Em uma reunião em uma comunidade do povo wixárika em Jalisco, no México, com organizações e membros de outras comunidades, a linguagem que tínhamos para nos comunicar era o espanhol. Discutimos ameaças aos territórios, milho, transgênicos e agrotóxicos, “biopirataria” e o patenteamento de plantas e conhecimentos indígenas. A maioria dos participantes era wixáritari (chamados de huicholes, em espanhol). Durante a reunião, eles falavam entre si na sua própria língua, mas diziam palavras como “transgênicos” e “biopirataria” em espanhol.
Notei que no meio de sua conversa, os wixáritaris também disseram “plantas” e “animais” em castelhano. Eu achei estranho essas palavras não existirem na língua deles e perguntei ao Lauro, um dos membros mais velhos da comunidade, que confirmou. Fiquei surpreendido e tentei entender a razão. Lauro pensou por um momento e disse: “Nós não temos uma palavra para todos os animais sem incluir a nós mesmos nem todas as plantas sem nós, como se todos eles fossem uma coisa única [grifo nosso: ‘única´ no sentido de ‘especifica’] e, além disso, onde nós não estamos incluídos”. Cada animal, cada planta, cada ser vivo, assim como cada montanha, rio, estrada e até mesmo pedras e rochas têm nomes, porque todos são sujeitos, fazem parte do mesmo contínuo de seres que formam a comunidade em um território.
É impressionante que conceitos como “biodiversidade” ou “patrimônio biocultural” e outros parecidos estejam distantes dessas concepções muito mais profundas. São conceitos agrupadores de “massas” que não existem, porque são outra coisa. Cada comunidade e cada cultura tradicional tem uma maneira diferente de ser e viver no território, e de se relacionar com os elementos que a compõem.
Colocar tudo o que é vivo, seus sistemas de relações, de subsistência e de apoio mútuo, suas culturas, suas histórias, sob um termo que sintetiza e paradoxalmente padroniza tudo sob um único nome serve para fazer leis – por exemplo, chamar de “serviços ambientais” as funções vitais de sistemas complexos e variados, como florestas, rios, solos, ar, sistemas de respiração e nutrição dos elementos da natureza. Mas essa simplificação conceitual extrema serve para negociar, vender ou emitir títulos por “serviços” para fazer tabula rasa de toda a complexidade e, assim, poder fazer “compensações de biodiversidade”.
Com essa definição, as empresas de mineração, petróleo, extensas plantações de monoculturas e desmatamento justificam a destruição de grandes áreas naturais que muitas vezes são as bases de subsistência das comunidades. Basta que, em outro lugar, mesmo em outro país ou região do mundo, essa empresa ou qualquer ONG internacional de “conservação” aliada a ela “proteja” uma área igualmente grande de “biodiversidade”. Como se a destruição de uma floresta ou uma comunidade pudesse ser compensada ao se poupar a vida de outra comunidade ou deixar em pé outra floresta, em outro lugar. No entanto, esta é exatamente a base das chamadas “compensações de biodiversidade” (biodiversity offsets, em inglês), um dos mais recentes agregados ao lucrativo mercado de “dano líquido zero”: emissão de carbono líquida zero, desmatamento líquido zero, destruição líquida de biodiversidade zero.
Vendo o mundo como um grande mercado, é necessário nivelar, uniformizar e definir medidas comuns que possibilitem o comércio. Assim, tudo pode supostamente ser “compensado” (offset) e, portanto, é possível continuar emitindo gases de efeito estufa, e se podem continuar desmatando e destruindo áreas naturais e de biodiversidade. Não se trata de parar nem de reduzir ou evitar, apenas de que a soma total após a compensação seja zero, de acordo com aqueles que se apoderaram da definição das medidas e do sistema de adição e subtração.
Há muitos exemplos sobre a injustiça de aplicar essa mentalidade. Um dos mais recentes foi publicado pelo WRM sobre as compensações de biodiversidade da mineradora Rio Tinto em Madagascar e mostra o quanto o sistema de compensações de biodiversidade pode ser injusto, embora as negociações internacionais o apresentem como um exemplo. (1)
Os sistemas de compensação, sejam de biodiversidade, de carbono ou outros, têm outros benefícios para empresas e ONGs envolvidas: permitem continuar com as atividades destrutivas e adicionalmente gerar nichos de mercado financeiro especulativo a partir dos bônus ou créditos obtidos a partir da “compensação”. Na verdade, eles não compensam coisa nenhuma, mas essas ações secundárias são uma fonte de negócios e receitas adicionais.
No caso do REDD e da compensação de biodiversidade, a “proteção” de florestas e outras áreas também tira ou limita em muito a gestão que as comunidades fazem sobre seu próprio território e muitas vezes, sua subsistência – ao limitar ou impedir os usos tradicionais da floresta e outras áreas que devem ser submetidas a não intervenção ou a planos de manejo, e que devem se ajustar a normas internacionais, exógenas às comunidades.
Nessa dinâmica perversa, as comunidades podem não só acabar tendo seu território contaminado ou parcialmente destruído, mas também ser deslocadas ou forçadas a migrar devido à falta de sustento de outros territórios que serão usados para “compensar”.
Métrica, vigilância e controle
Outro efeito colateral desses programas é o aumento – em termos de quantidade, precisão e tecnologia – dos instrumentos de vigilância, que também servem para explorar vários tipos de recursos, desde aquíferos e mineração até a identificação de plantas que possam ser objeto de biopirataria e outros usos indesejados.
Para “compensar em zero”, tudo deve ser medido. No caso das florestas e de outros ecossistemas vivos, isso é muito difícil devido à própria dinâmica natural (por exemplo, as florestas respiram: elas absorvem dióxido de carbono, mas também o emitem) e ao fato de que todas as florestas são habitadas. A vida é um estorvo a uma medição precisa, com uma margem mínima de incerteza ou variáveis, que se possa “monitorar, verificar e reportar”, mas principalmente comercializar.
Em vez de aceitar a dinâmica da vida e entender que não é possível sujeitar seus ciclos básicos às demandas dos mercados, os sistemas de REDD inventaram maneiras caras e sofisticadas de medir a “permanência de carbono”, para lhe atribuir preço, em títulos, projetos, etc. Não se trata da permanência e do bem-estar de indivíduos, comunidades e sistemas naturais, mas de medir tudo, reduzido a uma única medida: dióxido de carbono – com os créditos de carbono equivalentes – que, segundo a mentalidade dominante, seria a nova medida de todas as coisas. (2)
Para medir o imensurável (solos, água, florestas são sistemas vivos, dinâmicos e interatuantes e, portanto, não são passíveis de medição), os promotores de programas de REDD desenvolveram um conjunto de três instrumentos: sistemas de satélite de alta resolução, fotografias ou filmagens em infravermelho a partir de drones de asa fixa, que permitem até reconstruções tridimensionais, e equipes de pessoas que vão aos lugares, corroboram e complementam as informações com dados sobre vegetação e solos e estabelecem padrões de referência com GPS. Essas equipes locais – em geral, pessoas das próprias comunidades que serão afetadas – têm um conhecimento único da área, mas não necessariamente compreendem a dimensão de sua participação nessas tarefas. Em casos extremos, como aconteceu em Chiapas, no México, em 2011, com a comunidade Lacandona, foram os membros de um dos povos indígenas da área a ser afetada que receberam uma remuneração mínima para vigiar com armas e garantir que ninguém entrasse na área escolhida, impedindo até a passagem de membros de outros povos indígenas daquele lugar.
Essa forma de “monitoramento” para atender às demandas dos projetos de REDD também é o veículo de novas formas de biopirataria – já que se pode detectar detalhadamente a vegetação e, junto ao conhecimento local, também seus usos e sua localização exata. (3) Isso, combinado com a informação existente em bancos de genes, em bancos de dados de sequenciamento genético de dezenas de milhares de espécies e variedades vegetais, juntamente com a possibilidade de reconstruir os genes com biologia sintética, permite formas de biopirataria que nem sequer são contempladas pelas normas internacionais, como o Protocolo de Nagoya da CDB. Esse protocolo da Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU, que leva o nome pomposo de “Protocolo de Nagoya sobre Acesso a Recursos Genéticos e Participação Justa e Equitativa nos Benefícios Derivados de sua Utilização”, é um instrumento juridicamente vinculante, estabelecido após muitos anos de negociação, supostamente para regulamentar o acesso aos recursos genéticos, garantindo que os benefícios obtidos com o seu uso sejam compartilhados. O Protocolo já era insuficiente para evitar a verdadeira biopirataria, que é a privatização dos recursos, ainda que uma porcentagem dessa privatização vá para o Estado ou alguma comunidade. Além disso, também não contempla as novas formas digitais de biopirataria que estão substituindo as convencionais.
Biopirataria digital, biologia sintética e novas ameaças
Até poucos anos atrás, as empresas precisavam ter a amostra física de uma planta, um inseto ou um micro-organismo para analisá-la e patenteá-la. Agora, com a redução dos custos do sequenciamento genético e o fato de que a grande maioria das informações foi colocada em bancos de dados de fácil acesso, empresas, pesquisadores e até mesmo “biohackers” podem baixar essa informação da internet e reconstruir as sequências genéticas que lhes interessem em um laboratório. Construir organismos inteiros, como vírus, já foi feito repetidamente e cada vez é mais fácil fazer e mais difícil saber quem faz e o que está sendo feito. Também já se construíram bactérias, leveduras e organismos mais complexos sintetizando-os, mas ainda é um processo lento e incerto. Isso não impede que o desenvolvimento avance em ritmo vertiginoso, e ainda há a iniciativa de construir um genoma humano sintético na próxima década. (4)
Os bancos genéticos relacionados a agricultura e alimentação – em sua maioria, públicos ou semipúblicos – deram início a uma colaboração internacional (DivSeek) para compartilhar todas as informações dos diferentes bancos. A intenção parece ser principalmente fornecer/vender o acesso ao setor privado e transnacional, bem como evitar até mesmo a mínima regulamentação sobre publicação e reconhecimento da origem das amostras, ou o “compartilhamento dos benefícios”, que existem no Tratado da FAO sobre sementes (5) e na CDB. A Via Campesina (6), a Rede do Terceiro Mundo e outras organizações alertaram contra essa iniciativa. (7)
Essa forma de biopirataria digital não é sequer considerada no Protocolo de Nagoya sobre acesso a recursos genéticos da CDB, um acordo que, de qualquer maneira, parece mais projetado para dar às empresas segurança jurídica sobre suas patentes e investimentos do que para respeitar e reconhecer os direitos e a enorme contribuição histórica e atual das comunidades indígenas e camponesas que vivem no mundo (leia artigo neste boletim sobre a decisão da Corte Constitucional da Guatemala) Isso só pode ser feito respeitando-se todos os seus direitos e apoiando sua permanência em seus territórios, e não através de contratos de alguma comunidade com uma empresa.
A biologia sintética também encarna muitas outras ameaças
Ela é o instrumento fundamental do que hoje as empresas transnacionais farmacêuticas, de agronegócio e silvicultura chamam de “edição genômica”, para tentar desvincular essas novas biotecnologias da resistência generalizada aos transgênicos. No entanto, todas as técnicas de biologia sintética são formas de engenharia genética, e algumas fazem intervenções ainda mais perturbadoras do que os transgênicos anteriores.
Uma dessas aplicações, a construção de “impulsionadores genéticos” (genes drives, em inglês) é potencialmente mais devastadora do que tudo o que conhecemos até agora, porque poderia ser usada para extinguir espécies inteiras ou manipular os ecossistemas. Por isso, chama-se “engenharia de ecossistemas”. Trata-se de um mecanismo para garantir que a descendência de um organismo silvestre manipulado burle as leis naturais da herança (segundo as quais cada progenitor contribui com 50% da informação genética) e transmita apenas o gene ou genes manipulados a todos os seus descendentes. Seria uma forma de manipular geneticamente organismos selvagens (não cultivados) e de fazer com que eles se reproduzissem indefinidamente. Tecnicamente, essa tecnologia já foi aplicada com sucesso em laboratório, e alguns dos que a desenvolveram têm pedido que ela não seja liberada. Na natureza, certamente haverá muitos fatores, mutações e outras interações que poderiam fazer com que essa tecnologia não prosperasse. No entanto, é extremamente preocupante que a intenção explícita daqueles que a projetaram seja extinguir espécies – que, em sua opinião são “pragas” – o que é altamente arriscado e poderia prejudicar espécies e ecossistemas inteiros. (8) Além disso, também há um potencial muito alto de usos hostis, bélicos, para inocular pragas ou doenças humanas. (9) Por isso, a Convenção de Armas Biológicas e Tóxicas já tem essa tecnologia em sua agenda.
Nós, do Grupo ETC e outras organizações, pensamos que essa tecnologia deve ser proibida ou, pelo menos, colocada sob uma moratória internacional, um tema a ser discutido na 13ª Conferência das Partes da CDB em Cancun, México, em dezembro de 2016.
Silvia Ribeiro, (grupoetc@etcgroup.org)
Grupo ETC
(1) http://wrm.org.uy/wp-content/uploads/2016/04/RioTintoBiodivOffsetMadagascar_report_EN_web.pdf
(2) A esse respeito, é muito útil ver o ensaio La métrica del carbono: ¿el CO2 como medida de todas las cosas? de Camila Moreno, Lili Fuhr, Daniel Speich. https://mx.boell.org/sites/default/files/carbon_metrics-impresion.pdf
(3) Silvia Ribeiro, 2011. REDD, satélites y biopiratería. La Jornada, México, maio de 2011. http://www.jornada.unam.mx/2011/05/07/opinion/027a1eco
(4) Silvia Ribeiro, 2016. ¿Seres humanos sintéticos? La Jornada, 28/5/16. México. http://www.jornada.unam.mx/2016/05/28/opinion/021a1eco
(5) Tratado da FAO sobre sementes: ftp://ftp.fao.org/ag/agp/planttreaty/texts/treaty_portuguese.pdf
(6) Comunicado da LVC: https://viacampesina.org/en/index.php/main-issues-mainmenu-27/biodiversity-and-genetic-resources-mainmenu-37/1877-peasants-rights-belong-to-peasants-don-t-take-a-single-one-away
(7) A Rede do Terceiro Mundo (TWN) publicou uma série de documentos críticos sobre essa iniciativa DivSeek http://www.divseek.org/, acessíveis em www.twn.my/DivSeek.htm
(8) Resumo sobre gene drives e suas implicações: http://www.etcgroup.org/es/content/impulsos-temerarios-los-impulsores-geneticos-y-el-fin-de-la-naturaleza
(9) http://www.etcgroup.org/es/content/detengamos-la-bomba-genetica