A parte oriental da Amazônia no Brasil tem as maiores taxas de desmatamento e degradação florestal do país. Contudo, nesse vasto território ainda existem grandes áreas em boas condições de proteção, que, como confirmam estudos científicos em vários locais do planeta, geralmente correspondem aos territórios de Povos Indígenas e/ou comunidades locais (1). Uma dessas áreas é a Terra Indígena Alto Turiaçu, onde vive o povo Ka’apor, que se estende por 530.524 hectares distribuídos em seis municípios do noroeste do Maranhão. Ali mora uma população de aproximadamente 2.600 pessoas distribuída em 20 comunidades, constituindo o maior território indígena da Amazônia Oriental e também a maior porção de floresta preservada daquela região.
Sobre o cuidado do território: Quem ensina a quem?
O cuidado com a floresta, chamado de conservação pela academia e outros setores sociais, baseia-se, entre outras coisas, em valores e relações profundas com os territórios: valores culturais, de uso, espirituais e políticos. Seus conhecimentos e suas práticas tradicionais lhes permitiram usar e cuidar do território ao mesmo tempo. Esses saberes e conceitos não são estáticos ou imutáveis; pelo contrário, evoluem com as culturas e se adaptam e respondem às necessidades emergentes. Dessa forma, por exemplo, o povo Ka’apor criou estratégias de monitoramento e autovigilância.
Não têm sido poucas as ameaças externas enfrentadas pelos Ka’apor. Ao longo dos anos, as invasões de seu território aumentaram, inclusive com funcionários públicos envolvidos em agressões, arrendamentos e uso de documentos falsos para apropriação indevida de território indígena. Diante disso, em 2012, parte significativa das lideranças das aldeias se uniu e passou a realizar ações de autovigilância. Eles estabeleceram pequenas comunidades nas estradas usadas pelos madeireiros, que mais tarde chamaram de áreas de proteção, ou ka’a usak ha, em seu idioma. Essa foi uma das experiências exitosas que neutralizou a agressão e invasão do território deles.
Em setembro de 2013, os indígenas criaram a primeira área de proteção no município de Centro Novo do Maranhão, onde decidiram, em dezembro daquele mesmo ano, retomar um sistema organizacional denominado Tuxa Ta Pame ou Conselho de Gestão Ka’apor. Trata-se de “uma forma de organização ancestral e coletiva do povo, que remonta e se referem aos antigos Tuxa, ou guerreiros, que deixaram marcas na história por terem lutado, dados a vida, mestres de saberes e cultura, estrategista em defesa do povo e da cultura”, explicaram os membros do Conselho em uma entrevista ao WRM. Nesse sistema não existem mandatários, chefes, caciques ou poder; as decisões não estão centradas em um líder, e sim na comunidade, em grupos e coletivos. “Todos são importantes e possuem um protagonismo na defesa [do território]. Quando tem uma ação de Autodefesa vai o grupo, ninguém diz quem ‘mandou’ comandou, mas todos que se sentiram ameaçados vão para o enfrentamento”, observaram.
Também foi estabelecido o Jupihu Katu Ha, acordo de convivência Ka’apor, criado com o intuito de contribuir para a unidade e exercer uma governança coletiva e responsável. A organização criada em torno do Tuxa Ta Pame se baseia em decisões consensuais, horizontais e participativas.
É necessário destacar a relevância que essas decisões acarretam em termos de autonomia e soberania. As formas próprias e inclusivas de governo e organização, distanciadas de modelos como as democracias representativas, permitem que diferentes setores dos povos indígenas tenham voz e participação. Exemplo disso é a guarda de autodefesa Ka’apor, formada por famílias, mulheres, idosos, crianças e até animais domésticos. Todos têm uma responsabilidade e uma tarefa a cumprir. Ou seja, o território é pensado, vivido, usufruído, apropriado e defendido por todos.
Com o passar do tempo e com o aumento das agressões e ameaças, as ações de defesa territorial se ampliaram. Foram implementadas novas formas de proteção com autovigilância, e foi feito um mapeamento participativo dos ecossistemas bioculturais Ka’apor. Inclusive, foram adotadas e implementadas agroflorestas sintrópicas, um sistema agrícola e produtivo criado há algumas décadas, que imita a floresta em sua organização, principalmente para reduzir insumos externos, acumular e descartar energia. E tudo isso junto com ações solidárias na educação e na saúde.
Porém, à medida que aumentavam as ações de autovigilância, também aumentavam os ataques e assassinatos, nos quais estavam envolvidos madeireiros, fazendeiros, caçadores, comerciantes e políticos locais. Nos últimos dez anos, mais de 50 pessoas foram agredidas, duas comunidades foram invadidas e ocorreram em torno de 15 assassinatos.
Apesar de tudo isso, a floresta pela qual o povo Ka’apor cuida está praticamente intacta. Recentemente, atores estrangeiros que desconhecem esse território chegaram supostamente para ensinar as pessoas a fazer o que elas vêm fazendo há séculos – proteger o seu território –. Esses atores defendem que seja implementado um projeto de REDD. Mas quem deve aprender sobre a relação com a floresta e como cuidar dela? Elas realmente vieram com a intenção de cuidar dela?
A chegada da proposta de REDD e os impactos previstos
No início de 2023, a empresa Wildlife Works e a ONG Forest Trends, ambas dos Estados Unidos, chegaram ao território com a proposta de implementar um projeto de REDD (Redução de Emissões causadas por Desmatamento e Degradação) para gerar e vender créditos de carbono. Elas chegaram sendo introduzidas por indígenas do estado do Pará.
Existe outra organização no território, a Associação Ka’apor Ta Hury do Rio Gurupi, que tem um cacique com quem a empresa e a ONG têm estabelecido maior comunicação. Essa associação, que não representa a totalidade do povo indígena, afirma concordar com o projeto, que supostamente poderia melhorar sua qualidade de vida e proporcionar recursos para complementar as atividades de proteção. Atualmente, há um memorando de entendimento assinado, que é denunciado pelo Tuxa Ta Pame porque nem a empresa nem a ONG os ouviram no processo que levou à assinatura.
Assim como acontece em muitos outros territórios do mundo, onde se concentram as florestas mais bem protegidas e que são objeto de disputa por projetos de créditos de carbono – povos indígenas e comunidades locais sofrem os impactos. Só com o anúncio já são geradas disputas e divisões internas.
Os membros do povo que discordam da proposta se opõem a ela porque o projeto de REDD mercantiliza o modo de vida deles e aumenta os conflitos internos. Eles sabem disso em primeira mão, pois já passaram por experiência semelhante com um projeto de comercialização de madeira seca em seu território entre 2006 e 2013. Naquele caso, sentiram-se enganados pelo próprio Estado, pelo governo federal e até pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Esses atores os envolveram no projeto de comercialização que acabou deixando disputas, morte e sofrimento, uma experiência que eles não querem repetir (2). Infelizmente, a presença de atores externos e sua proposta de projeto já está gerando conflitos e tem aprofundado as divisões entre o povo Ka’apor.
Pelo teor da situação, já foi feita denúncia ao Ministério Público Federal (MPF), segundo o qual qualquer processo que implique consulta prévia exige diálogo com os dois grupos, e o consenso deve refletir um entendimento que seja bom para ambos. (3).
Beto Borges, representante da Forest Trends, quando lhe foi perguntado qual seria a posição da ONG caso não houvesse consenso entre o povo Ka’apor, afirmou que o projeto não deveria continuar, o que reflete a relevância do consenso em uma decisão dessa importância. Mas a resposta do representante da Wildlife Works, Lider Sucre, é bastante diferente, pois não dá importância ao consenso, e sim destaca a decisão coletiva: “Nunca haverá unanimidade absoluta. Num processo comunitário, há sempre diferentes pontos de vista. No final do processo, acataremos a decisão do grupo, seja a favor ou contra” (4). Isso remete imediatamente ao que esse representante entende por decisão coletiva, uma vez que já existe uma decisão de parte do coletivo, que rejeita o projeto.
Como normalmente é o modus operandi de organizações como a Forest Trends e a Wildlife Works, elas começaram a disseminar informações tendenciosas sobre REDD, ao mesmo tempo em que informações muito relevantes não foram socializadas. Por exemplo, as irregularidades, as denúncias e os impactos de outros projetos REDD onde a Wildlife Works está envolvido, no Quênia, República Democrática de Congo e Camboja. (5)
Em novembro de 2023, o jornal The Guardian (6) publicou um relatório baseado na investigação realizada pela Comissão de Direitos Humanos do Quênia e pela ONG SOMO (7), que relata a denúncia contra funcionários de alto escalão da empresa Wildlife Works no projeto Kasigau, naquele país, acusados de abuso e assédio sexual cometidos durante mais de uma década. Homens ligados à empresa usavam sua posição para exigir sexo em troca de promoções e melhores tratamentos. A investigação levada a cabo por um escritório de advogados queniano encontrou provas de “comportamento profundamente inadequado e prejudicial” por parte de duas pessoas.
O próprio presidente da Wildlife Works, Mike Korchinsky, pediu desculpas pelo sofrimento causado e relatou que três pessoas foram suspensas, enfatizando que não se trata de um problema generalizado. A esse respeito, é necessário sublinhar que é muito comum minimizar o significado e dimensão dos abusos deste tipo de projeto (8) e insistir que os incidentes relatados se trata de casos isolados. No entanto, a repetição dos fatos ao longo do tempo sugere um caráter sistémico.
O problema fundamental por trás destas situações gravíssimas é que os projetos de REDD são incentivados e promovidos como uma intervenção exclusivamente positiva para comunidades e territórios, sem mencionar o histórico de impactos negativos. Ou seja, informações essenciais – completas, verdadeiras e imparciais – ficam escondidas das pessoas que se deparam com a tomada de decisão sobre um projeto em seu território.
Qual tem sido a resposta do Tuxa Ta Pame do povo Ka’apor?
Ao identificar a ameaça, o Tuxa Ta Pame determinou que era necessário buscar mais informações que permitissem uma compreensão abrangente do que é o mecanismo de REDD, como funciona, em que se baseia e quais seriam as suas implicações para a população e o território.
Após iniciarem seu próprio processo de investigação, os atores externos chegaram a apresentar uma explicação simplista e tendenciosa sobre o que é o REDD e a geração de créditos de carbono para financiar o projeto, que supostamente começaria a trazer benefícios simplesmente pela assinatura das listas de presença das reuniões. Mas o povo Ka’apor vem investigando, buscando outros pontos de vista e, sobretudo, conhecendo a experiência de outros povos com posição definida sobre o assunto, e assim chegou às suas próprias conclusões.
O conselho Tuxa Ta Pame e as comunidades organizadas em torno dele entendem o REDD como “um mecanismo capitalista de camuflar e manter o mundo poluído, os territórios ameaçados em sua autonomia. Por que transfere responsabilidade do poder público para o poder privado. Porque divide opiniões, monetariza os bens naturais. Sempre defendemos o território por que acreditamos que ele é a nossa vida. Nunca precisamos receber dinheiro para viver e proteger a floresta (9).
A partir dessa compreensão do que é o REDD, eles decidiram levar o tema para seus processos escolares e formativos, que acontecem em três núcleos de formação que orientam cinco centros de cultura e educação comunitária Ka’apor. O tema passou a fazer parte do conteúdo das atividades escolares e formativas, para as quais foram desenvolvidas cartilhas bilíngues de conhecimento. No final de 2023, já fazia sete meses que eles realizavam atividades de formação que deram origem à iniciativa de criar um protocolo comunitário autônomo Ka’apor, atualmente em construção.
O que é necessário, então, para que a floresta continue existindo?
É preciso garantir condições para que o povo Ka’apor permaneça no seu território, de forma segura e adequada, o que implica, entre outras coisas, respeitar suas próprias formas de organização política, de decisão e de gestão de seu território e seus meios de subsistência. Mais uma vez, deve-se ressaltar que projetos do tipo REDD que muitas vezes estão causando conflitos e impactos sem sequer estar aprovado ou em execução, são geralmente estabelecidos em áreas com bom estado de proteção de seus ecossistemas, como é o caso do Alto Turiaçu. Essas condições têm sido garantidas pelo povo Ka’apor, com base em seus conhecimentos, práticas, relacionamento com e de defesa do território, sem a necessidade de projetos externos nem de mecanismos de mercado que condicionem ou ordenem o que deve ser feito, segundo o que indicarem aqueles que promovem esses projetos e mecanismos.
Artigo elaborado pelo Secretariado do WRM, com base em entrevista realizada com membros do Conselho de Gestão Ka’apor Tuxa Ta Pame
(1) Porter-Bolland L. et al, 2012. Land use, cover change, deforestation, protected areas, community forestry, tenure rights, tropical forests. Forest ecology and management. Vol 268:6-17
(2) Video: Intercept Brasil, Empresa americana alimenta conflito indígena para lucrar com reparação ambiental, 2023.
(3) Article: Intercept Brasil, Empresa americana alimenta conflito indígena para lucrar com reparação ambiental, 2023.
(4) Idem 3
(5) REDD-Minus: the rethoric and reality of the Mai-N´dombe REDD+ Programme, 2020; Fortress conservation in Wildlife Alliance’s Southern Cardamom REDD+ Project: Evictions, violence, and burning people’s homes. “We’re proud of our work. The forest, the wildlife, you come to feel they’re yours”. 2021.
(6) The Guardian, Allegations of extensive sexual abuse at Kenyan offsetting project used by Shell and Netflix, November 2023.
(7) SOMO, Offsetting human rights. Sexual abuse and harassment at the Kasigau Corridor REDD+ Project in Kenya, November 2023.
(8) WRM, 15 anos de REDD: Um esquema corrompido em sua essência, abril de 2022.
(9) Entrevista com membros do Conselho de Gestão Ka’apor Tuxa Ta Pame.