Comparada com a luta para deter a destruição florestal, a resistência das comunidades que dependem da floresta contra os governos que facilitam o controle de empresas sobre os conhecimentos tradicionais e uso de sementes, plantas e animais dos quais essas comunidades dependem e com os quais constroem seus sistemas alimentares, de saúde e espirituais é menos visível, mas não menos importante. Este boletim trata dessa batalha, na qual os interesses são igualmente altos, com relação a quem controla o conhecimento tradicional e intelectual ligado a sementes, plantas e animais. Também se poderia chamá-la de a batalha para defender um modo de vida coletivo que garanta o bem-estar e a sobrevivência das comunidades ou apenas a batalha para defender a vida.
Os acordos de livre comércio estão no topo das agendas de muitos governos, e a ONU está se preparando para mais uma rodada da conferência da CDB (Convenção da Diversidade Biológica). Sendo assim, pareceu ser o momento certo para uma edição do boletim do WRM explorando a forma como o processo de privatização e apropriação da diversidade genética prejudica o modo de vida das comunidades que dependem da floresta.
Uma entrevista com a líder quéchua Blanca Chancoso, do Equador, mostra como a redução da diversidade (genética) a um “recurso genético” que pode ser isolado das complexas interações que a criaram e para o qual podem ser negociados “protocolos de compartilhamento de benefícios” ajudou a preparar essa diversidade para que ela fosse tomada pelas empresas. Uma das principais observações de Blanca é que “Eles não estão compartilhando benefícios, nunca compartilharam qualquer benefício”. É o resultado de muitos anos de experiência acumulada pelos povos indígenas no Equador e no mundo todo, com empresas que entram em seus territórios para tomar não apenas “recursos genéticos”, mas também madeira, minerais e petróleo, ou promover hidrelétricas, plantações de monoculturas etc.
A cobiça das empresas por aquilo que as corporações farmacêuticas, o agronegócio e a Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica nos fizeram chamar de “recursos genéticos” também está levando os governos dos chamados países “biodiversos” do Sul global a facilitar esse controle empresarial sobre a diversidade genética e a “biodiversidade” mais amplamente. O Brasil, por exemplo, está em processo de adoção de uma nova legislação que entregaria “grátis” às corporações transnacionais os “recursos genéticos” sobre os quais os povos indígenas e as comunidades camponesas construíram seu modo de vida e que fornecem seu sustento. Um artigo do boletim descreve como os líderes empresariais tiveram acesso preferencial ao processo legislativo muito antes de que organizações camponesas, povos indígenas, comunidades tradicionais e outras pessoas cujo modo de vida seria afetado gravemente pela nova lei tivessem oportunidade de expressar suas opiniões sobre a legislação proposta. Outro artigo descreve por que, na Guatemala, o Tribunal Constitucional decidiu que o Protocolo de Nagoya, um dos principais acordos internacionais sobre “acesso aos recursos genéticos e compartilhamento de benefícios”, negociado no âmbito da CDB, viola a Constituição do país. A decisão judicial proíbe a transposição do Protocolo para o Direito nacional.
Dois outros artigos descrevem como o conceito ocidental de mundo onde “plantas” e “animais” são abstraídos a “recursos genéticos”, “biodiversidade” e “serviços ecossistêmicos” está permitindo que governos e instituições da ONU, como a CDB, apresentem propostas de “Protocolos de compartilhamento de benefícios”, “compensações de biodiversidade”, “REDD+” ou “biologia sintética”. Essas iniciativas e os instrumentos que elas criam estão se tornando novas formas de biopirataria e pilhagem, ameaçando comunidades e territórios. Os artigos mostram como esses novos instrumentos de pilhagem empresarial andam de mãos dadas com o controle e a vigilância da vida comunitária, uma consequência que a Via Campesina vem denunciando há muitos anos: cada vez mais e com crescente agressividade, camponeses, indígenas e outras populações tradicionais têm restringidos o uso, a conservação e a troca livres de sementes e outras agrobiodiversidades essenciais ao seu modo de vida.
As lutas coletivas de povos e populações que dependem da floresta têm muitas dimensões. Uma dimensão fundamental é a resistência física contra a destruição total nos territórios; outra dimensão crucial é a defesa do uso e do compartilhamento livres de sementes, plantas e animais dos quais as comunidades florestais tanto dependem. Essa diversidade evoluiu em conjunto com os sistemas de cultivo específicos que as comunidades florestais, e principalmente as mulheres dentro dessas comunidades, vêm alimentando há gerações. É essa teia de diversidade que as empresas estão trabalhando arduamente para reduzir a “recursos genéticos” patenteáveis, que possam ser colocados sob controle empresarial. Os exemplos deste boletim mostram por que é tão importante evitar essa captura empresarial das sementes e da diversidade. Eles também mostram como as comunidades e as organizações camponesas estão protegendo seu direito ao livre uso e ao compartilhamento da diversidade que seus sistemas de conhecimento tradicional criaram.
Esperamos que você goste da leitura!