Tentativa de recolonizar florestas na Índia. As novas propostas de emenda à Lei Indiana de Florestas

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Protestos em Bengala do Norte contra os despejos: “Vamos resistir a todas as tentativas de despejar moradores da floresta”. Foto: Swarup Saha

Como parte de um longo ciclo de repressão por parte do Estado, surgem novas emendas à Lei de Florestas, de origem colonial, que não apenas tornaria a burocracia florestal mais poderosa do que nunca, mas também acabaria com a importantíssima Lei dos Direitos Florestais, além de legalizar a entrada de grandes empresas no setor florestal.

À medida que se aproximam as eleições gerais para a escolha de um novo parlamento indiano, intensifica-se a ofensiva do governo de extrema-direita do partido BJP contra florestas e comunidades da floresta. No início deste ano, esse governo descaradamente pró-empresas não foi capaz de defender a importantíssima Lei dos Direitos Florestais de 2006 em uma decisão da Suprema Corte e criou uma situação na qual cerca de 10 milhões de moradores de florestas da Índia enfrentam despejos sumários (1). Agora, o governo propôs novas emendas à Lei Indiana de Florestas (IFA, na sigla em inglês), de origem colonial, que não só tornaria a burocracia florestal mais poderosa do que nunca, mas também poria fim, na prática, à Lei dos Direitos Florestais como um todo, além de legalizar a entrada de grandes empresas no setor florestal.

A Lei de Direitos Florestais (FRA, na sigla em inglês) da Índia é uma legislação fundamental que reconhece muitos direitos dos adivasis (povos indígenas) e outras comunidades tradicionais que vivem nas florestas. Também fortalece as assembleias de aldeias – as Gram Sabhas – para que governem suas próprias florestas e outras das quais dependem. A FRA sofre ataques desde o início, e não apenas das indústrias de mineração e plantação de árvores, para citar algumas, mas também da indústria da conservação. (2)

Em 7 de março de 2019, o Ministério do Meio Ambiente, Florestas e Mudanças Climáticas (MoEFCC) enviou as propostas de emenda à Lei Indiana de Florestas (IFA) de 1927 a vários governos estaduais para comentários, embora elas ainda não tenham sido oficialmente liberadas para comentários públicos. Grupos ativistas consideram a nova proposta da IFA pior do que sua versão colonial, pois perpetua a mesma injustiça histórica contra as comunidades florestais que a FRA tentou resolver. (3) É uma ação para recolonizar o regime florestal colonial predominante em vez de democratizá-lo para que a lei possa atender às necessidades fundamentais relativas ao meio ambiente, aos direitos e à subsistência das pessoas por meio da ação fundamental das Gram Sabhas, dizem os grupos.

Mais coerção, mais controle por parte do Estado

De acordo com as emendas propostas, o Estado nomearia Responsáveis pelo Ajuste Florestal que “ajustariam” todos os tipos de direitos relativos às florestas. A menos que explicitamente reivindicados, sancionados e registrados – por escrito –, os direitos das comunidades seriam extintos. As emendas não preveem qualquer papel para instituições comunitárias como as Gram Sabhas em todo o processo de reconhecimento de direitos, que são hoje previstos na FRA. Além disso, mesmo os direitos devidamente registrados podem ser “comprados” no interesse da conservação e depois “comutados” – ou seja, os detentores desses direitos podem ser pagos independentemente da natureza, da escala e da localização dos direitos florestais.

Em vez de retirar ações por delitos florestais, como reivindicam vários grupos da sociedade civil, todos os usos possíveis das florestas pelas comunidades seriam criminalizados (a menos que autorizados por responsáveis florestais). Entrar em uma floresta sem permissão constituiria “delito florestal”, e as pessoas poderiam ser escolhidas e detidas sob a simples suspeita de um delito ter sido cometido, tendo suas casas arrombadas e revistadas, tudo sem qualquer garantia. Essas disposições violam os Artigos 21 e 22 da Constituição da Índia, conforme apontado por muitos grupos ativistas do país. (4)

As propostas de emenda introduzem uma nova categoria jurídica chamada “florestas produtivas”, que abre espaço para a privatização em grande escala.Essas novas “florestas produtivas” (passíveis de serem estabelecidas em todos os tipos de florestas) podem ser usadas para operações de produção florestal “sustentável”, como exploração madeireira, plantações comerciais de monoculturas e comércio de serviços ecossistêmicos, incluindo comércio de carbono por meio de REDD+.

Em casos de possíveis conflitos que surjam entre o Estado e as pessoas ou comunidades com relação à propriedade e ao controle de florestas, estas podem ser tomadas pelo Estado.

Reformas das políticas: movimentos usam a FRA para interromper o desmatamento

Essa virada não era realmente inesperada. As reformas neoliberais promulgadas ou propostas nos últimos cinco anos buscam desfazer reformas democráticas, como a histórica Lei dos Direitos Florestais de 2006 (FRA) e as emendas à Lei de Proteção à Vida Selvagem de 2006, iniciadas durante o mandato do governo anterior, da United Progressive Alliance (UPA). Ambas as leis, principalmente a FRA, juntamente com a Política Florestal Nacional de 1988 e a PESA (Lei de Extensão do Panchayat para as Áreas Reconhecidas), de 2006, procuravam proporcionar um marco de políticas que trouxesse o alívio necessário às comunidades florestais ameaçadas, e representaram importantes rompimentos com o modelo colonial de manejo florestal, baseado na coerção e na extração.

A FRA, em particular, procura substituir o famigerado raj florestal – o domínio feudal-colonial da burocracia florestal – com controle e governança descentralizados e localizados. No longo prazo, isso possibilitará que haja florestas biodiversas mais bem cuidadas e fiscalizadas, em vez de uma colcha de retalhos de áreas madeireiras, plantações comerciais de monoculturas e os chamados parques de vida selvagem “livres de seres humanos”, todos os quais acabam de forma implacável com as florestas e suas complexas ecologias feitas de habitantes humanos e não humanos. Não surpreende que o Estado não tenha se disposto a implementar a lei. Burocratas florestais de todos os níveis, a mídia empresarial e grandes ONGs de conservação se opuseram à FRA desde o primeiro dia. Inversamente, novos movimentos de oposição às indústrias extrativas e à destruição das florestas pelo Estado começaram a se mobilizar cada vez mais em torno da implementação dessa lei. Os novos movimentos partiram de legados e linhas de ação mais antigas e transformaram leis como a FRA e a PESA em espaços de novas lutas.

Nas últimas duas décadas, poderosos movimentos tribais e camponeses contrários à mineração e à industrialização forçada irromperam em áreas florestais e costeiras de Odisha. Em Niyamgiri, uma comunidade florestal típica, chamada Dongria Kondh, conseguiu se mobilizar contra uma proposta de mineração de bauxita pelo famigerado grupo Vedanta, que destruiria suas florestas e seus meios de vida. Como em Niyamgiri, os agricultores de Jagatsingpur invocaram com êxito a FRA em sua longa luta contra a aquisição forçada de terras pelo Estado para instalar uma enorme usina da gigante de aço coreana Posco. Em Mahan, estado de Madhya Pradesh, as comunidades florestais organizadas no movimento Mahan Sagharsh Samiti (MSS) conseguiram impedir um projeto de mineração de carvão de propriedade conjunta das empresas Esaar e Hindalco, que ameaçava destruir 1.200 acres (mais de 486 mil hectares) de antigas florestas de Sal, além de desalojar 54 aldeias que dependem da floresta e seus 500.000 habitantes. (5) As comunidades da floresta, incluindo os indígenas Madia Gonds no distrito de Gadchiroli, em Maharshtra, há muito se opõem à rede de minas de ferro proposta, que destruiria diretamente cerca de 15.000 hectares de florestas densas e afetaria outros 16.000 hectares. Na vizinha área de Korchi, a corajosa resistência da comunidade forçou a retirada prematura de um projeto de mineração de ferro. (6) Nos distritos de Sarguja e Raigarh, em Chattisgarh, as comunidades se mobilizaram contra a mineração de carvão. (7) Em outras áreas de Chattisgarh, Madhya Pradesh, Maharashtra, Jharkhand e Bengala Ocidental, as comunidades e seus movimentos assumiram o controle de seus espaços florestais, paralisando e, às vezes, interrompendo as operações madeireiras pelo departamento florestal. (8)

O Estado responde com mais desmatamento

Embora a resistência popular tenha usado leis como FRA e PESA para impedir o desmatamento, e ainda que haja sofisticadas disposições legais em vigor para o controle das florestas pelas comunidades, elas não parecem ter impedido o Estado indiano de avançar com o desmatamento organizado.

De acordo com as estatísticas oficiais de “desvio” florestal compiladas pelo Ministério do Meio Ambiente, Florestas e Mudança Climática, um total de 1,5 milhão de hectares de florestas foi desviado para outros usos entre 1980 e 2019. Destes, mais de meio milhão foram para a mineração e o restante, para energia térmicalinhas de transmissãohidrelétricas e outros projetos. (9) Somente nos últimos três anos (2015-18), o governo indiano concedeu “licenças florestais” para desmatar mais de 20.000 hectares de florestas (10), a maioria, florestas densas.

Segundo a FRA, o desvio no uso das florestas inclui obrigatoriamente o consentimento da comunidade na conclusão do processo de reconhecimento de direitos florestais, o que significa que essas licenças têm sido concedidas com base em consentimentos obtidos, em grande parte, por meio de coerção e fraude. (11) O governo inclui esses desvios desenfreados de florestas entre as formas “organizadas” e “gerenciadas” de desmatamento, e aparentemente não inclui as emissões causadas por eles em seu inventário de emissões de gases de efeito estufa. No entanto, o mesmo governo coleta enormes somas de dinheiro dos usuários comerciais das florestas de acordo com seu controverso protocolo de Florestamento Compensatório (CA), que obriga as indústrias e outros usuários da floresta a pagar para “compensar” sua destruição com novas plantações e serviços ecossistêmicos (12). Após a promulgação da Lei de Florestamento Compensatório 2016 (CAF Act), os fundos acumulados para esse fim chegariam com maior facilidade aos departamentos florestais estaduais e, na visão de grupos ativistas, estes seriam cada vez mais usados ​​para solapar o controle das florestas pelas comunidades. Ignorando completamente a oposição generalizada contra a nova lei CAF e em violação flagrante da FRA, o Estado indiano está buscando institucionalizar e legitimar o processo que coloca à venda as florestas do país.

Ataque à FRA: reformas neoliberais

Embora os esforços para diluir a Lei dos Direitos Florestais tenham começado durante o governo anterior, da United Progressive Alliance (UPA), os ataques sistemáticos e implacáveis ​​à legislação só começaram depois que o atual governo do BJP chegou ao poder, em 2014. No mesmo ano, foi lançada a estratégia nacional de REDD+ da Índia, que propunha a mercantilização por atacado das florestas do país em nome da mitigação das mudanças climáticas. Em 2015, o governo propôs a privatização das florestas do país, que teve que ser arquivada por causa dos protestos generalizados. Em 2016, foi aprovada a famigerada Lei de Florestamento Compensatório. Em 2018, lançou-se a Política Florestal Nacional, que determinava, entre outras coisas, a entrada desimpedida de capital empresarial na exploração econômica das florestas, além da legalização do manejo florestal conjunto (JFM), um sistema chamado “manejo florestal participativo” no qual o Departamento Florestal cria e controla comunidades para a proteção das florestas.

Apesar da FRA e de suas provisões que davam poder às comunidades, o acesso das pessoas às florestas tem sido constantemente reduzido e criminalizado: o Estado continua assediando e perseguindo comunidades e movimentos que tentem implementar a FRA por conta própria e movendo ações penais não apenas contra os ativistas comunitários e membros de Gram Sabhas que afirmam seus direitos e poderes segundo a FRA, mas também contra pessoas marginalizadas que não conhecem a lei. Os relatórios da Agência Nacional de Registros Criminais (2014, 2015) sobre crimes ambientais na Índia revelam que 77% do total de 5.846 casos registrados em 2014 estão relacionados a violações da Lei Indiana de Florestas de 1927 e da Lei de Proteção à Vida Selvagem. A maioria dos casos foi contra comunidades e povos tribais. (13)

Essa sequência de eventos corporifica um ciclo interminável de repressão por parte do Estado, cujos exemplos mais recentes são a muito discutida ordem de despejo emitida pela Suprema Corte de fevereiro de 2019 e as emendas propostas pelo governo à Lei Indiana de Florestas. Em 13 de fevereiro de 2019, enquanto examinava uma ação pendente havia muito tempo que questionava a FRA (a alegação era de que mais direitos florestais causariam aumento do desmatamento, e a maioria dos detentores de direitos era de invasores das florestas do Estado) impetrada por certas ONGs conservacionistas e funcionários florestais aposentados, a Suprema Corte ordenou que, em todos os casos de “rejeição final” de reivindicações de direitos florestais sob a FRA, os reclamantes sejam despejados sumariamente. Se implementada, essa ordem significaria o despejo de cerca de dez milhões de habitantes da floresta. Depois de protestos intensos de todos os setores da sociedade, o despejo foi suspenso temporariamente. Imediatamente após, o governo indiano apresentou as propostas de emenda à Lei Indiana de Florestas que põem fim à FRA e torna os funcionários florestais as únicas autoridades responsáveis por privatizar florestas e negar os direitos florestais às comunidades, supostamente no interesse de mitigar a mudança climática e de implementar “exploração econômica florestal produtiva” e conservação. (14)

Soumitra Ghosh
All India Forum of Forest Movements (AIFFM)

(1) Ver o Boletim 242 do WRM, “Mulheres indígenas Baiga na Índia: “Nossa história deve ser ouvida”, fevereiro de 2019
(2) Para obter mais informações sobre a FRA e outros movimentos florestais na Índia, veja o Boletim 209 do WRM, “Lutas nas florestas da Índia: a busca de alternativas”, dezembro de 2014.
(3) Nota conjunta à imprensa de Community Forest Resources-Learning and Advocacy (CFR-LA), All India Forum of Forest Movements (AIFFM), Mahila Kisan Adhikar Manch (MAKAAM) e Akhil Bharatiya Mazdoor Kisan Sangharsh Samiti (ABMKSS), além de notas separadas de AIFFM e Campaign for Survival and Dignity (CSD)
(4) ibid
(5) Veja https://www.greenpeace.org/india/en/issues/environment/2547/mahan-gram-sabha-to-be-held-behind-a-curtain-as-police-seize-signal-booster-solar-panels-and-other-communication-equipment. Em março de 2015, o Ministério do Meio Ambiente recusou a liberação do projeto Mahan. Posteriormente, o Ministério do Carvão anunciou que o bloco de carvão de Mahan não seria leiloado para mineração.
(6) Somente em Korchi, foram propostos 12 arrendamentos para mineração, com impacto superior a 1.032,66 hectares. Veja WRM, Neema Pathak Broome. N. P., Bajpai. S. e Shende. M. (2016): Reimaginando o bem-estar: aldeias no taluka de Korchi, na Índia, resistem resistem à mineração e abrem espaços para o autogoverno. Veja, também, https://www.downtoearth.org.in/news/mining/experts-panel-red-flags-power-mining-projects-in-western-ghats-37201 e http://cat.org.in/portfolio/tribals-oppose-cluster-of-4-iron-ore-mines-in-zendepar/
(7) Veja, Sethi. N.: Five coal blocks in Chhattisgarh might see land conflict, 15 de janeiro de 2015
(8) Entrevistas com ativistas do All India Forum of Forest Movements (AIFFM).
(9) http://egreenwatch.nic.in/FCAProjects/Public/Rpt_State_Wise_Count_FCA_projects.aspx
(10) De acordo com a informação apresentada no Parlamento, Telangana encabeçava a lista, com 5.137,38 hectares, seguida por Madhya Pradesh, com 4.093,38, e Odisha, com 3.386,67 hectares.
(11) Gram Sabha em Mahan será realizada secretamente enquanto a polícia apreende amplificadores de sinal, painéis solares e outros equipamentos de comunicação, Nota à Imprensa do Greenpeace na Índia.
(12) Veja o Boletim 217do WRM, “O desmatamento financia mais plantações: o novo projeto de lei do Fundo de Florestamento Compensatório na Índia”, setembro de 2015.
(13) Observações de Geetanjoy Sahu, School of Habitat Studies, Tata Institute of Social Sciences (TISS): comunicação por e-mail
(14) Veja https://www.business-standard.com/article/economy-policy/modi-govt-s-move-to-amend-forest-act-takes-a-giant-leap-backwards-119040101292_1.html. O Preâmbulo da Proposta de Emendas diz: “Considerando que é imperativo conservar as florestas, melhorar os serviços ecossistêmicos que fluem das florestas, assegurar a estabilidade ambiental e o bem-estar das pessoas em geral e das pessoas dependentes da floresta em particular, atender às aspirações nacionais de desenvolvimento e aos diversos compromissos internacionais, fortalecer e apoiar o conhecimento tradicional baseado na floresta e todas as questões relacionadas à floresta, com participação popular, e fornecer uma legislação abrangente para tratar de questões relacionadas ao setor florestal, promulga-se a Lei Indiana de Florestas (Emenda), de 2019 (...)”