O sistema global de uso do fogo que possibilita o transporte de celulose ou óleo de dendê movido a combustíveis fósseis é o mesmo que resulta na fumaça sobre as florestas que queimam na Indonésia. Hoje, predomina uma concepção capitalista de fogo, mas concepções vernaculares continuam evoluindo e lutando contra ela.
Aprender e desaprender sempre foi fundamental para apoiar as lutas em defesa das florestas.
Aprender como as pessoas que dependem da floresta protegem seus territórios e meios de subsistência.
Desaprender doutrinas destrutivas defendidas por muitos economistas, estudiosos da florestas, representantes do Estado e até ambientalistas bem-intencionados.
Às vezes, o que tem de ser desaprendido são usos das palavras mais simples.
Em Bali, na Indonésia, por exemplo, uma das primeiras coisas que as pessoas de fora aprendem é que o que pode parecer uma palavra “neutra” – água – é repleta de sentidos controversos. Movimentos locais têm que lutar constantemente contra a ideia de que a água é um recurso global, separado por si só, que pode ter dono e cuja essência subjacente é expressa pelo símbolo H2O. Em grande parte de Bali, a água é algo diferente: cheia de energia própria e inseparável das florestas, da terra, dos peixes, de Vishnu (uma divindade hindu), da dança e do sempre dinâmico sistema de irrigação subak. (1)
As definições predominantes de muitas outras palavras “simples” também precisam ser desaprendidas – ou, pelo menos, situadas em uma nova perspectiva. Caso contrário, correm o risco de se tornar pouco mais que um resíduo de derrotas políticas.
Por exemplo, a palavra terra conota atualmente blocos geométricos de espaço que podem ser monopolizados por proprietários privados distantes. Mas isso só se tornou possível por causa de centenas de anos de agressão política envolvendo legislação sobre a propriedade, as tecnologias de cercamento, o sistema bancário e a ascensão de Estados poderosos.
Da mesma forma, hoje em dia, palavras como trabalho e emprego se referem principalmente ao trabalho assalariado apenas porque as atividades de subsistência não remuneradas foram sistematicamente desvalorizadas e degradadas, enquanto o trabalho assalariado se tornou predominante em todo o mundo, graças ao petróleo, ao patriarcado e às plantações.
Essas batalhas continuam. Hoje, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), obedecendo às corporações e aos Estados, ainda luta para incluir as monoculturas industriais de árvores na definição de floresta.
Mas essas lutas nunca acabarão. As derrotas nunca podem ser mais que parciais. Os esforços dos movimentos florestais para recuperar palavras básicas como espaços para suas próprias formas de pensar e viver refletem não a nostalgia, mas o oposto: a compreensão de que os conceitos forjados no conflito podem ser – e estão sendo – reforjados.
O fogo do capital
Um desses conceitos é o do fogo. Hoje, uma concepção capitalista de fogo domina o mundo, mas as concepções vernaculares, típicas das culturas, continuam a evoluir e a lutar contra ela. As mudanças climáticas tornam as apostas mais altas do que nunca.
No capitalismo, o fogo se transfere da paisagem aberta para caldeiras, turbinas e câmaras de combustão. Ao mesmo tempo, o fogo usado durante milhares de anos para criar e manter florestas e campos agrícolas se torna suspeito, é vilanizado e até criminalizado. Entretanto, um fogo muito mais intenso, destrutivo e alimentado por combustíveis fósseis dentro de motores e turbinas passa a ser sinal de civilização e progresso, juntamente com a extração e o desperdício que o acompanham.
Então, quando você liga a TV durante a estação seca nas zonas de plantação de árvores do Chile ou de Portugal ou nas florestas estaduais do oeste da América do Norte, você pode saber que ouvirá relatos assustadores sobre incêndios florestais incontroláveis e os bandidos que estariam por trás deles.
Os relatos nunca mencionam os fogos movidos a combustíveis fósseis que, ao mesmo tempo, queimam invisivelmente dentro de cada automóvel e usina térmica em algum lugar do mundo, os quais – apesar do aquecimento global e da devastação que acompanha a extração de combustíveis fósseis – ninguém jamais sonharia em considerar criminosos.
Os relatos também não mencionam que esses dois fenômenos problemáticos são apenas dois lados da mesma moeda.
Eles não mencionam que o processo de expulsar agricultores e moradores das florestas de suas terras – onde muitas vezes terão usado queimadas cuidadosamente controladas para manter baixos os níveis de combustíveis perigosos e manter elevados os níveis de fertilidade e habitat animal – é o mesmo que os concentra em torno das máquinas movidas a combustíveis fósseis que usam e canalizam sua mão de obra.
Eles não mencionam que o sistema global de uso do fogo que possibilita o transporte internacional rápido de celulose ou óleo de dendê é o mesmo que resulta na fumaça que paira sobre milhares de hectares de florestas queimadas na Indonésia.
Também não mencionam que a distribuição industrial de fogo responsável pelo tráfego e o ar poluído em cidades como Los Angeles, Sydney ou Quito é a mesma que permite a acumulação de um crescimento exagerado de plantas nas paisagens próximas, tornando inevitáveis os incêndios florestais que periodicamente destroem os entornos dessas cidades.
O fogo na política climática
A política climática faz com que a maneira como o fogo é organizado hoje seja ainda mais perversa.
A maioria dos formuladores de políticas climáticas é implicitamente guiada pela ideia simplista de que o aquecimento global é causado pelo fogo em abstrato. Eles também sustentam a suposição igualmente simplista de que todo fogo é igual: um processo químico de oxidação sobre o qual podem ser colocados vários acessórios “culturais”, “sociais”, “espirituais” ou “religiosos”, dependendo das circunstâncias locais.
Então, para eles, parece natural supor que a dependência do mundo rico em relação aos combustíveis fósseis é algo que pode ser “equilibrado” se esse mundo rico assumir mais controle sobre as terras e as práticas bióticas de uso do fogo por agricultores e moradores das florestas do Sul global.
Surgem o REDD, os mercados de carbono e os programas de “agricultura favorável ao clima”.
Ignorando ou desrespeitando a diversidade e os méritos ambientais diferenciados de milhares de regimes de uso do fogo típicos das culturas, esses esquemas ironicamente solapam a própria estabilidade climática que afirmam estar promovendo, permitindo que a estupidez sobre o fogo prolifere ainda mais.
Se uma compreensão química unilateral da água é um instrumento de opressão e destruição ambiental em Bali, também há um entendimento globalizado e químico acerca do fogo sendo generalizado de uma forma que ameaça a terra e as florestas em todos os lugares.
Mas à medida que o aquecimento global se agrava e as espécies que dependem do fogo são levadas à extinção, talvez tenha chegado a hora de insistir mais fortemente na história oculta do fogo, a fim de ajudar a abrir novos espaços para os movimentos populares.
Equilibrando a história
Esta história revela muitos fatos importantes.
Por exemplo, que os grãos que alimentam o mundo se originam de ambientes regularmente conectados por incêndios causados tanto por raios quanto por seres humanos.
Que, em tempos pré-colombianos, os povos indígenas expandiram deliberadamente o espaço dos bisões até o que hoje é Nova York, direcionando incêndios que criaram um mosaico fértil de bosques e pastagens, semelhante a parques, em todo o leste da América do Norte.
Que, segundo um crescente consenso arqueológico, os incêndios provocados por seres humanos são, na verdade, parcialmente responsáveis por algumas das florestas mais valiosas do mundo – não apenas em regiões propensas ao fogo, como Austrália, África do Sul e México, mas também na Amazônia.
Mais uma vez, a visão de que a natureza e a humanidade são categorias separadas – que costuma ser atribuída ao pensador francês do século XVII René Descartes – revela-se um equívoco não apenas filosófico, mas também histórico.
Avante com o fogo
Uma visão mais equilibrada do fogo surge onde as pessoas têm espaço e tempo para ouvir e interagir democraticamente com os moradores das florestas.
Na Tailândia, por exemplo, o veterano estudioso das florestas Wirawat Theeraprasat conta a história de como ele foi ensinado, na universidade, que todos os incêndios florestais eram ruins. Somente depois de anos de diálogo com os membros da etnia Karen na condição de chefe de um importante santuário da vida selvagem, ele percebeu a importância ambiental das práticas locais de uso do fogo que ele fora ensinado a desprezar.
Enquanto isso, ao participar de cúpulas climáticas internacionais, o líder Karen mais jovem, Prue Odochao, aprendeu como era importante lembrar aos ativistas do Norte global que as causas do aquecimento global nunca deveriam ser agrupadas. Por exemplo, agricultores Karen usando fogo biótico na superfície da Terra e empresas de combustíveis fósseis extraindo carvão, petróleo e gás de suas profundezas.
“Quantas aldeias Karen”, perguntou Prue, “perfuraram poços de petróleo dentro de suas fronteiras?”
Historiadores do meio ambiente, como Stephen Pyne e Charles Mann – que explicaram os diversos sistemas de uso do fogo em diferentes épocas e lugares, e por que isso é ambientalmente importante – podem ser de grande ajuda para abrir o necessário novo diálogo sobre o fogo. Mas a discussão, como sempre, será impulsionada, acima de tudo, pela contínua luta nas bases.
Larry Lohmann, larrylohmann [at] gn.apc.org
The Corner House
(1) Indonésia: a resistência do sagrado em Bali contra a “revolução verde” e a indústria do turismo, Boletim 237, abril de 2018, https://wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim-do-wrm/secao1/indonesia-a-resistencia-do-sagrado-em-bali-contra-a-revolucao-verde-e-a-industria-do-turismo/
Leituras Complementares
Adeniyi P. Asiyanbi, “A Political Ecology of REDD+: Property Rights, Militarised Protectionism, and Carbonised Exclusion in Cross River”, Geoforum 77 (2016) 146–156, http://www.redd-monitor.org/2017/01/20/redd-in-cross-river-nigeria-property-rights-militarised-protectionism-and-carbonised-exclusion/.
Mike Davis, Ecology of Fear: Los Angeles and the Imagination of Disaster (Verso, Londres, 2018), http://book4you.org/book/3313796/876925.
--------------, “El Diablo in Wine Country”, London Review of Books 39 (21), novembro de 2017.
Silvia Federici, Caliban and the Witch: Women, the Body and Primitive Accumulation (Autonomedia, Oakland, 2017), http://book4you.org/book/2773532/e8ba20.
Matthew Huber, “Energizing Historical Materialism: Fossil Fuels, Space and the Capitalist Mode of Production”, Geoforum 40 (1) (2008) 105-115, https://landscapesofenergy.wikispaces.com/file/view/Huber_Energizing+historical+materialism-+Fossil+fuels,+space+and+the+capitalist+mode+of+production.pdf
Charles C. Mann, 1491: New Revelations of the Americas before Columbus (Vintage Books, Nova York, 2006), http://book4you.org/book/1634396/aea76c. Espanhol: http://book4you.org/book/1189982/813d00.
Stephen Pyne, “Fire Planet: The Politics and Culture of Combustion”, Corner House Briefing Paper 18 (2000), http://www.thecornerhouse.org.uk/resource/fire-planet.
Ivonne Yanez, “Josefina e o Olho D’água contra as plantações nos páramos do Equador”, Boletim 211 do WRM, março de 2015, https://wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim-do-wrm/secao1/josefina-e-o-olho-dagua-contra-as-plantacoes-nos-paramos-do-equador/.