A CDB é um fórum ao qual nós, organizações e movimentos, podemos levar nossas posições para que sejam refletidas nos documentos oficiais. Não acreditamos que o mundo vá mudar em uma COP [reunião dos governos dos governos membros da CDB], em outra reunião da CDB ou de qualquer convenção da ONU. Esses são espaços complementares ao trabalho diário de resistência, mobilização e transformação que realizamos a partir do nível local, em conjunto com comunidades locais e povos indígenas.
É importante levar em conta que, como qualquer outra instituição da ONU, a CDB não rejeita, e sim adota, aquilo que foi batizado de economia verde no Programa das Nações Unidas Para o Meio Ambiente (PNUMA). Ou seja, aquela economia que não questiona as relações de poder que geram, por exemplo, a desigualdade, o controle empresarial, a concentração de poder e a produção altamente destrutiva e poluente. Ao contrário, ela as legitima ao afirmar que bastam algumas “correções” para o modelo atual continuar funcionando. De acordo com essa lógica, se investirmos na proteção da biodiversidade – ou seja, abrir novas empresas – vão se criar condições para que qualquer investimento incorpore critérios ambientais e sociais, se atribuirá valor econômico – e preço, também – aos “recursos ambientais” e a natureza será vista não como ela é, mas como “capital natural”, e o modelo dominante continuará funcionando, pintado de verde e gerando novos negócios.
A CDB abriu a porta para os instrumentos da economia verde através da discussão sobre o que hoje se conhece como financiamento para a biodiversidade, ou seja, os fundos necessários para protegê-la. Argumenta-se que é necessário muito dinheiro para preservá-la, pois ela se perde em um ritmo cada vez mais rápido e preocupante. As causas são variadas, mas uma que ganha ênfase no discurso dominante é que, sendo a biodiversidade um recurso comum, ninguém a protege. Ao mesmo tempo, os países – majoritariamente do Sul – que possuem essa biodiversidade não têm os recursos financeiros para protegê-la, enquanto os países industrializados aportam cada vez menos verbas, apesar das suas obrigações internacionais na questão do financiamento. Sendo assim, pensou-se no setor privado, mas ele não está disposto a financiar se não receber um “retorno” sobre esse investimento. Portanto, é necessário encontrar novos mecanismos financeiros – alguns baseados no mercado – que possibilitem esse financiamento e novos lucros. (1) Essa é uma das premissas vigentes na CDB e em outros espaços.
Esses mecanismos financeiros são conhecidos na CDB como “inovadores”. No entanto, e devido à oposição gerada por sua inclinação aos tipos baseados no mercado, a COP 12 deu início a um debate sobre mecanismos financeiros para a biodiversidade. (2) A CDB se refere a seis tipos de mecanismos financeiros inovadores, entre os quais estão reforma fiscal ambiental, pagamento por serviços ambientais e compensação de biodiversidade. Um painel criado pela CDB com o nome de “Painel de Alto Nível sobre a Avaliação Global de Recursos para a Implementação do Plano Estratégico para a Biodiversidade 2011-2020” acrescenta outros, como as licenças negociáveis e a compensação. O que vários desses mecanismos fazem é abrir a porta para novos negócios que possam gerar muitos recursos econômicos para benefício das mesmas empresas que são responsáveis pela destruição. Assim, em vez de resolver o problema que é a perda de biodiversidade, eles a aceleram. Além disso, a ideia de compensar danos em matéria de biodiversidade é absurda e perversa, dado o caráter único de qualquer espécie ou ecossistema (ver, também, os Boletins 198 e 181 do WRM).
Quem promove esse tipo de mecanismo e defende a economia verde afirma que eles terão êxito desde que a biodiversidade conte com uma valoração econômica porque, sem ela, não pode haver preço nem negócios. Nas Metas de Aichi (1, 2 e 20) (3), sustenta-se a importância da avaliação econômica que, na vida real, é muito difícil de separar do preço. Com preço, é possível levar a cabo a Financeirização da Natureza (FN), entendida como uma nova forma de privatizar essa Natureza, bem como as formas de existência e os meios de subsistência de muitas comunidades locais e povos indígenas que vivem, existem e dependem dela. A FN também tenta substituir a legislação nacional e internacional por pagamentos, de forma que quem tem recursos financeiros prefere pagar pelo dano que gera em vez de obedecer às leis, o que inclui sanções. Em projetos-piloto, instrumentos ou políticas, a FN é sempre apresentada como algo muito técnico e complexo, tentando esconder que ela implica uma visão de mundo diferente da que temos a partir de nossas comunidades, movimentos e organizações que trabalham por justiça social. Ao se apresentarem dessa forma, aqueles que promovem a FN escondem a discussão sobre as relações de poder que causam a atual crise ambiental e as responsabilidades em sua criação. Ambos os aspectos precisam ser abordados para que se encontrem soluções reais que levem, no longo prazo, a superar a crise ambiental atual.
Devido à forte oposição que os mecanismos financeiros inovadores geraram nos movimentos sociais e em alguns governos, não há referência explícita a eles na pauta da próxima COP 13 em Cancún, México. Em vez disso, vimos que seus defensores cada vez mais enfrentam críticas e tentam disfarçar mudando seu nome e os incorporado a outras discussões. Assim aconteceu com o conceito de mecanismos financeiros inovadores. (1) De momento, essas propostas que estão no marco da FN ganharam terreno em temas mais gerais, mas não tanto na especificidade de cada instrumento e em sua conversão a políticas recomendadas pela CDB. No entanto, nas organizações e nos movimentos sociais, estamos alertas, pois esses mecanismos serão promovidos na próxima COP, certamente nos corredores e eventos paralelos. E diante dessa promoção, é preciso agir para detê-los.
A COP analisa propostas de recomendações que, depois de discutidas, negociadas e aprovadas, convertem-se em decisões. Essas recomendações são negociadas em reuniões anteriores. A partir da análise que fizemos das recomendações a ser discutidas durante a próxima COP, há menções a mecanismos financeiros, por exemplo, referências ao REDD (2). Também encontramos uma resolução em matéria de restauração (4), em que se fala do desenvolvimento de processos contábeis “que levem em conta os valores de ecossistemas naturais e seminaturais e das funções e serviços que oferecem”. Essa ideia já é praticada em alguns países que fazem parte da iniciativa Biofin (5). Através da introdução da natureza nas contas nacionais, dá-se um preço a eles que permitirá o estabelecimento de mercados, quotas de poluição, licenças que podem ser negociadas, compensação.
Finalmente, encontramos a incorporação da biodiversidade em todos os setores, uma questão que também é o tema central escolhido pelo governo anfitrião para a COP. (6, 7) Por incorporação, entende-se inclusão ou integração das ações relacionadas à conservação e ao uso sustentável da biodiversidade em estratégias relacionadas aos setores produtivos. (8) Também concluímos que essa incorporação é uma maneira de gerar recursos, pois poderia facilitar a utilização de mecanismos de compensação ou gerar mercados verdes. (9) Na proposta de resolução, fala-se sobre a necessidade de contabilizar ecossistemas e serviços ecossistêmicos e se aponta que a incorporação da biodiversidade serve para gerar recursos. Do parágrafo 70 ao 81, há uma ode ao setor empresarial, as partes são convidadas a incentivá-lo para que gere e avalie informações sobre os impactos que provoca, a usar mecanismos de compensação, a incentivar as empresas a usar mecanismos como os protocolos sobre o capital natural. Em suma, nunca se fala em estabelecer responsabilidades e sanções ou eliminar qualquer tipo de atividade que destrua a biodiversidade.
A lógica que prevalece é incentivar medidas voluntárias, usar mecanismos benéficos para gerar mais negócios. É semelhante à toda a lógica que sustenta a FN, ajudando a perpetuar as causas da perda e da erosão da biodiversidade. A CDB perde uma grande oportunidade de incorporar a biodiversidade em todos os setores, com mudanças estruturais que garantam a sobrevivência e recuperação do mesmo.
É necessário, a partir dos movimentos sociais e do Estado, atacar definitivamente as causas da perda e da degradação da biodiversidade. Com base nessas lutas, a defesa do território, a cultura e a identidade da comunidade são fundamentais para fortalecer as iniciativas locais. Hoje, nas comunidades e nos movimentos locais do mundo todo são desenvolvidas muitas iniciativas que devemos fortalecer. Um dos vários sistemas é a soberania alimentar baseada em sistemas diversos controlados por camponesas, camponeses e indígenas através das práticas de sua agricultura de produção de alimentos e outros bens para os mercados locais. Desta forma, é fundamental lutar para que a terra esteja nas mãos de pequenos agricultores e agricultoras, bem como de povos indígenas, porque sem o controle da terra não há possibilidade de soberania alimentar. Temos de continuar a reforçar o controle das florestas e da biodiversidade nas mãos de comunidades e povos indígenas através de propostas como a governança comunitária de ambos. Como já investigamos através de experiências concretas, a governança comunitária da floresta é uma proposta que protege, preserva e melhora a biodiversidade; fortalece os direitos históricos e coletivos; promove o controle da comunidade e garante que ela não seja desmatada, tornando-se uma solução real na luta contra as mudanças climáticas. O fortalecimento dos mercados locais como ferramenta para reduzir o consumismo e fortalecer as economias locais é igualmente importante. Por sua vez, eles ajudam a melhorar a igualdade e geram muitos empregos dignos, contrariando a ação das transnacionais. Em muitas dessas propostas, bastaria o Estado simplesmente redefinir para onde vão os recursos, em vez de iniciar discussões e propostas com novos mecanismos financeiros.
A CDB, espaço internacional onde se discutem muitas dessas propostas, deve se afastar do caminho das falsas soluções. Deve respeitar os princípios que a fundamentam. Deve respeitar os direitos das comunidades locais e dos povos indígenas que ela mesma deveria promover com mais força. A CDB não deve favorecer mecanismos financeiros que envolvam falsas soluções. A lógica perversa de pagar para continuar poluindo perpetua as causas da degradação e da destruição da biodiversidade, e deve ser eliminada de qualquer proposta. Os recursos financeiros existem, assim como quem causou essa destruição através dos seus modelos de desenvolvimento, que também tem obrigação histórica de fornecer esses recursos.
Isaac Rojas (isaac@coecoceiba.org)
Cocoordenador do Programa Florestas e Biodiversidade – Amigos da Terra Internacional
Membro do COECOCEIBA – Amigos da Terra Costa Rica
(1) Mais informações, aqui: Financierización de la naturaleza: La creación de una nueva definición de la naturaleza. http://www.foei.org/es/recursos/publicaciones/publicaciones-por-tema/bosques-biodiversidad-publicaciones/financialization-nature-creating-new-definition-nature
(2) Há duas referências sobre REDD [Programa de Redução de Emissões de Carbono causadas pelo Desmatamento e a Degradação Florestal]: uma na recomendação sobre a mudança climática que vem do SBSTTA 20 no ponto XX/10 e, logo de seguida, refere-se a propostas alternativas. A mesma se encontra na resolução proposta pelo SBSTTA 19 no ponto XIX/8, ponto 4, terceiro parágrafo.
(3) As Metas de Aichi foram aprovadas na COP 10 e apontam um roteiro para a conservação da biodiversidade, tentando deter sua destruição.
(4) Resolução proposta, número XX/12, que vem do SBSTTA 20, no parágrafo 14, ponto 6.
(5) De acordo com o PNUD, a Iniciativa de Financiamento da Biodiversidade (BIOFIN) “tem como objetivo [...] melhorar a rentabilidade, através da incorporação da biodiversidade ao desenvolvimento nacional e ao planejamento setorial, e desenvolver estratégias integrais de mobilização de recursos nacionais”. www.biodiversityfinance.net/
(6) Tema discutido no SBSTTA 20 e no SBI 1 (ponto XX/15, do SBSTTA 20 e que é aprofundado pela proposta de resolução 1/4 do SBI).
(7) TWN Info Service sobre Biodiversidade e Conhecimento Tradicional, 12 de outubro de 2012. divisão Norte-Sul na mobilização de recursos. http://www.twn.my/title2/biotk/2012/biotk121003.htm
(8) GEF, UNEP, CBD; Mainstreaming Biodiversity into Sectoral and Cross-Sectoral Strategies, Plans and Programmes, Módulo B-3, Versão 1 - Julho de 2007.
(9) Finance Mechanisms for Biodiversity: Examining Opportunities and Challenges. Resumo de um Workshop Internacional convocado por OCDE, Banco Mundial, GEF e Comissão Europeia, juntamente com Suécia e Índia, 12 de Maio de 2012 – Montreal, Canadá.