Foto: Localização aproximada dos povos indígenas em isolamento voluntário e contato inicial. Fonte: Pueblos Indígenas en aislamiento voluntario y contacto inicial, IWGIA IPES 2012
Cerca de 90% dos povos indígenas isolados que ainda restam vivem na região amazônica em territórios protegidos por barreiras geográficas que, cada vez menos, tem mantido o homem branco à distância das suas florestas, aquelas onde os ciclos ecossistêmicos e a biodiversidade se encontram mais preservadas. Esses povos mantêm-se em isolamento como defesa de um contato que a experiência lhes mostrou destruidor, seja por conflitos diretos mantidos com o branco, seja por um conhecimento indireto adquirido no convívio com outros povos contatados.
A decisão de isolamento é manifestada por atos de resistência com armas, com armadilhas, símbolos e sinais de advertência e de ameaça dirigidos a invasores, mas principalmente, pela fuga sistemática em direção a territórios cada vez mais distantes das frentes de expansão da “civilização ocidental”, onde tentam manter suas formas tradicionais de reprodução social e material. Territórios cada vez mais escassos e submetidos à avidez e à velocidade com que nesse início de milênio cada centímetro de terra é mapeado, “georreferenciado” e demarcado para a completa conversão da “natureza” em “recursos naturais”. Um “empreendimento global” projetado pelo grande capital, onde não deveriam existir povos nem territórios isolados, apenas insumos incorporados aos processos produtivos, ou rejeitos a serem reciclados “por” e “para” esses mesmos processos. Lugares onde eles resistem, e teimam em existir.
Hoje, no Brasil, segundo dados da FUNAI existem 70 referências de grupos indígenas isolados e 15 referências de grupos indígenas considerados de recente contato.
Aos povos indígenas isolados e de recente contato a Constituição brasileira reconhece sua condição especial de vulnerabilidade quando assegura a todos os povos indígenas o direito a “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.” É certo que o contato indiscriminado com esses grupos têm, historicamente, resultado em redução populacional significativa. É nesse contexto de reconhecimento da vulnerabilidade e do direito à autodeterminação que essas conquistas garantiram aos ‘índios isolados' o direito de assim permanecerem, cabendo ao Estado proteger e fazer respeitar as condições necessárias para sua autodeterminação. Então, quais seriam estas condições necessárias de que os índios isolados e de recente contato precisam, para assim continuarem como expressão de sua autodeterminação?
Na condição de isolados e de recente contato, esses grupos indígenas vivem em estreita relação com o seu ecossistema e dependem de seus recursos naturais (fauna, flora e recursos hídricos), além das relações míticas que mantêm com seus territórios.
Esses condicionantes são fundamentais para assegurar sua reprodução sociocultural. Só priorizando essas condições, o Estado de fato poderá assegurar aos índios isolados e de recente contato a possibilidade de desenvolver, ao seu modo, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a proteção à maternidade e à infância, respeitando “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”.
Portanto garantir um território ecologicamente equilibrado é condição para que esses grupos tenham o essencial para o autosustento e a autodeterminação. Dada a essencialidade territorial para os grupos isolados e de recente contato, agrega-se a necessidade desses territórios e seu entorno encontrarem-se protegidos de invasores bem como de fatores externos que provoquem desequilíbrios ao meio ambiente e transmissão de doenças exógenas ao seu sistema imunológico. Para o caso dos grupos indígenas de recente contato constata-se que além da “essencialidade territorial”, estes grupos agregam a necessidade da “inter-relação cultural” como possibilidade de afirmação das suas identidades, na busca da unidade a partir da diversidade.
As duas faces do Estado: agente de proteção e fator de ameaça
Se os indígenas “contatados”, que se expressam e exercem seus direitos civis por meio de suas organizações e que apresentam menor grau de vulnerabilidade frente à sociedade ocidental (e envolvente) são vitimados por um largo processo de descaso com seus direitos por parte das instituições (estatais e privadas), no Brasil, os grupos indígenas isolados e de recente contato passam a ter também no Estado – aquele que teria a atribuição de protegê-los – um dos principais fatores de ameaça, quando molda seus agentes e instituições para uma “aceleração do crescimento”, onde obras de infraestrutura e a exploração dos recursos naturais são prioridades absolutas.
No contexto do marco regional Sul Americano, a “Iniciativa para a Integração da Infraestrutura da América do Sul” - IIRSA, Plano de Ação Estratégico 2012-2022 – PAE do Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN), da União das Nações Sul-Americanas (conhecido como IIRSA-2), e o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, no nível brasileiro, têm em comum a proposta de desenvolver e integrar a infraestrutura de transporte, energia e comunicação – ou seja, a “infraestrutura econômica”. Projetam estabelecer corredores (aéreos, viários, ferroviários e hidroviários) para incrementar o comércio e estabelecer cadeias produtivas relacionadas diretamente com a exploração dos recursos naturais renováveis e não renováveis, conectadas com os mercados mundiais, principalmente a América do Norte, a Europa e agora, principalmente, a Ásia. Para a realização destes megaprojetos, na concepção de seus idealizadores, é necessário remover as "barreiras" (entenda-se como “barreiras” a Amazônia e a Cordilheira dos Andes e suas populações originárias), o que supõe realizar reformas legislativas importantes para harmonizar as leis nacionais dos 12 países envolvidos na IIRSA-2, e “integrar” as regiões estratégicas com “baixa densidade populacional”, mas com grandes reservas de matérias-primas e biodiversidade da região.
É importante compreender a persistência de um mesmo padrão de colonialidade nos diferentes contextos biofísicos e socioculturais latino-americanas. É a persistência dessa colonialidade que ajuda a compreender tanto os avanços quanto os retrocessos vividos pelos povos indígenas isolados e de recente contato no Brasil dos últimos anos. E essa nova saga desenvolvimentista que coloca os governos sulamericanos a serviço dos mesmos senhores de sempre, ainda que em alguns casos – diferente de outros períodos de modernização acelerada – sejam agora conduzidos por sujeitos historicamente oprimidos pelas políticas coloniais, mas com o risco de estar apenas reconfigurando o modelo de exploração, e dando uma nova face, tanto mais dissimulada quanto mais intensiva, à escravidão.
Extraído de: “Povos indígenas isolados e de recente contato no Brasil. Políticas, direitos e problemáticas”, por Antenor Vaz, abril de 2013, enviado pelo autor, disponível emhttp://wrm.org.uy/es/files/2013/09/Povos_Indigenas_Isolados_e_de_Recente_
Contato_no_Brasil.pdf ; e “Povos indígenas isolados, autonomia, pluralismo jurídico e direitos da natureza, relações e reciprocidades”, Antenor Vaz, Comitê Consultivo Internacional para la Protección de los Pueblos Indígenas en Situación de Aislamiento y Contacto Inicial, e Paulo Augusto André Balthazar, Pesquisador da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, http://onteaiken.com.ar/ver/boletin15/3-1.pdf