A transição para uma economia de “baixo carbono”: camuflagem verde para um capitalismo mais destrutivo

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Ph: Acilo - Getty Images

Este boletim tem como objetivo refletir sobre a extração, a violência e a opressão relacionadas à chamada “transição” energética e sua camuflagem “verde”. Uma transição do quê? Para quê?

As principais respostas ao caos climático e à devastação ambiental estão desencadeando uma expansão contínua da economia capitalista. Os discursos sobre energia “verde”, “de baixo carbono” e “sustentável” estão essencialmente camuflando o que, na verdade, é a continuação (e expansão, em alguns casos) de um modelo econômico e político baseado na extração em grande escala. Um modelo que se baseia, ao mesmo tempo, na opressão, na exclusão, no patriarcado e no racismo direcionados às comunidades do Sul global.

Este boletim reflete sobre alguns aspectos dessa camuflagem “verde” e pretendemos expor interesses, atores e ameaças ocultados por ela.

Transição, segundo o dicionário, significa “mudança de um estado ou condição para outro”. Então, de que mudança falam as empresas e os governos? Seria “mudar para que tudo continue igual”? Transição do quê? Para quê?

As propostas que estão na mesa mostram que a mudança tem a ver principalmente com a substituição de algumas fontes de combustível fóssil pelas chamadas fontes de energia renovável, ou seja, substituir alguns carros movidos a gasolina ou diesel por carros elétricos; digitalizar a agricultura, a posse da terra e as operações de conservação florestal; certificar e promover algumas energias e processos industriais como sendo “verdes”, “sustentáveis” ou “neutros em carbono”; e, é claro, compensar enormes quantidades de emissões de gases de efeito estufa e perda de biodiversidade, que continuarão aumentando. A mudança que está sendo promovida nem chega a questionar nenhum dos problemas fundamentais da crise climática e ambiental, como a superprodução do modelo econômico e a lógica do consumo. Essa lógica está intrinsecamente ligada aos combustíveis fósseis e a uma matriz energética centralizada e violenta.

A transição energética foi reduzida, em grande parte, a um debate sobre qual tecnologia ou fonte de energia usar, em vez se discutir quem decide sobre quem controla e usa quais fontes de energia. A atual matriz energética, que atende primeiramente às necessidades do mercado industrial e empresarial, deixa milhões de pessoas sem acesso a energia e impacta fortemente as comunidades vulneráveis. Seja na extração de combustíveis fósseis ou nas infraestruturas industriais de energia renovável, seus múltiplos efeitos sobre pessoas e espaços de vida são quase sempre devastadores.

Um artigo deste boletim destaca os impactos perigosos da extração de gás – situado, no campo da “transição verde”, como “combustível limpo” – em Cabo Delgado, Moçambique. Outros artigos analisam os impactos da extração mineral no Brasil, na República Democrática do Congo (mineração de cobalto) e no Zimbábue (mineração de diamantes) para atender à crescente demanda por baterias, carros elétricos e centros de dados na Indonésia. Outro artigo examina as afirmações sobre a geração de “hidrogênio verde”, usando a energia gerada por mega-hidrelétricas, parques eólicos e solares, com base no exemplo do projeto Gran Inga, na República Democrática do Congo. Vários artigos destacam os efeitos dos parques eólicos de grande porte, como é o caso de um que está localizado no estado do Ceará, no Brasil, e a crescente extração de madeira de balsa no Equador, que é exportada para a China para a construção de aerogeradores. Outro artigo destaca o caminho da poluição e da toxicidade que se esconde por trás da economia “digital”. Outro, ainda, trata do uso das certificações como estratégia para legitimar a continuidade do mesmo modelo econômico.

Esses artigos ressaltam que o que essa transição não muda são as relações de exploração e discriminação inerentes à energia em escala industrial, independentemente da tecnologia usada para produzi-la. Quem carrega o fardo mais pesado são as populações que convivem com os territórios sacrificados por essa matriz energética industrial e dependem deles. A energia renovável em escala industrial não muda a violência e a opressão extremas provocadas pela megainfraestrutura necessária para extrair e operar o sistema de energia, nem o modelo econômico globalizado que essa energia alimenta. Além disso, a energia renovável industrial não resolve o problema do consumo excessivo de energia, que é uma das principais causas da crise.

Onde essas megainfraestruturas estão sendo construídas? De onde vêm todos esses minérios e outros materiais necessários? Quem foi expulso, violado, discriminado? Quanta energia é usada para construir e operar essas infraestruturas? Quanta poluição e degradação isso provocará, e para quem? Para onde vão os resíduos desses processos? Para onde vai essa “energia” e aonde ela não chega? Que tipo de sociedades essas infraestruturas permitem? E quais elas destroem?

Tariq Fancy, ex-diretor de investimentos sustentáveis ​​da BlackRock, a maior gestora de ativos do mundo, afirmou que as empresas “operam máquinas com fins lucrativos, que funcionam exatamente como se esperaria (...) Transferir dinheiro para investimentos verdes não quer dizer que os poluidores não encontrarão mais apoiadores. Não faz diferença se você vende suas ações em uma empresa que tem uma pegada elevada de emissões. A empresa continua existindo; a única diferença é que você não é mais dono dela. A empresa vai continuar do jeito que estava, e há 20 fundos de hedge que comprarão essas ações da noite para o dia. O mercado é o mercado”. Ele também enfatizou que as empresas estão apenas investindo em ativos verdes para “não levar prejuízo quando as [mudanças climáticas] chegarem”. (1)

A realidade é que a camuflagem verde da chamada transição significa ocultar o fato de que as empresas de combustíveis fósseis e carvão continuam se expandindo e lucrando como antes. Bancos e outros investidores continuam financiando as principais empresas de combustíveis fósseis que desenvolvem novos projetos polêmicos de exploração de carvão, petróleo e gás em grande escala. (2) E o excesso de produção e a tendência ao consumo também devem continuar. Nos últimos 120 anos, a população humana cresceu cinco vezes (de 1,5 para 7,5 bilhões) enquanto os insumos processados ​​na economia global (biomassa, combustíveis fósseis, materiais de construção, metais) aumentaram aproximadamente treze vezes – de 7,5 para 95 Gt por ano. (3)

Uma redução urgente e drástica da produção e do consumo centralizados de energia em escala industrial deve ser prioridade. Portanto, a discussão não pode ser simplesmente acerca da mudança de uma fonte de energia para outra ou sobre o uso de compensações para alegar que a produção passou a ser “de baixo carbono”. Em vez disso, a discussão deve começar reconhecendo a exploração e a destruição intrínsecas ao modelo econômico dominante. Esse seria um ponto de partida necessário para a mudança em direção a economias mais justas e respeitosas, bem como conceitos, visões e usos de “energia” fundamentalmente diferentes.

O desafio é abrir espaço a debates de baixo para cima, para aprender sobre diferentes conceitos de energia (4). Isso permitiria uma discussão completamente diferente sobre o que é energia e o que a soberania energética implicaria. A transição em curso para uma chamada economia de “baixo carbono” é apenas para alguns, e fortalece as desigualdades e injustiças históricas que são sentidas principalmente por aqueles que vivem dentro e próximo de florestas, terras férteis, turfeiras, rios e mares, bem como bairros urbanos pobres.

(1) The Guardian, 2021, Green investing 'is definitely not going to work’, says ex-BlackRock executive
(2) Five Years Lost. How Finance is Blowing the Paris Carbon Budget
(3) Joan Martinez-Alier, Mapping ecological distribution conflicts: The EJAtlas
(4) Larry Lohmann with Nick Hildyard and Sarah Sexton. Energy Alternatives. Surveying the Territory.