A cada ano, frotas de aviões, barcos, caminhões e trens, bem como milhares de quilômetros de tubulações e dutos, transportam milhões de toneladas de minerais, madeira, petróleo, gás, produtos agroindustriais, biocombustíveis e muitas outras “matérias-primas” extraídas, na maior parte, dos territórios do Sul global para ser consumidos no Norte. Para extrair e transportar todos esses “produtos”, é preciso concentrar e poluir mais e mais terras, fazendo com que a água presente nos territórios seja cada vez mais encurralada, deslocada, superexplorada e poluída. Esses mesmos “produtos” também requerem grandes quantidades de água em quase todos os níveis de produção. Assim, o modelo econômico de superprodução e consumo afeta diretamente o acesso das populações locais à água potável e aos meios de subsistência. A água, essencial para a vida e considerada “sagrada” por muitos povos tradicionais, está sendo usurpada dos territórios.
As florestas e a água
Onde quer que estejamos, na cidade ou no campo, estamos sempre dentro de uma bacia hidrográfica. Uma bacia hidrográfica é o território onde toda a água da chuva e da neve drena a partes mais baixas para formar cursos d’água, como um córrego, um rio, um lago ou um pântano. As bacias são uma parte essencial do ciclo da água. Este ciclo permite que, através da evaporação e da condensação, a água salgada do oceano se torne água doce e caia em vales e montanhas, descendo pelas bacias, de forma superficial ou subterrânea. Uma bacia saudável protege o abastecimento de água, alimenta as comunidades, as florestas, as plantas e os animais, e mantém o solo fértil (2).
Ao se destruírem as florestas, também se destrói a capacidade que elas têm de equilibrar o ciclo da água, já que os solos vivos podem reter a água e sustentar correntes. Muitos cientistas afirmam que o desmatamento tem um efeito direto sobre a escassez de água nos centros urbanos. De acordo com Antonio Nobre, cientista brasileiro que colabora com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, que assessora a ONU, a destruição das florestas também destrói o sistema de condicionamento climático local (3). Ou seja, a transpiração de uma árvore grande da Amazônia, com dez metros de raio na copa, transforma em vapor mais de mil litros de água em um dia. Agora imaginemos todo o território amazônico. O vapor que sai das árvores é uma grande fonte de chuva e umidade para outros lugares, e é maior do que o fluxo de água que corre no rio Amazonas, o maior rio do planeta. Com a história do desmatamento da “Mata Atlântica” no Brasil e o crescente desmatamento da Amazônia, centros urbanos como São Paulo enfrentam uma grave crise hídrica.
Cultivando secas: as indústrias agrícolas e as plantações de árvores
“O rio que os moradores usavam já não pode ser usado durante a estação das chuvas, pois recebe todos os agrotóxicos aplicados pela empresa na plantação (...) Nós somos escravos na nossa própria terra.” – Sunny Ajele, comunidade de Makilolo, Nigéria, diante da expansão das plantações de dendê da empresa Okomu Oil Palm (Ver Boletim de março de 2014)
O modelo agroindustrial e de plantações de monoculturas depende de um fornecimento contínuo de água. Os investidores interessados em adquirir grandes extensões de terras quase sempre procuram se apropriar também das fontes disponíveis de água, como parte dos mesmos acordos de compra e venda. Assim, no Mali e no Sudão, por exemplo, alguns investidores têm acesso ilimitado a toda a água de que necessitam em seus projetos (4).
O saque de água, contudo, pode se estender muito além da concentração de terras correspondente. No Vale do Ica, na costa centro-sul do Peru, por exemplo, as empresas agroindustriais têm usado várias estratégias para acumular água fora de suas concessões de terras. Duas delas conseguiram canalizar água para suas plantações com tubos provenientes de mais de 40 poços situados fora de suas propriedades. Da mesma forma, no vale de Piura, no norte da costa peruana, a agroindústria instalou uma enorme estação de bombeamento de água em um ponto estratégico do rio, perto de canais e lagos artificiais, que está “protegida” com arame farpado e é patrulhada por guardas armados (5).
As grandes plantações de monoculturas de árvores também são culturas sedentas que devoram florestas e deixam os solos erodidos e sem vida. Após 70 anos de pesquisa hidrológica no vale de Jonkershoek, na África do Sul, um estudo revelou, em 2010, o impacto das plantações de monoculturas de árvores sobre a água subterrânea e a água que corre nos rios (6). Concluiu-se que as plantações de pínus usam o equivalente a 400 milímetros de chuva, o que significa que, a cada ano, 400 milhões de litros de água por km deixam de voltar aos cursos d’água. Os eucaliptos consomem ainda mais: 600 milímetros de chuva. De acordo com o estudo, cada árvore de pínus absorve uma média de 50 litros de água por dia entre os cinco e os sete anos de idade. No caso do eucalipto, a média pode variar de 100 a 1.000 litros, dependendo de onde estiver localizada a plantação. No entanto, as plantações de eucalipto, devido ao seu rápido crescimento, têm forte impacto sobre os córregos e rios nos primeiros anos. Quando o consumo começa a diminuir, normalmente já é o período de corte e começa um novo plantio. As árvores próximas a um córrego ou rio podem usar duas vezes mais água, porque têm maior acesso a ela.
Pior ainda, as monoculturas eliminam os nutrientes do solo e, como resultado, devem-se aplicar fertilizantes químicos, que, por sua vez, contaminam o solo e as fontes de água ainda disponíveis (7).
Um estudo sobre a Indonésia, o país que produz quase metade do consumo mundial de óleo de dendê, adverte sobre a intensidade dos impactos das plantações de dendezeiros em córregos de água doce, afetando diretamente as comunidades em termos de disponibilidade de água para beber, produzir alimentos e manter suas atividades de vida e subsistência (8). O estudo destacou que, durante o processo de desmatamento, de manejo da plantação – que inclui a aplicação de agrotóxicos e fertilizantes químicos – e de processamento dos frutos para produzir o óleo, muitos sedimentos e outras substâncias nocivas se infiltram nos córregos que atravessam as plantações, concentrando até 550 vezes mais sedimentos do que os que atravessam as florestas.
As temperaturas nos córregos para os quais é drenada a água das plantações de dendê jovens e maduras são quase 4 graus Celsius mais altas do que as dos córregos das florestas, afetando negativamente o ciclo biológico de muitas espécies que habitam os cursos d’água. O estudo também registrou que, durante a temporada de secas, há um aumento no metabolismo do córrego – a taxa com que ele consome oxigênio e uma forma importante de medir sua saúde. Os impactos sobre a pesca, as zonas costeiras e os recifes de coral – potencialmente muitos quilômetros a jusante – permanecem desconhecidos. Mas o que sabemos é que, como disse uma das autoras do estudo, “Isso [as plantações de dendê] pode causar o colapso dos ecossistemas de água doce e dificuldades sociais e econômicas na região” (9).
As graves consequências de romper o ciclo da água, intoxicá-la e roubá-la são sentidas pelas comunidades e os sistemas de vida que dependem das correntes afetadas e dos territórios das bacias hidrográficas. Ou seja, do ponto de vista da água, que está em movimento e transformação constantes, os impactos das plantações afetam áreas muito maiores do que os territórios que ocupam e, portanto, muito mais comunidades e populações também são afetadas. Os governos, como administradores do uso da água dentro de suas fronteiras nacionais e acostumados a apoiar o grande capital, concedem licenças abusivas – e, muitas vezes, ilegais – às empresas que esgotam e poluem as fontes de água necessárias para os povos. Além disso, os governos também estão acostumados a ignorar as tradições de manejo, proteção e uso da água que muitas comunidades preservam há gerações. Pior ainda, quando os problemas de escassez de água se aprofundam, geralmente são as populações que vão sofrer restrições, e não as indústrias.
Os combustíveis fósseis e sua sede insaciável
“Flui o petróleo, sangra a selva” – graffiti na cidade de Quito, Equador (10).
Todos os projetos de extração de combustíveis fósseis (isto é, petróleo, gás e minerais) resultam em uma mudança abrupta nas correntes, em sua poluição e, na maioria dos casos, no controle corporativo e/ou governamental das fontes disponíveis. As atividades de petróleo e gás têm causado desastres em todas as áreas onde são realizadas: a poluição do ar, da água e do solo, junto a um processo acelerado de intervenções e imposições, pondo em risco as florestas e os territórios indígenas.
A mineração por sua vez, requer muita água para extração e processamento de minerais, e produz uma grande quantidade de resíduos que contaminam as fontes disponíveis. Para se ter uma ideia, são necessárias 24 banheiras cheias de água para extrair e lavar uma tonelada de carvão! (11). As usinas de carvão consomem cerca de 8% da demanda total de água em nível global. Uma usina típica, de 500 MW, extrai a quantidade de água que entraria em uma piscina olímpica a cada três minutos e meio. Essa água, usada para resfriar a usina, é devolvida a suas fontes originais, mas a temperaturas muito elevadas, que matam a vida aquática e os ecossistemas sensíveis às mudanças de temperatura (12).
Da mesma forma, quando a água e o ar se misturam com enxofre em solo profundo (sulfureto) criando ácidos que dissolvem os metais pesados, ocorre a drenagem ácida da mina. Essa mistura tóxica entra no solo, penetra nas águas subterrâneas e acaba em rios e lagos. Os venenos na água fazem com que pessoas, plantas e animais adoeçam lentamente, também destruindo a vida a jusante, por centenas de anos (13). Como resultado, os projetos de mineração quase sempre geram oposição das comunidades locais, que procuram defender seus territórios e, com eles, suas fontes de água. Um relatório recente da EJOLT, uma rede de organizações de justiça ambiental, documenta 346 casos de conflitos sociais relacionados à mineração e mostra os principais impactos. Entre os mais citados estão a contaminação de águas superficiais e subterrâneas, bem como a redução do nível da água (14).
Contudo, o roubo não termina aí. Uma vez extraídos, os minerais devem ser transportados – e usando não somente a extensa rede de estradas que também causam desmatamento, mas também as tubulações que transportam os minerais (ou o petróleo e o gás) aos portos. No Brasil, por exemplo, onde se vive atualmente uma grave escassez de água para abastecer a população, os minerodutos – tubulações que transportam minério de ferro em estado arenoso misturado com água – levam os metais ao porto. Os quatro projetos de mineração no estado de Minas Gerais que têm tubulações para o transporte do ferro consomem água suficiente para abastecer uma cidade de 1,6 milhão de habitantes. As tubulações operam 24 horas por dia, todos os dias (15).
Hidrelétricas: aprisionando rios, correntes e povos
“O rio nos dá tudo. Peixe para fazer óleo, comer e vender. Ele inclusive paga os meus estudos. Nas margens, podemos plantar, e nós sabemos o que fazer aqui – na verdade, é só o que sabemos. Se nos afastarmos do rio, vamos sofrer” – filho de um pescador afetado pela barragem de Mphanda Nkuwa, no rio Zambeze, em Moçambique (16)
A geração de energia hidrelétrica, fortemente impulsionada por políticas climáticas e instituições financeiras como o Banco Mundial, também tem efeitos adversos sobre o ciclo da água e, portanto, sobre as florestas e as comunidades que dependem desses territórios. A construção de grandes barragens paralisa o movimento da água em sistemas de bacias e prende suas correntes, sua fauna e sua flora, e também inunda terras férteis e áreas próximas. As consequências são devastadoras. A parede das barragens bloqueia a migração de peixes e pode até mesmo separar os habitats de desova dos habitats de crescimento. A barragem também prende os sedimentos necessários para a manutenção de processos físicos e habitats a jusante. O sistema de fluxo livre do rio acima da barragem é transformado em um reservatório artificial de água. A alteração ou interrupção do fluxo da água pode ser tão grave como drenar todo um rio, seus braços e a vida que eles contêm (17).
Rios, lagos e lagoas são a base de muitas culturas e meios de subsistência, e o eixo central das economias locais. No final do século XX, a indústria de energia hidrelétrica tinha bloqueado mais da metade dos maiores rios da Terra com cerca de 50.000 barragens de grande porte, desalojando milhões de pessoas (18). Em algumas das bacias restantes com rios de fluxo livre no mundo, como a do Amazonas, a do Mekong, a do Congo e as dos rios da Patagônia, os governos e a indústria estão impondo um conjunto de enormes barragens – todas com o argumento de que são energia “limpa”.
O ciclo da água à venda
Além desse insolente abuso capitalista, o ciclo da água já entrou no processo da chamada financeirização. Ele pressupõe a separação e a quantificação dos ciclos e das funções da natureza, tais como o ciclo do carbono, o ciclo da água, a biodiversidade ou a paisagem – para transformá-los em “unidades” ou “títulos” equivalentes que possam ser vendidos em mercados financeiros ou especulativos (19).
Mas a água é um símbolo da vida e, portanto, une e mobiliza. Desmatamento, poluição e construção de infraestruturas de grande porte prejudicam bacias hidrográficas e fontes de água, alterando a capacidade dos territórios de sustentar os seres vivos, incluindo as comunidades humanas. É essencial apoiar a luta em defesa dos territórios, que são mais do que terras, rios, árvores ou povoados; eles são um todo, onde um elemento depende do outro e de onde se sustenta a vida.
(1) http://www.tni.org/es/primer/el-acaparamiento-mundial-de-aguas-guia-basica
(2)http://es.hesperian.org/hhg/A_Community_Guide_to_Environmental_Health:Cap%C3%ADtulo_9:_Protecci%C3%B3n_de_las_cuencas_hidrogr%C3%A1ficas
(3) http://xandemilazzo.jusbrasil.com.br/noticias/155175596/estamos-indo-direto-para-o-matadouro-diz-o-cientista-antonio-nobre
(4) http://pubs.iied.org/pdfs/17102IIED.pdf
(5) Ver nota (1) e Van der Ploeg, J. D. (2008) The New Peasantries: Struggles for Autonomy and Sustainability in an Era of Empire and Globalization. London and Sterling: Earthscan.
(6) http://wrm.org.uy/es/articulos-del-boletin-wrm/seccion3/sudafrica-resultados-concluyentes-de-investigacion-sobre-los-impactos-de-los-monocultivos-de-arboles-en-el-agua/
(7) http://abrasco.org.br/dossieagrotoxicos/
(8) www.natureworldnews.com/articles/7846/20140701/oil-palm-plantations-threaten-water-quality.htm
(9) http://news.stanford.edu/pr/2014/pr-palm-oil-water-062614.html
(10) http://www.accionecologica.org/petroleo
(11) http://chinawaterrisk.org/big-picture/metals-mining/
(12) www.criticalcollective.org/wp-content/uploads/EndCoalWaterFactsheet2014.WEB-1.pdf
(13) http://es.hesperian.org/hhg/A_Community_Guide_to_Environmental_Health:Agua_contaminada
(14) http://www.ejolt.org/wordpress/wp-content/uploads/2015/04/EJOLT_14_Towards-EJ-success-mining-low.pdf
(15) http://www.ihu.unisinos.br/noticias/539446-em-meio-a-crise-hidrica-minerodutos-utilizam-agua-dos-rios-para-levar-polpa-de-ferro-ao-porto
(16) http://www.foei.org/wp-content/uploads/2013/12/Economic-drivers-of-water-financialization.pdf
(17) http://www.internationalrivers.org/environmental-impacts-of-dams
(18) http://www.worldwatch.org/node/6344
(19) http://www.foei.org/wp-content/uploads/2014/05/Libro-Agua-ATI-espan%CC%83ol-web.pdf