Vivemos um tempo cada vez mais caracterizado pela “infraestrutura extrema”. A construção de estradas, linhas ferroviárias e outras infraestruturas que ligam centros de produção e extração de recursos a grandes áreas de consumo está relacionada a formas profundamente antidemocráticas de planejamento elitista.
Vivemos um tempo caracterizado por cada vez mais “infraestrutura extrema”.
Extrema não apenas pela escala da infraestrutura planejada – estradas, ferrovias, transposição de água entre bacias, portos, grandes condutos, zonas industriais e similares.
Extrema porque permite uma extração ainda mais extrema do que antes, abrindo jazidas de minérios e petróleo em áreas anteriormente consideradas inexploráveis.
Extrema porque tem como premissa uma produção ainda mais extrema, permitindo que o capital se transfira para onde a mão de obra estiver mais barata e for mais facilmente explorada.
Extrema porque depende de um tipo de financiamento que é ainda mais extremo do que as formas anteriores, envolvendo, por exemplo, novas classes de ativos altamente arriscadas.
E extrema porque só pode operar por meio de uma política extrema, envolvendo formas elitistas de planejamento que são profundamente antidemocráticas.
Megacorredores
Uma expressão dessa infraestrutura extrema é a pressão pela criação de megacorredores.
Os corredores de infraestrutura não são algo novo, mas os planos que agora estão sendo formulados têm escala antes inimaginável: estradas, ferrovias e outras infraestruturas de transporte ligando os principais centros de produção e extração de recursos aos principais centros consumidores.
Nenhum continente (habitado) fica de fora. Alguns dos planos são nacionais em escala, outros são regionais, e outros ainda, continentais ou quase globais. Centenas de milhões de pessoas seriam afetadas.
Na África, já foram iniciados mais de 30 corredores, principalmente para permitir a extração de produtos agrícolas e minerais. Na América Latina, em torno de 579 projetos foram identificados, ao custo de cerca de 163 bilhões de dólares. O pai dos corredores é o programa Iniciativa de Cinturões e Rodovias (Belt and Road Initiative, BRI) da China, antes conhecido como Um cinturão, uma Rodovia (One Belt One Road), que abrange 60 países (potencialmente metade do mundo) e se estende do Pacífico ao Mar Báltico.
O que está impulsionando esses programas de infraestrutura extrema?
Fontes mais distantes de matérias-primas só se tornaram comercialmente viáveis porque os custos do transporte foram reduzidos por navios, caminhões, trens, além de navios e aviões cargueiros maiores, mais poderosos e mais eficientes. Mas esses navios, caminhões, aviões e trens de carga maiores exigem estradas mais largas, pontes maiores, canais mais profundos e mais amplos, rios mais retos e pistas de decolagem mais longas. E uma onda de desenvolvimento de infraestrutura gera pressões por mais inovações, o que também leva a mais desmatamento. A modernização da rodovia Cuiabá-Santarém, no Brasil, por exemplo, atenderá à expansão das indústrias de soja e pecuária em detrimento das áreas florestais. Da mesma forma, na Indonésia, os ativistas estão preocupados com o fato de que a construção de novos portos, como o que está sendo planejado em Kuala Tanjung, em Sumatra do Norte, estimulará mais desmatamento para o cultivo de dendê. À medida que são desenvolvidas formas maiores e mais rápidas de transporte, torna-se mais fácil para o capital fragmentar a produção e se deslocar pelo mundo em busca da mão de obra mais barata.
A produção extrema floresce.
Mas a produção extrema e a extração extrema também representam um problema para o capital.
O que nos leva ao segundo fator estrutural por trás dos corredores: o que os financistas chamam de “desconexão produção-consumo”.
O problema não é novo. Há quase 150 anos, o intelectual Karl Marx revelou que, quanto mais o capital se expande, mais ele precisa melhorar a infraestrutura para “aniquilar o espaço através do tempo”.
As atuais agências globais de desenvolvimento, como o Banco Mundial, estão bem cientes do problema. Talvez Marx não seja citado no importante documento do banco Relatório de Desenvolvimento Mundial de 2009, mas “aniquilar o espaço através do tempo” é o fio condutor que percorre suas 380 páginas.
O problema pode ser enunciado de forma simples: as distâncias entre pontos de extração de recursos, pontos de produção e pontos de consumo envolvem agora múltiplas jornadas e múltiplas formas de transporte.
Os minérios usados na fabricação de componentes para um computador ou telefone celular, por exemplo, são extraídos no mundo todo. O ouro e o estanho são minérios comuns usados na produção de “smartphones”, ao mesmo tempo em que são responsáveis pela devastação de terras florestais e comunitárias, da Amazônia peruana às ilhas tropicais da Indonésia. E “os consumidores globais” que têm dinheiro para comprar o computador ou o “smartphone” vivem longe das áreas onde os recursos são extraídos e processados.
Essa distância é importante porque o tempo é importante. E o tempo é importante porque quanto mais rápido as commodities puderem ser produzidas e comercializadas, maiores serão os lucros de cada empresa.
A reengenharia da geografia econômica
No entanto, a infraestrutura física extrema – novas rodovias, etc – é apenas uma solução parcial para o problema do capital.
Também são necessárias disciplina logística extrema e desregulamentação extrema para liberar o movimento de mercadorias.
Portanto, os corredores estão sendo transformados em zonas de livre comércio nas quais as tarifas são reduzidas gradativamente, desregulamentam-se leis trabalhistas e outras, e se reduzem os impostos.
Na verdade, a pressão por corredores nada mais é do que uma tentativa deliberada de fazer uma “reengenharia da geografia econômica”. O plano é concentrar atividades econômicas específicas (mineração, agronegócio, turismo, finanças, TI) em corredores específicos, a fim de “aglutinar” mão de obra barata, consumidores e investimentos em benefício do capital. A partir disso, corredores de transporte ligariam esses centros de produção concentrados por zonas a conjuntos aglomerados de consumidores.
Em palavras que poderiam sair de um roteiro da era stalinista, o Banco Mundial insiste: “Nenhum país enriqueceu sem alterar a distribuição geográfica de seu povo”.
A perspectiva é de migração (forçada) em massa, já que mercados e oportunidades de emprego estão cada vez mais concentrados nas cidades e nos corredores que as conectam.
Financiamento extremo
Tudo isso requer financiamento, e a infraestrutura extrema exige “financiamento extremo”.
Em termos globais, será preciso levantar entre 20 e 30 trilhões de dólares entre hoje e 2030.
Governos individuais não têm esse dinheiro. Os bancos multilaterais de desenvolvimento não têm esse dinheiro. A China não tem esse dinheiro. Os Estados unidos não têm esse dinheiro. A União Europeia não tem esse dinheiro.
Como no passado, o capital tem poucas opções além de tentar expandir o leque de fontes de financiamento de que pode se servir, principalmente fazendo reengenharia a “uma classe de ativos” para ser mais atrativo a investidores privados.
Mas os investidores privados não estão interessados em infraestrutura que não produza lucros. Um gestor de fundos chegou a declarar que, do ponto de vista de um investidor, um oleoduto nem é “infraestrutura”, a menos que esteja ligado a um fluxo de renda garantido.
Daí a pressão por Parcerias Público-Privadas, que são centrais a todos os corredores propostos.
A característica definidora das PPPs é que elas estabelecem garantias com relação a renda e/ou taxa de retorno que são contratualmente vinculativas. Como tal, oferecem o que um gestor de fundos caracterizou como a característica definidora da infraestrutura para finanças: “fluxo de caixa estável e contratado no longo prazo”.
As garantias oferecidas aos participantes do setor privado nas PPPs incluem:
- Garantia de lucros – normalmente de 15-20% – que são bancados pelo público.
- Garantia de pagamento da dívida – quaisquer empréstimos que tenham sido feitos são bancados pelo governo se a empresa de PPP não puder pagá-los.
- Garantia de receita mínima – se os níveis de tráfego em uma estrada com pedágio forem menores do que o previsto, o governo compensará qualquer perda de receita.
- Pagamentos por disponibilidade – o parceiro privado é pago pelo público, mesmo que não seja usado, desde que esteja “disponível para uso”.
- Cláusulas de equilíbrio econômico e financeiro – essas cláusulas autorizam uma empresa de PPP a compensar mudanças na legislação ou em regulamentações que afetem negativamente as receitas de um projeto ou seu valor de mercado.
Na verdade, os investidores privados ficam com a maior parte dos ganhos, enquanto o setor público assume todo o risco. E esses ganhos são potencialmente enormes. O valor que costuma ser mais citado para investimentos em infraestrutura no Sul global é de 25%.
Além disso, os “direitos” ou garantias que as PPPs estabelecem são direitos contratuais. Isso significa que eles não podem ser removidos a critério do governo. Uma vez estabelecidos, têm vigência pela duração do contrato.
Antidemocrática, elitista e instável
A direção do deslocamento é profundamente antidemocrática, elitista e instável.
Antidemocrática porque um pequeno grupo de gestores de fundos determina cada vez mais o que é financiado e o que não é.
Elitista porque não se constroem as instalações realmente necessárias e demandadas por comunidades mais pobres (tratamento de água, estradas ligando comunidades, eletricidade solar fora da rede), já que elas simplesmente não geram os altos lucros buscados por investidores do setor privado.
E instável porque a “infraestrutura como classe de ativo” é uma “bolha” financeira fadada a estourar.
Portanto, a infraestrutura extrema está contribuindo para o fosso entre quem se beneficia de extração extrema, produção extrema e finanças extremas e aqueles cujos interesses de classe se opõem à entrega imediata, aglutinando centros de mão de obra barata e devastando a terra em busca de lucro.
É um fosso que reflete diferentes relações com o capital, e é essa divisão que precisa ser mais explorada, explicada e enfrentada.
Nicholas Hildyard, nick@fifehead.demon.co.uk
The Corner House, http://www.thecornerhouse.org.
Leituras complementares:
- Licensed Larceny. Infrastructure, Financial Extraction and the global South, The Corner House
- How Infrastructure is Shaping the World. A Critical Introduction to Infrastructure Mega-Corridors, The Corner House
- Highway destruction as a way to force in destruction of the Amazon forest, Fernside Phillip