“Por uma mudança de paradigma”: Entrevista com Tom Goldtooth da Indigenous Environmental Network

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O que é a Indigenous Environmental Network (Rede Ambiental Indígena)?

A Rede Ambiental Indígena (IEN, na sigla em inglês) nasceu em 1990 na América do Norte, a partir da esperança, da coragem e da visão comum de jovens, mulheres e anciãos indígenas de muitos povos indígenas, para proteger nossa dignidade da destruição ambiental que acontece nas terras onde moramos. A IEN é uma grande aliança de comunidades indígenas que estão na linha da frente da resistência contra os combustíveis fósseis, a mineração e as indústrias tóxicas que estão usurpando terras e cursos d’água. Nosso alicerce está nas comunidades e nas bases, e falamos a partir dos princípios do consentimento livre, prévio e informado. Muitos dos nossos fundadores vêm de uma longa linhagem de resistência indígena contra a colonização da América do Norte.

Como (e por que) a implementação de grandes projetos (da extração de petróleo a estradas e barragens), na maioria das vezes, afeta comunidades indígenas e tradicionais?

Do ponto de vista dos nossos povos indígenas do Norte, a conquista e a colonização de nossas terras e territórios pelos europeus, começando mais de 500 anos atrás, sempre estiveram relacionadas aos objetivos dos colonizadores de exercer poder e controle sobre nossas terras. Assim, ao chegar às terras indígenas, os invasores europeus trouxeram consigo uma cosmologia tão diferente da nossa, que nós não conseguíamos compreendê-los e eles não conseguiam nos compreender. O valor mais destrutivo que os invasores europeus impuseram foi a quantificação e a objetivação do mundo natural através da imposição de um valor monetário a coisas sagradas, e o genocídio contra os povos indígenas que resistiram. Então, essas pessoas, que agora têm implementado os sistemas econômicos insustentáveis ​​do capitalismo, estão constantemente à procura de “recursos naturais” para alimentar o imenso monstro que criaram. Esse monstro precisa de energia, de modo que se buscam áreas remotas do país para extrair minerais, construir grandes barragens, tirar nossas árvores nativas e até mesmo roubar nossos medicamentos tradicionais, e elas têm que construir rodovias e ferrovias para ter acesso a nossas terras e territórios. Vivemos em um mundo com uma sociedade dominante, que sempre quer tirar e tirar, e nunca dar. Essas pessoas são como uma espécie predadora, e não uma espécie que tem compaixão e amor pelas florestas, as águas, a terra, as plantas, os animais, os pássaros, os peixes e toda a vida. Eu acredito que essa sociedade dominante tem agora um sistema de valores que não respeita o caráter sagrado dos princípios criativos femininos da Mãe-Terra e do relacionamento com o Pai-Céu. Eles criaram políticas neoliberais da globalização, liberalização, privatização, desregulamentação e desnacionalização que aprofundam constantemente a violação dos direitos que são inerentes a nós como povos indígenas e que violam as leis naturais da nossa Mãe-Terra, de sua biodiversidade. É por isso que elas têm que buscar petróleo e os chamados minerais ricos sob a terra, derrubar todas as árvores velhas, capturar o espírito da água e bloquear seus fluxos de vida.

O que significa “racismo ambiental” para você?

No final da década de 1980 e início da de 1990, nos Estados Unidos, estudos descobriram que as leis ambientais e de saúde pública do país discriminavam os povos indígenas e as pessoas de cor. Com pessoas de cor, eu quero dizer os norte-americanos de ascendência africana, latino-americana e asiática. Desde o início da década de 70, havia fortes leis ambientais nacionais que os estados também deveriam cumprir. Eram as leis do ar limpo, da água limpa e muitas outras leis e normas ambientais e de saúde. No entanto, nos anos 80, verificou-se que muitas empresas e indústrias estavam construindo fábricas poluentes próximo às comunidades dessas pessoas de cor, sem qualquer consideração por sua saúde. E o despejo de resíduos tóxicos em grande escala estava sendo feito perto das comunidades desses grupos étnicos, incluindo nossas nações (comunidades) indígenas. No início dos anos 90, os Estados Unidos e a indústria nuclear estavam pressionando por planos para despejar resíduos altamente radioativos dos reatores de energia nuclear em terras e territórios indígenas. O governo prometeu milhões de dólares como acordos de compartilhamento de benefícios para cada membro do povo, com o objetivo de obter seu apoio para usar nossas terras como um depósito de resíduos nucleares e tóxicos. No entanto, com todas essas formas tóxicas, radioativas e ecologicamente destrutivas de desenvolvimento industrial, o governo dos Estados Unidos não aplicou as leis ambientais federais da mesma forma. Nós chamamos a isso de racismo ambiental.

O dito acima também se aplica às indústrias extrativas relacionadas à mineração e ao desenvolvimento de combustíveis fósseis. O governo dos Estados Unidos, através dos programas da Agência de Assuntos Indígenas, intermediou acordos com os nossos governos tribais, com falsas promessas de que esses acordos de mineração e desenvolvimento de combustíveis fósseis seriam benéficos. Mas as disposições para a aplicação de normas e regulamentos ambientais eficazes voltados a proteger a água e a qualidade do ar e a saúde do nosso povo e do ecossistema e sistemas alimentares tradicionais, nunca foram abordadas. Isso é uma injustiça em termos de ecologia e saúde.

O fato de que as terras tribais em locais remotos em toda a América do Norte contêm a maior parte dos recursos energéticos restantes, juntamente com o desejo dos Estados Unidos de alcançar a “independência energética” usando combustíveis fósseis, significa que o governo e a indústria estão visando agressivamente as terras tribais para atender às necessidades energéticas do país (e do Canadá). Este impulso de explorar recursos de combustíveis fósseis em terras indígenas é muito preocupante para todos os que estão trabalhando em questões energéticas e climáticas.

Como muitas comunidades indígenas são economicamente em crise e suas autoridades sofrem pressões para chegar a soluções, a indústria de energia consegue sustentar a promessa de benefícios econômicos de curto prazo para ter acesso a terras e recursos indígenas. A posse dos recursos energéticos, juntamente com economias em crise, deixa nossas Povos Indígenas do Norte vulneráveis às “soluções” econômicas destrutivas e de curto prazo do mundo dominante.

Mas esse “racismo” é praticado em todo o mundo. As elites dos países do Sul global que promovem sua agenda nacional para explorar o ambiente natural não têm nenhuma consideração pelos povos indígenas de seus países. Globalmente, têm se intensificado a exploração e a pilhagem dos ecossistemas e da biodiversidade do mundo, bem como as violações dos direitos inerentes aos povos indígenas que dependem deles. Os nossos direitos à autodeterminação, à nossa própria governança e ao desenvolvimento autodeterminado, os nossos direitos inerentes às nossas terras, territórios e recursos estão cada vez mais, e de forma alarmante, sendo atacados pela colaboração de governos, corporações transnacionais e ONGs conservacionistas. Ativistas e líderes indígenas que defendem seus territórios continuam a ser alvo de repressão e militarização, incluindo assassinatos, prisões, assédio e difamação como “terroristas”. A violação dos nossos direitos coletivos enfrenta a mesma impunidade. A relocalização ou a assimilação forçadas atacam nossas futuras gerações, culturas, línguas, hábitos espirituais e relação com a terra, econômica e politicamente. Tudo isso está acontecendo em todo o planeta – em toda a nossa Mãe-Terra, e é uma injustiça.

E o que isso significa para a luta dos povos indígenas?

Olhando para os últimos 26 anos, dentro do movimento de justiça ambiental e econômica, nossos povos indígenas e as pessoas de cor têm dado sua alma ao movimento ambiental, tirando a proteção do ambiente de sua caixa quadrada, mudando políticas e construindo a base para a resistência estratégica de comunidades de base afetadas desproporcionalmente por indústrias poluentes, mas, mais ainda, lutando por transformação social e econômica.

A luta por nossos povos indígenas é baseada em direitos. Nós, Povos Indígenas de todas as regiões do mundo, estamos defendendo a nossa Mãe-Terra – nossas florestas, nossa água e toda a vida – contra a agressão do desenvolvimento insustentável e a superexploração de nossos recursos naturais pela mineração, a extração de madeira, as megabarragens, a exploração e a extração de petróleo. Nossas florestas sofrem com a produção de agrocombustíveis, biomassa, plantações e outras imposições de falsas soluções para a mudança climática e o desenvolvimento insustentável e prejudicial.

Nós também estamos lutando contra a mercantilização de toda a Vida – da natureza – da Mãe-Terra e do Pai-Céu. O capitalismo da natureza é uma tentativa perversa, por parte de empresas, indústrias extrativas e governos, de ganhar dinheiro com a Criação, privatizando, mercantilizando e vendendo o Sagrado, todas as formas de vida e o céu, incluindo o ar que respiramos, a água que bebemos e todos os genes, plantas, sementes tradicionais, árvores, animais, peixes, a diversidade biológica e cultural, os ecossistemas e o conhecimento tradicional que tornam a vida na Terra possível e agradável.

A Mãe-Terra é a fonte da vida que precisa ser protegida, e não um recurso a ser explorado e comercializado como “capital natural”. Na condição de Povos Indígenas, entendemos o nosso próprio lugar e as nossas responsabilidades dentro da ordem sagrada da Criação. Sentimos a dor da desarmonia do mundo quando testemunhamos a desonra da ordem natural da Criação e a colonização econômica continuadas, além da degradação da Mãe-Terra e de toda a vida sobre ela.

O mundo moderno não pode alcançar a sustentabilidade econômica sem justiça ambiental e sem uma forte ética ambiental que reconheça o nosso relacionamento humano com o caráter sagrado da Mãe-Terra. O futuro da humanidade depende de um novo paradigma econômico e ambiental que reconheça plenamente os ciclos de vida da natureza e os direitos de nossa Mãe-Terra.

Além de nossos direitos como povos indígenas, nossa luta é pelo reconhecimento dos direitos da água a ser saudável, e os direitos da Floresta e da Mulher Sagrada da Floresta a ser saudáveis.

Eu falo com frequência dos meus medos, preocupações e ideias sobre a questão das nossas lutas. A partir do Norte, vejo que, se as tendências atuais continuarem, as árvores nativas deixarão de encontrar locais habitáveis ​​em nossas florestas, os peixes deixarão de encontrar os seus cursos d’água habitáveis e a humanidade vai encontrar suas terras inundadas ou secas, devido à mudança climática e a eventos climáticos imprevisíveis e extremos. Os nossos povos indígenas já sofreram desproporcionalmente os efeitos negativos da soma de aquecimento global e mudanças climáticas, incluindo os efeitos negativos da indústria extrativa de combustíveis fósseis e seus sistemas de processamento.

A Mãe-Terra e seus recursos naturais não podem sustentar as necessidades de consumo e produção desta sociedade industrializada moderna e seu paradigma econômico dominante, que dá valor ao crescimento econômico rápido, à busca da acumulação empresarial e individual de riqueza, e a uma corrida para explorar os recursos naturais.

Eu enxergo os desafios do sistema não regenerativo de produção do mundo, que gera muito desperdício e poluição tóxica. Reconhecemos a necessidade de que os países, estejam eles aqui no Norte ou no Sul global, se concentrem em novas estruturas econômicas regidas pelos limites e restrições absolutos da sustentabilidade ecológica, as capacidades de carga da Mãe-Terra. Eu vejo a necessidade de uma partilha mais equitativa dos recursos globais e locais, e a necessidade de incentivar e apoiar as comunidades autossustentáveis.

Como povos indígenas, estamos observando a ONU, o Banco Mundial e outros setores financeiros e privados, incluindo indústrias de energia e extrativas, e inclusive estados norte-americanos, como a Califórnia, os quais promovem uma agenda da economia “verde” que está expandindo a mercantilização, a financeirização e a privatização das funções da Natureza, que são os ciclos vitais da Mãe-Terra.

Devo falar sobre isso como uma das questões mais prementes que enfrentamos como povos indígenas. Este regime de economia “verde” atribui um preço monetário à natureza e cria novos mercados financeiros que só vão aumentar a desigualdade e acelerar a destruição da natureza – da Mãe-Terra – e, por sua vez, de nossas terras indígenas. Não podemos colocar o futuro da natureza e da humanidade nas mãos dos mecanismos especulativos financeiros como o comércio de carbono, regimes de compensação de carbono como Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD) e outros sistemas de mercado de conservação e compensação da biodiversidade.

Projetos do tipo REDD e de compensação de carbono já estão causando violações aos direitos humanos, concentração de terras e destruição ambiental. Se for implementado em todo o mundo, o REDD+ pode abrir as comportas para a maior concentração de terras dos últimos 500 anos. Essas iniciativas de compensação aliviam empresas criminosas, como a Shell e a Chevron.

Assim como historicamente a Doutrina do Descobrimento foi usada para justificar a primeira onda de colonialismo ao afirmar que os povos indígenas não têm alma e que os nossos territórios eram “terra nullius” – terra de ninguém – agora o comércio de carbono e o REDD+ estão inventando premissas desonestas semelhantes para justificar essa nova onda de colonização e privatização da natureza. É muito grave.

A relação inseparável entre humanos e a Terra, inerente aos povos indígenas, deve ser respeitada em nome de todas as nossas gerações futuras e de toda a humanidade. Esta é a luta.

Você consegue pensar em outras formas de abordagens de cima para baixo sobre os territórios indígenas, que sejam menos claras ou visíveis? E, se houver, você poderia explicar como essas imposições também são manifestações de racismo ambiental?

Na maioria dos sistemas de governança do Norte ao Sul globais, baseados em nações, países ou regiões, faltam mecanismos para a participação significativa dos povos indígenas no desenvolvimento de políticas. A maioria dos governos tem uma política paternalista, de cima para baixo, de decidir o que é melhor para seus povos indígenas, principalmente em termos de políticas de desenvolvimento energético e extração mineral. É muito raro os governos quererem conceder direitos sobre o subsolo a seus povos indígenas e limitar direitos de propriedade da terra. Há perguntas constantes a respeito de acordos secretos que estão sendo feitos pelos governos nacionais que, mais tarde, quando implementados, infringem os direitos dos Povos Indígenas. Então, quais são os mecanismos que estamos defendendo? Os princípios ou as normas do consentimento livre, prévio e Informado (CLPI) são muito importantes em todas as decisões governamentais que estão sendo tomadas. O CLPI também reserva o direito inerente de nossas comunidades indígenas dizerem Não! a quaisquer formas de desenvolvimento que cheguem a nossos territórios. No Norte, o governo dos Estados Unidos quer limitar a nossa voz e o nosso direito de dizer não, continuando a promover as políticas de “consulta”. A questão é: consulta a quem? Os governos gostam de “consultar” nossos intermediários indígenas e nunca realmente vir ao nível de base, de comunidade, para se reunirem com o coletivo de nossas comunidades para discutir todos os aspectos de uma forma de desenvolvimento que eles querem impor ao nosso povo. Isso acontece em todos os lugares. Muitas vezes, eles já elaboraram os planos para o desenvolvimento. É por isso que exigimos que nossas comunidades indígenas estejam plenamente informadas antes que o desenvolvimento aconteça. E temos o direito de ser plenamente informados sobre todos os aspectos do que está sendo proposto – os bons e os maus. E, finalmente, temos o direito de oferecer o nosso consentimento coletivo, mesmo que tenhamos de dizer não ao projeto. O governo deve respeitar o nosso direito de dizer não, mas não é isso que acontece.

Como você acha que o movimento de solidariedade pela justiça social e ambiental pode ajudar a luta contra o racismo ambiental em todas as suas formas?

No Norte, no início dos anos 90, quando a magnitude do racismo ambiental e o clamor de nossos pedidos de justiça ambiental foram reconhecidos, nós nos reunimos, como povos indígenas, com as minorias, com as pessoas de cor. Fizemos isso como estratégia política para construir nosso poder para a transformação. Como Povos Indígenas, somos as “Primeiras Nações”, e somos nativos das terras e dos territórios dos Estados Unidos, e dissemos às pessoas de cor e aos movimentos por justiça social que estaríamos com eles, contanto que eles também fossem solidários com os nossos direitos como povos indígenas. Vimos a necessidade de construir um poder baseado na solidariedade com outros movimentos de justiça social e ambiental para fortalecer as nossas vozes pela mudança nos Estados Unidos. Essa estratégia continua dentro do movimento do clima, pois já aplicamos a palavra “justiça” a esse tema. Nesse movimento por justiça climática, compartilhamos muitos dos mesmos problemas com outras comunidades que são pobres, que enfrentam o racismo e a pobreza, e que estão sendo marginalizadas e discriminadas pela sociedade dominante dos Estados Unidos. Assim sendo, formamos nossas próprias alianças de justiça climática e mobilização das comunidades em luta e que estão na linha de frente da economia dos combustíveis fósseis, para nos levantarmos em uma só voz, exigindo mudança de sistema, e não mudança climática.

É preciso haver um diálogo entre povos e comunidades de linha de frente, indígenas e não indígenas, para pressionar seus governos a reavaliar um sistema jurídico colonial que não funciona. Essa solidariedade é necessária para construir uma base de poder, para desenvolver a educação popular e informar as comunidades que têm sido historicamente oprimidas sobre o que está acontecendo com a nossa Mãe-Terra. Através da educação popular e de princípios da organização comunitária, mais pessoas estão vendo a necessidade de um corpo jurídico que reconheça os direitos inerentes ao meio ambiente, aos animais, aos peixes, às aves, às plantas, à água e ao próprio ar.

Agora, assistimos aos movimentos sociais que começam a ver uma estrutura de poder que não tem respeito por ninguém, exceto pelo pequeno 1% das elites ricas. Eles estão começando a enxergar a sabedoria e a importância das cosmologias, filosofias e visões de mundo indígenas. É um esforço digno para mobilizar pela mudança de sistema com outros movimentos não indígenas. Precisamos de poder popular para buscar e alcançar soluções de longo prazo que se afastem dos paradigmas e ideologias vigentes, centrados na busca do crescimento econômico, dos lucros das empresas e da acumulação de riqueza pessoal como motores fundamentais de bem-estar social. As pressões externas do mundo continuarão a ter efeitos negativos sobre os nossos povos indígenas. Então, como vamos mudar isso? Estabelecemos redes e construímos alianças com os aliados não indígenas e com os movimentos sociais. As transições apontarão inevitavelmente para sociedades dominantes que possam equitativamente se ajustar a níveis mais reduzidos de produção e consumo, e sistemas cada vez mais localizados de organização econômica que aceitem, honrem e se baseiem nos limites da natureza reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos da Mãe-Terra.

Obrigado.