Concessões Florestais, Conceito Colonial

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concesiones
Lucha del Pueblo Mapuche para recuperar sus territorios.

Aos Povos Mapuche em momento
de retomada de seus territórios

Recentemente populações camponesas dos cerrados no Brasil, conhecidas como Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto, vêm questionando o instrumento jurídico de ‘concessão de direito real de uso’ que lhes vem sendo proposto pelo estado brasileiro para regularizar as terras por eles tradicionalmente ocupadas. Trata-se de um instrumento em que o estado concede por tempo determinado o direito de uso, mas mantém a titularidade das terras. Esse instrumento vem sendo usado em situações em que se reconhece o interesse social, incluindo a dimensão ambiental. No caso específico das Comunidades de Fundo e Fecho de Pasto registre-se o uso comum da terra e tudo que nela está implicado - água, fauna e flora incluídas - por essas populações. É comum nessas unidades territoriais tradicionais as famílias disporem de terras de uso unifamiliar junto às suas casas e, nos fundos das suas casas, uma área de uso comum para fins de extrativismo de frutos e madeiras ou para uso como pasto comum ou, quando em terras de uso comum afastadas de suas casas, áreas não-contíguas, chamam de “fecho de pasto” que são usadas para os mesmos fins das áreas de ‘fundos de pasto’.

O questionamento que algumas dessas comunidades vêm fazendo ao uso desse instrumento jurídico chama a atenção pelo fato de tocar no cerne do conceito de ‘Concessão’, expressão que remete “à ação ou efeito de conceder, de tornar disponível, de colocar à disposição; consentimento, permissão”. Esse questionamento se dá a partir de uma condição de origem, a saber, sua existência prévia ao poder do estado que se arvora a condição de poder concedente. Afinal, as comunidades de fundo ou de fecho de pasto conformam um espaço territorial de uso comum enquanto um modo de vida naquilo que pode ser caracterizado como direito consuetudinário logo anterior ao estado e não só cronologicamente, mas também por serem práticas tradicionais que continuam atuando/atuais.

Na verdade, reivindicam enquanto grupo social, o mesmo que o direito internacional reconhece aos estados como uti possidetis de iuris, princípio segundo o qual os que de fato ocupam um território possuem direito sobre este. Com isso, atualizam um debate teórico-político que os Povos Indígenas já vêm colocando acerca de seus territórios, cujas origens são anteriores aos estados dos atuais países em que vivem. Assim, essas comunidades camponesas tradicionais se juntam aos Povos Indígenas e comunidades quilombola/cimarrones/pallenqueros cujos direitos são reconhecidos pelo Convênio 169 da OIT, de 1989, que reforçam uma tendência recente no direito internacional, como se viu com a Declaração das Nações Unidas sobre os Povos Indígenas, de 2007.

Para que se tenha a dimensão da profundidade desse processo de reconhecimento dos seus direitos sobre territórios que já ocupam registre-se que se trata de processos que não se limitam a esses povos e populações tradicionais, haja vista que todo esse reconhecimento está estreitamente relacionado aos processos de descolonização que se seguiram ao fim da segunda guerra mundial, sobretudo na Ásia e na África (1), e, ainda, diante do massacre cometido contra o povo judeu nos campos de concentração nazistas. Desde então, reconheceu-se o direito às minorias étnico-raciais no interior dos estados até então considerados uninacionais.

Recentemente, os Povos Indígenas da América (2) retomaram seu protagonismo chegando mesmo a questionar a exclusividade da designação da sub-região como América Latina, expressão que olvida a existência de povos que não têm origem latina e que, hoje, designam a sub-região com um nome próprio: Abya Yala (3). A Bolívia e o Equador se declaram explicitamente em suas Cartas Magnas como Estados Plurinacionais, em 2010 y 2008 respectivamente, assim como outros estados reconhecem os direitos dos Povos Indígenas, Afrodescendentes e Comunidades Tradicionais aos seus territórios mesmo no interior dos estados, assim não mais uninacionais exclusivamente.

As lutas dos povos e comunidades tradicionais trazem à baila, questionando, o caráter colonial em sua continuidade-descontinuidade, haja vista que “o fim do colonialismo não significou o fim da colonialidade” (4). Afinal, o modo colonial de pensar/agir e sentir – a colonialidade - sobreviveu ao fim do colonialismo enquanto período histórico datado. Isso fica claro com a permanência do conceito colonial de ‘concessão’, de ‘reserva’, de ‘resguardo’ ou de ‘desenvolvimento’ que ainda perseveram nos estados e nos organismos internacionais quando se referem às populações tradicionais ou às concessões sobre territórios de bosques. Olvidam que esses grupos/etnias/povos/classes reivindicam o reconhecimento de seus territórios e alternativas ao desenvolvimento e não de desenvolvimento, enfim, de bem-conviver (Ubuntu, Sumaq Qamaña ou Sumak Kausay) (5) sugerindo outros horizontes de sentido político para a vida.

E o fazem trazendo ao debate um tempo imemorial/ancestral que põe em xeque o tempo colonial e seu horizonte de acumulação de capital [sempre] de curto prazo.

Não é o tempo de nossas florestas e de nossos territórios habitados desde o Pleistoceno, há mais de 19.000 anos, como na Formação Cultural Chiribiquete, na atual Amazônia colombiana. Como fazer ‘concessão florestal’ ignorando, por exemplo, a ‘floresta tropical cultural úmida’, como vem sendo designada a floresta amazônica? A Amazônia possui cerca de 39 bilhões de árvores agrupadas em 16.000 espécies das quais apenas 227 (ou seja, 1,4%) representa metade do total de árvores do bioma. Tais espécies são conhecidas como hiperdominantes. Dentre as espécies hiperdominantes há 85 com populações domesticadas/manejadas cuja dispersão e concentração foram possivelmente influenciadas pela ação humana no passado Sabe-se que o açaí é manejado desde pelo menos 2000 anos A.P, ligado a áreas de floresta amazônica brasileira e colombiana em que há formação de solos com terras pretas, que são solos antropogênicos. O mesmo ocorre há 11.000 anos com a bacaba (Oenocaropus bacaba), o patauá (O bataua), o murumuru (Astrocaryum murumuru), o buriti (Mauritia Flexuosa), o inajá (Attalea maripa) e o tucumã (Astrocaryum aculeatum).

Estudos clássicos mostram que práticas agrupadas como ‘agrofloresta’, indicam que a hiperdominância da floresta amazônica foi ao menos parcialmente construída em um processo coevolutivo entre indígenas, plantas e animais desde o início do Holoceno. E não só na Amazônia como já se identificou em 76 famílias e 240 espécies de plantas com base em estudos de sementes, lenhos, fitólito, grãos de amido e de pólens preservados em sedimentos e artefatos arqueológicos em Belize, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, EEUU, Guatemala, Guina Francesa, Honduras, México, Panamá, Peru, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela.

Como se vê estamos diante de outro paradigma, distinto do eeuurocentrismo e que não separa natureza e cultura ou natureza e sociedade. As florestas não são vazios de ocupação, de cultura. As concessões florestais ou outras (de terras e mineração, p.e.) vêm sendo feitas em áreas que não são vazios demográficos, conceito colonial que ignora que essas áreas são ocupadas há milênios, como vimos. Por isso, aquilo que uma historiografia candidamente chama de expansão civilizatória ou do capital tem sido invasão e desterritorialização de povos e comunidades com muita violência epistêmica e territorial (ecocídio e terricídio).

Essa tensão conflitiva que se configura desde 1492 em Abya Yala|América ganha hoje contornos dramáticos com a luta dos Povos do Wallmapu, no sul do continente, quando os indígenas Mapuche vêm retomando os territórios que lhes foram violentamente arrebatados e sem a sua concessão, se me permitem o termo até aqui usado em sentido impróprio. Tudo indica que novos tempos se abrem quando vemos a Assembleia Constituinte chilena sob a liderança de uma indígena Mapuche propor, em 27 de janeiro de 2022, que o país passe a ser designado como um Estado Plurinacional e Intercultural.
     

Carlos Walter Porto-Gonçalves
Coordenador do LEMTO – Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades – da Universidade Federal Fluminense e Professor do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina - Brasil.


(1) Consideremos que processos de independência das antigas metrópoles coloniais europeias já haviam ocorrido nas Américas desde 1776, no EEUU, 1804, no Haiti, seguido por vários outros países nesse continente.
(2) Podemos admitir que a resistência dos povos originários se deu desde o primeiro momento do processo de invasão/conquista colonial. Entretanto, cabe o registro da grade rebelião que ocorreu no mundo andino sob o comando de Tupac Amaru, Tupak Katari e Bartolina Sissa, em 1781, que praticamente paralisou a exploração de prata e contribuiu para o início dos processos de independência capitaneados pelas elites criollas.
(3) PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter (2006). Abya Yala. In SADER, Emir e Jikings, Ivana. Enciclopedia Latinoamericana. Ed. Boitempo, São Paulo e Madrid.
(4) QUIJANO, Anibal (2005), “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”. In: Lander, E. (org.), A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. CLACSO. Buenos Aires.
(5) Ubuntu, entre os bantus na África, Sumaq Qamaña, entre os aimarás, e Sumak Kausay, entre os quéchuas, nos Andes, são conceitos/cosmogonias como esses povos vêm autodesignando seus modos devida próprios recusando serem identificados com conceitos de forte conteúdo etnocêntrico como o de desenvolvimento.