto Harapan Rainforest. As CREs e outras iniciativas de restauração e conservação na Indonésia tendem a expandir suas áreas, aproveitando os novos projetos das Soluções Baseadas na Natureza e as novas opções de financiamento que aparecem. (16) No final das contas, os agentes com poder para conduzir esse processo de dividir e redistribuir as terras procurarão manter uma imagem de responsabilidade social. Algumas comunidades, se não forem expulsas, poderão permanecer, mas também poderão encontrar extração de petróleo, concessões para restauração, energia geotérmica e outros projetos corporativos em seus territórios. E o pior: com uma licença perfeitamente legal para estar lá.

Insistir em mecanismos de mercado em projetos chamados de conservação e restauração florestais, como CREs e outras iniciativas similares de “restauração” na Indonésia, significa continuar responsabilizando as comunidades pela destruição das florestas, criando mais restrições ao seu uso e promovendo mais cooptação, divisão e conflitos entre e com as comunidades. É o que mostra a experiência indonésia com as CREs, e é muito semelhante às experiências com o REDD+ em outros lugares (17) – um quadro extremamente complicado para as comunidades locais. A reflexão coletiva e a construção cuidadosa de alianças estabelecidas a partir da base, para construir uma resistência mais forte no combate a esse processo destrutivo imposto de cima para baixo, parecem tarefas urgentes e extremamente importantes.

Winnie Overbeek, winnie@wrm.org.uy
Membro do secretariado internacional do WRM

(1) Reiner Buergin (2016). Ecosystem Restoration Concessions in Indonesia: Conflicts and Discourses, Critical Asian Studies, 48:2, 278-301, DOI: 10.1080/14672715.2016.1164017
(2) Em 2014, o Ministério do Meio Ambiente da Indonésia se fundiu com o Ministério das Florestas, dando origem ao Ministério do Meio Ambiente e Silvicultura.
(3) Ecosystem Restoration Concessions. A second lease of life for Indonesia’s embattled forests? 2016
(4) Buerguin, R., Ecosystem Restoration Concession in Indonesia: Conflicts and Discourses, abril de 2016, Research Gate
(5) Mongabay, Deforestation statistics for Indonesia
(6) Buerguin, R., Ecosystem Restoration Concessions and German Development Cooperation, 2017, Advances in Environmental Research
(7) REDD-Monitor, Questions for the Harapan Rainforest Project: Land conflicts, deforestation, funding, and the proposed construction of a coal transportation road, maio de 2019
(8) Mongabay, Indonesian Environment Ministry ends WWF partnership amid public spat, janeiro de 2020
(9) Boletim 248 do WRM, Dirigir um automóvel sendo “neutro em carbono”: o projeto de restauração e conservação da Shell na Indonésia, março de 2020
(10) Ecosystem Restoration Concessions. A second lease of life for Indonesia’s embattled forests? 2016
(11) Boletim 247 do WRM, Um novo nome para um antigo desvio: as Soluções Baseadas na Natureza são o novo REDD, janeiro de 2020
(12) Boletim 197 do WRM, Brasil: Vozes de comunidades no Acre alertam sobre as violações envolvidas no Manejo Florestal Sustentável Comunitário, 2013, e Boletim 183 do WRM, Brasil: a continuada destruição das florestas e da biodiversidade no estado de Acre, considerado modelo de “Economia Verde” na Amazônia brasileira, 2012
(13) REDD-Monitor, Questions for the Harapan Rainforest Project: Land conflicts, deforestation, funding, and the proposed construction of a coal transportation road, maio de 2019
(14) Mongabay, A forest beset by oil palms, logging, now contends with a coal-trucking road, maio de 2019
(15) Boletim 244 do WRM, Indonésia: a verdade sombria por trás da energia geotérmica: uma enganosa narrativa sobre “energia limpa”, julho de 2019
(16) Referência à aprovação, anunciada em 2019, de 1 bilhão de dólares da Noruega para ações voltadas à redução do desmatamento e da degradação florestal na Indonésia; veja: Mongabay, Indonesia to get first payment from Norway under 1 billion dollars REDD scheme, fevereiro de 2019
(17) WRM, REDD: Uma coleção de conflitos, contradições e mentiras, 2014