Concentração de terras: táticas usadas por atores europeus no exterior

(1) As atuais práticas de concentração de terras incluem a tomada do controle de áreas relativamente vastas através de uma variedade de mecanismos. No processo, o uso da terra adquire um caráter extrativista, independentemente de a concentração ser motivada por pressões de fora ou de dentro do país (segurança alimentar), capitalistas em busca de novos investimentos com retorno rápido, políticas para enfrentar as mudanças climáticas ou outros propósitos. Para os povos indígenas e as comunidades tradicionais e camponesas para quem a terra e as florestas são um meio de vida, esses processos de concentração de terras em grande escala resultam em perda de controle ou do acesso a alimentos, água, medicamentos, abrigo e muitos outros usos locais de florestas e terras. Essa perda de controle ou acesso põe em risco, e muitas vezes destrói, o sustento e as culturas das comunidades e/ou sua autonomia como povos tradicionais ou indígenas. A concentração de terras implica violência direta e/ou indireta sobre as populações locais que se opõem à inevitável perda de terras e florestas em grande escala que ela envolve.

O estudo “A concentração de terras e os direitos humanos: o envolvimento de entidades empresariais e financeiras europeias na concentração de terras fora da União Europeia”, preparado para a Subcomissão sobre Direitos Humanos do Parlamento Europeu, analisa a corrida global por terras no marco dos direitos humanos. O estudo examina as implicações de determinados negócios de terras envolvendo investidores com sede na UE e seu impacto sobre as comunidades que vivem nas áreas onde os investimentos estão ocorrendo.

O documento também analisa o papel do Estado, em cooperação com grandes empresas e agências internacionais de desenvolvimento, dando a impressão de que o uso da terra e os regimes de propriedade que são alvo da concentração são ineficientes, destrutivos ou ambos. Assim, territórios usados por camponeses que praticam agricultura itinerante e pequena agricultura, pastores, pescadores artesanais e povos da floresta que dependem delas para sua subsistência são os alvos mais frequentes desses processos de concentração de terras em grande escala.

Atores da União Europeia e os principais mecanismos de concentração de terras

Entidades empresariais e financeiras da União Europeia (UE) envolvidas na concentração de terras podem estar implicadas em uma série de abusos dos direitos humanos. Atores – financeiros e corporativos, privados e públicos – envolvidos na concentração de terras estão ligados de várias formas entre si e à UE. É importante compreender as principais táticas usadas por essas entidades para tomar a terra:

1. Como empresas privadas com sede na UE assumem o controle sobre a terra

Uma empresa que tem sede ou operações importantes em um Estado-membro da UE pode estar envolvida em um negócio com terras em diferentes pontos da cadeia de investimentos. Pode ser uma instituição financeira ou empresa que tenha fornecido um empréstimo ou adquirido ações em um negócio com terras. Também pode ser uma empresa envolvida na implementação de um determinado projeto (coordenando-o ou o dirigindo) ou um importante cliente do produto. Em alguns casos, as operações propriamente ditas são gerenciadas e/ou realizadas por uma empresa com registro local, geralmente uma subsidiária da empresa com sede na UE (a subsidiária pode ter outros acionistas), mas as operações são coordenadas a partir da sede ou da matriz. A terra pode ter sido adquirida pela empresa local ou pela empresa europeia, por meio de compra, arrendamento ou concessão. A empresa europeia pode receber apoio de seu país de origem para a aquisição das terras, através de intervenção da embaixada ou de apoio financeiro ou técnico de agências de desenvolvimento.

O caso da SOCFIN, com sede em Luxemburgo

A Socfin (Société Financière des Caoutchoucs), cujo principal acionista é o grupo francês Bolloré, é um grupo agroindustrial especializado em plantações de dendê e seringueira. O grupo Socfin é uma rede muito complexa de participações e investimentos cruzados. As holdings financeiras do grupo têm sede em Luxemburgo, enquanto as operações propriamente ditas estão em Luxemburgo, Bélgica e Suíça, e as subsidiárias para a gestão das plantações estão estabelecidas em uma dúzia de países subsaarianos e do sudeste asiático. Embora seja uma empresa muito antiga, com operações que remontam ao domínio colonial belga no então Congo Belga, a Socfin passou por uma significativa expansão de suas operações nos últimos anos, beneficiando-se da crescente demanda mundial por óleo de dendê para alimentos industrializados e agrocombustíveis. A SOCFIN depende em grande parte de autofinanciamento e de empréstimos comerciais para a expansão de suas operações, embora tenha se beneficiado, em várias ocasiões, do apoio financeiro e técnico de instituições financeiras de desenvolvimento, como a Corporação Financeira Internacional (IFC, na sigla em inglês) do Grupo Banco Mundial ou a Corporação Alemã de Investimentos (DEG, na sigla em alemão). Já foram denunciados graves impactos ambientais, sociais e sobre os direitos humanos causados pelos investimentos da Socfin em terras. Em diferentes países, isso levou a conflitos de terra, agitação social e criminalização de lideranças locais (Ver o recente Alerta de ação).

2. Empresas de capital financeiro da UE envolvidas na concentração de terras:

Empresas de capital financeiro incluem instituições tão diversas como bancos, corretoras, seguradoras, prestadores de serviços financeiros, fundos de pensão, fundos e empresas de investimento, e fundos de capital de risco (que investem em negócio de alto risco). As empresas de capital financeiro têm estado cada vez mais envolvidas em negócios de terras desde o início da crise financeira e do aumento dos preços dos alimentos em 2007-2008. Desde então, a terra se tornou alvo dos investidores de capital financeiro que precisavam encontrar novas oportunidades para gerar retornos rápidos ou encontrar um investimento seguro para o dinheiro que não podia ser investido em outros lugares de formas mais lucrativas. Essa tendência está aumentando a importância dos mercados financeiros, das motivações financeiras, das instituições financeiras e das elites financeiras nas aquisições de terras. Os atores financeiros nem sempre são muito visíveis em um negócio que envolva terras, pois podem estar financiando a concentração de terras indiretamente: os bancos podem fornecer crédito a empresas envolvidas em negócios de terras, ou os fundos de pensões ou investidores privados e empresariais podem fazer parte de um fundo que não divulga de onde vêm seus investimentos.

3. A concentração de terras por meio de parcerias público-privadas:

Nas parcerias público-privadas (PPP), o financiamento público é usado para reduzir o risco dos investimentos e facilitar o investimento do setor privado, geralmente por atores empresariais. A parceria pode envolver um ou mais governos e uma ou mais empresas do setor privado. No contexto de grandes negócios de terras, o setor público garante um ambiente que facilite a aquisição de terras e negócios posteriores por empresas privadas, através de intervenções políticas específicas. As PPPs anulam os limites entre agentes públicos e privados e misturam suas respectivas funções e responsabilidades, o que implica o risco de o Estado abrir mão de suas responsabilidades e obrigações públicas. Na verdade, as PPPs permitem que as empresas escapem de muitos riscos envolvidos nos investimentos em terras quando os governos reduzem riscos ou mudam regras e regulamentos para beneficiá-las.

O oleoduto Chade-Camarões

Iniciado em 2000 para transportar o petróleo bruto produzido no sul do Chade ao litoral atlântico de Camarões, o oleoduto de 1.000 km é uma das maiores parcerias público-privadas da África. A propriedade do projeto é de um consórcio petrolífero entre três empresas (Exxon/Mobil, 40%, Petronas Malasya, 35%, e Chevron US, 25%) e os governos do Chade e de Camarões, que detêm uma participação combinada de 3% na parte do projeto referente ao oleoduto. Os recursos usados para garantir a quota de investimento dos dois países foram fornecidos pelo Banco Mundial na forma de um empréstimo (2). Como argumenta Samuel Nguiffo, de CED-AT Camarões, em seu artigo republicado neste boletim (“Infraestrutura, desenvolvimento e recursos naturais na África: alguns exemplos de Camarões”), está claro que os governos incorrem em dívidas, e quem se beneficia são as corporações multinacionais.

4. Financiamento da UE para o Desenvolvimento envolvido na concentração de terras:

As Instituições Financeiras de Desenvolvimento (IFDs) são atores importantes na concentração de terras, ou seja, como facilitadores de negócios de terras e projetos de investimento. As IFDs são bancos de desenvolvimento especializados cuja propriedade majoritária normalmente é de governos nacionais, e contribuem para a implementação da política externa de desenvolvimento e cooperação destes. No entanto, as informações sobre as atividades das IFDs nem sempre estão facilmente disponíveis. As IFDs investem grande parte do dinheiro que captam nos mercados de capitais; algumas podem receber capital adicional de orçamentos nacionais ou internacionais para o desenvolvimento. A escala de financiamento do setor privado oriundo de Instituições Financeiras Internacionais (IFIs) e IFDs europeias aumentou muito. Em alguns casos, o envolvimento de diferentes IFDs pode fazer com que a maioria das ações de uma empresa esteja nas mãos dessas instituições.

As plantações de dendezeiros da Feronia na República Democrática do Congo

A Feronia Inc., uma empresa listada na bolsa de valores de Toronto, tem suas plantações industriais de dendezeiros na República Democrática do Congo (RDC). Em janeiro de 2016, a propriedade da empresa passou a ser majoritariamente da CDC, a Instituição de Desenvolvimento Financeiro do Reino Unido, e de vários outros fundos europeus de desenvolvimento, através de seus investimentos no Fundo Agrícola Africano. Este é um fundo de private equity com sede nas Ilhas Maurício, financiado por instituições de desenvolvimento bilaterais e multilaterais africanas. Seu Fundo de Assistência Técnica (TAF, na sigla em inglês) é financiado principalmente pela “Comissão Europeia e gerida pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA). A TAF é co-patrocinada pela Corporação Italiana de Desenvolvimento, a Organização de Desenvolvimento Industrial das Nações Unidas (UNIDO) e a Aliança para uma Revolução Verde na África (AGRA)”. Além disso, os bancos de desenvolvimento da Alemanha, da Bélgica e da Holanda também estão envolvidos com os investidores. Veja o artigo neste boletim: “República Democrática do Congo (RDC): Comunidades se mobilizam para se libertar de um século de plantações coloniais de dendê”.

5. A concentração de terras por meio de políticas da UE:

As seguintes políticas da UE são particularmente relevantes para o contexto da concentração de terras:

Políticas de investimento:
O atual regime internacional de investimentos, como é promovido pelos Estados Unidos e pelos países-membros da EU, contribui, entre outras graves violações dos direitos humanos, para um ambiente internacional favorável à concentração de terras. Os tratados de investimento são, por natureza, unilaterais e só os investidores podem invocar as proteções deles e fazer reclamações contra Estados, e mesmo processá-los.

Políticas de desenvolvimento:
Nos últimos anos, a UE tem cada vez mais se deslocado a uma abordagem ao desenvolvimento liderada pelo setor privado, argumentando que o envolvimento e o financiamento do setor privado são complementos indispensáveis à assistência da UE ao desenvolvimento.

Políticas de bioenergia e a Diretiva de Energias Renováveis da UE:

A Diretiva foi adotada em 2009 e entrou em vigor em 2010, visando reduzir as emissões de gases do efeito estufa, passando gradativamente a um uso significativo de formas de energia classificadas como renováveis, incluindo os biocombustíveis. Organizações da sociedade civil têm apontado repetidamente a ligação direta entre a concentração de terras e abusos documentados contra os direitos humanos e a política de biocombustíveis da UE, bem como o envolvimento das empresas europeias como atores importantes na concentração de terras nesse contexto. (3)

Políticas comerciais:
Com relação à concentração de terras, uma preocupação central está relacionada aos incentivos criados por meio de acordos comerciais da UE para aquisições de terras em grande escala em países de fora da EU, com vistas a produzir cultivos para o mercado da UE.

Políticas, acordos e tratados climáticos:
Acordos feitos na Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e em eventos relacionados têm efeitos diretos sobre a legislação nacional. Muitos governos de países industrializados e agências multilaterais começaram programas e fundos para impulsionar os mercados de carbono nos países do Sul Global, principalmente os que têm florestas tropicais. A Iniciativa Internacional Climática e Florestal da Noruega, por exemplo, que está pressionando pela implementação de programas de REDD+ na região da Bacia do Congo, os governos alemão e francês, bem como o Banco Mundial, são alguns dos atores relevantes. Grandes projetos de REDD+ estão sendo planejados na República do Congo e na RDC, levantando sérias preocupações sobre a falta de consultas adequadas às comunidades locais, e parece que ambos podem acabar desapropriando esses povos ainda mais. Ver o artigo neste boletim: “Áreas Protegidas na Bacia do Congo: fracassando na proteção das pessoas e da biodiversidade”

6. Concentração de terras por meio de conversão florestal:

Converter florestas em outros usos da terra que sirvam a interesses corporativos é outra forma de concentração de terras. Na última década, a Bacia do Congo tem experimentado um crescimento sem precedentes na demanda por terras para desenvolver grandes plantações de commodities, principalmente de cultivos como o dendê. Essa demanda continua em ritmo acelerado. Uma parte substancial das terras alocadas à produção agrícola em grande escala na região, principalmente de óleo de dendê, está sendo desmatada. As empresas de plantação de dendezeiros estão direcionando florestas também para gerar lucros a partir da madeira que podem vender, ameaçando ainda mais as florestas tropicais e as populações dependentes delas. Além de tudo disso, a conversão florestal em curso está agravando as taxas de desmatamento regionais e está muito relacionada aos abusos dos direitos de terra e uma série de outros impactos sociais (4). Como resultado desses novos eventos, em 2013, a conversão agroindustrial pode já ter sido a maior causa de desmatamento na Bacia do Congo (5).

A expansão dos dendezeiros no Gabão

O grupo SIAT, uma empresa agroindustrial belga, tem operações na Nigéria, em Gana, no Gabão e na Costa do Marfim. Os principais bancos internacionais do grupo são: Grupo KBC (Bélgica), IMC/SBI (Bélgica), DEG (Alemanha), Banco Africano de Desenvolvimento e Corporação Financeira Internacional (IFC) do Banco Mundial. Como resultado de um exercício de privatização implementado pelo governo do Gabão em 2003, o SIAT adquiriu as estatais Agrogabon, Hévégab e o Rancho de Nyanga. Em 2004, foi assinada a convenção de relevo para essas empresas e criada a SIAT Gabão. A empresa é proprietária de plantações de dendezeiros e seringueiras e de indústrias relacionadas, como processadoras e refinarias de óleo de dendê. Grande parte das áreas escolhidas para seus planos de expansão são quase que inteiramente de floresta (6).

Uma luta crucial para as comunidades florestais e camponesas é contra a tomada de terras e a concentração da propriedade da terra, que afetam profundamente as comunidades que dependem de terras e florestas para a sua sobrevivência e seu sustento. Essa luta se tornou ainda mais difícil, não só devido à expansão de agronegócio, mineração, petróleo e gás, plantações de monoculturas de árvores, usinas hidrelétricas, projetos relacionados ao clima, etc., mas também para um maior interesse dos atores financeiros na aquisição de terras.

(1) Este artigo, salvo indicação em contrário, se baseia no estudo “ Land grabbing and human rights: The involvement of European corporate and financial entities in land grabbing outside the European Union” (O apropriação de terras e os direitos humanos: O envolvimento de entidades empresariais e financeiras europeias na apropriação de terras fora da União Europeia), solicitado pela subcomissão sobre Direitos Humanos do Parlamento Europeu (http://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2016/578007/EXPO_STU(2016)578007_EN.pdf)
(2) http://www.columbia.edu/itc/sipa/martin/chad-cam/overview.html#project
(3) http://wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim-do-wrm/secao3/carta-aberta-sobre-a-politica-de-biocombustiveis-da-uniao-europeia/
(4) http://eia-global.org/blog/eia-leads-discussions-on-illegal-commodity-driven-forest-conversion-in-cong
(5) http://www.forest-trends.org/documents/files/doc_4718.pdf
(6) http://wrm.org.uy/wp-content/uploads/2013/04/Etude_sur_limpact_Plantations_palmiers_a-_huile_et_hevea-_sur_les_populations_du_Gabon.pdf