“Direitos” tradicionais à terra na África Ocidental e Central

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Na África Ocidental e Central, as muitas maneiras – radicalmente diferentes, no tempo e no espaço – que as pessoas têm de se relacionar com a terra e a administrar refletem as muitas formas de posse consuetudinária que interagem entre si e se sobrepõem umas às outras e à lei formal. Este artigo destaca as reflexões de quatro ativistas da África Ocidental e Central.

“Por um lado, as comunidades reivindicam a posse de terras que tradicionalmente usaram e adquiriram por meio dos costumes; por outro, os Estados reivindicam a propriedade sobre todas as terras situadas em seus respectivos territórios e concedem apenas direitos de uso às comunidades quando elas precisam controlar e ter a posse da terra específica que vêm usando há gerações”, explica Nina Kiyindou sobre a situação na República do Congo, na África Central. Nina também observa que a República do Congo é um dos poucos países que reconhece a posse consuetudinária, possibilitando às comunidades afirmar seus direitos consuetudinários à posse da terra.

A posse consuetudinária da terra geralmente diz respeito aos sistemas estabelecidos por comunidades e que, via de regra, passaram de uma geração para outra. Esses sistemas procuram expressar a posse, a gestão, as interconexões entre seres humanos e não humanos, o uso e o acesso à terra e aos bens comuns. Ao contrário dos regimes de posse de terras impostos externamente, a posse consuetudinária deriva da própria comunidade e é sustentada por ela. Portanto, é um sistema social, e não um sistema jurídico, e adquire uma enorme capacidade de persistir e ser flexível.

Para refletir mais profundamente sobre algumas dessas questões, o Secretariado do WRM contatou quatro ativistas da África Ocidental e Central: na primeira região, Nina Kiyindou, da República do Congo, e Abass Kamara, de Serra Leoa; na segunda, Michele Ongbassomben e Biyoa Léon, de Camarões.

Não incluímos as respostas integrais devido a limitações de espaço, mas as entrevistas completas (em inglês) podem ser encontradas na página do WRM, em link abaixo deste artigo.

WRM: Você poderia explicar, de acordo com sua experiência, como as leis consuetudinárias sobre uso de terras e florestas costumam ser aplicadas entre as comunidades e nos contar por que você acha que esses sistemas consuetudinários são tão importantes?

Biyoa Léon, sobre a situação em Camarões

O direito consuetudinário se baseia nas práticas de nossos antepassados. Os costumes não são uma regra imposta como um comando dos poderes públicos, e sim se originam do uso geral e prolongado, juntamente com a crença na existência de uma punição se esse uso não for seguido. Os costumes são uma fonte do direito.

O direito consuetudinário de posse da terra é aplicado nas comunidades de diferentes maneiras, segundo os costumes de cada uma, já que não há duas comunidades com costumes exatamente iguais. Existem dois tipos gerais de gestão consuetudinária de terras: a gestão dependente e a gestão independente.

Na gestão de terras dependente, o chefe da comunidade ou chefe de terras tem controle sobre toda a terra, e os donos da terra a ela são limitados. Por exemplo, eles não podem vender nem transferir suas terras a alguém que não seja da comunidade sem antes obter a autorização do chefe. Além disso, quando as empresas de exploração e plantação industrial de madeira se estabelecem em um local, é o chefe que lhes concede a autorização. Se o chefe se recusar a fazê-lo, nenhuma atividade poderá ser realizada no local.

No caso da gestão independente, o proprietário não é obrigado a pedir autorização para usar sua terra. Ele pode cultivar a área que quiser, exceto por terrenos sem divisas, já que todos precisam saber quais atividades são realizadas nessas áreas. Enquanto as culturas de subsistência não geram problemas, as culturas comerciais podem causar alguns, principalmente devido à duração do ciclo. Em outras palavras, o sistema de gestão é muito mais coletivo do que individual. Tudo é importante: o simples fato de ter nascido em uma família dá acesso à terra, e o uso da terra é monitorado não só pelo chefe da família, mas também pelo chefe da comunidade.

As leis de posse consuetudinária da terra organizadas dessa forma envolvem necessariamente responsabilidades. É por isso que o chefe é responsável pela terra da comunidade, e nenhuma área pode ser transferida sem que ele seja informado. Junto ao chefe da terra, também há chefes de linhagem, já que a terra pertence a cada linhagem com um antepassado comum, e o seu chefe deve responder por tudo o que for relacionado à terra.

Nina Kiyindou, sobre a situação na República do Congo

Os direitos consuetudinários de posse são prerrogativas das comunidades locais, principalmente as populações autóctones. Não se pode falar de comunidades locais e populações autóctones sem também estabelecer o vínculo com o acesso, o controle e a apropriação da terra. Cada vez mais, o acesso é garantido através de direitos de uso ou “usufruto”. Na verdade, essas comunidades e populações desfrutam da terra por meio de inúmeras atividades.

As leis e os regulamentos atualmente vigentes [na República do Congo] atribuem a propriedade das terras ao Estado (domínio de terras rurais e urbanas). No entanto, os habitantes rurais que estabeleceram construções, instalações ou benfeitorias que tenham aumentado permanentemente o valor dessas terras antes da entrada em vigor dessas leis têm direito a solicitar o registro em seu nome.

Assim sendo, houve uma abertura para que indivíduos, comunidades locais e populações autóctones adquirissem terras cujo valor tivesse aumentado em função de seu trabalho. Essa é uma oportunidade para as comunidades obterem título de terras que tradicionalmente usam há muito tempo, construindo, plantando árvores frutíferas e preservando locais sagrados. É uma regra para aquisição que só pode ser alcançada por meio de um processo de registro. A lei exige que todas as pessoas e grupos que atendam aos critérios registrem sua terra, para que ela não seja considerada mais sob domínio direto do Estado.

Deve-se observar que esse processo gera problemas, principalmente para populações autóctones cuja noção de desenvolvimento é bem diferente daquela contida na lei de posse da terra. Na verdade, o tipo de desenvolvimento descrito na lei é praticamente inaplicável no caso dos povos autóctones, porque eles não constroem estruturas duradouras [conforme a lei descreve]. Eles usam materiais florestais de curta duração; são nômades/seminômades, têm colmeias, plantas medicinais e catalpa (também conhecidas como árvore de lagarta). Mas o “desenvolvimento” é um componente central do enunciado e do reconhecimento dos direitos consuetudinários à terra, de acordo com o Artigo 7 do Decreto 2006-256, de 28 de junho de 2006, sobre estabelecimento, atribuição, composição e operação de uma entidade ad hoc de registro de direitos consuetudinários à terra. Devem ser tomadas medidas específicas com relação às populações autóctones, nos termos do artigo 32 da Lei de promoção e proteção das populações autóctones da República do Congo: “O Estado facilita a delimitação dessas terras com base em seus direitos consuetudinários de posse da terra para garantir o reconhecimento. Na ausência de títulos de terras, as populações autóctones mantêm seus direitos consuetudinários à posse das terras pré-existentes”.

Michele Ongbassomben, sobre a situação em Camarões

A propriedade coletiva é a principal característica dos sistemas consuetudinários de posse da terra. Nesse tipo de sistema jurídico, o acesso à terra vem sendo garantido por sua ocupação durante gerações. É um antigo modo de ocupação baseado no direito de cortar suas árvores. Além disso, na lei consuetudinária, a terra é distribuída segundo a linhagem, e os membros de uma determinada linhagem têm espaços comuns que são posteriormente divididos entre as famílias. Todos na aldeia conhecem e aceitam os limites das áreas. Portanto, a comunidade da aldeia e a comunidade familiar são os dois eixos da gestão consuetudinária da terra. O sistema tradicional é importante porque ajuda a proteger o patrimônio da comunidade. Na verdade, como a posse da terra é coletiva no direito consuetudinário, a terra é inalienável.

WRM: Você pode descrever como as comunidades que você conhece organizam o “direito” a usar a terra de acordo com as leis consuetudinárias? Esse direito vem com certas responsabilidades?

Abass Kamara, sobre a situação em Serra Leoa

De acordo com as leis consuetudinárias relativas ao uso da terra, nenhuma pessoa na comunidade tem direito de alocar a terra de sua família a um estranho para fins agrícolas sem informar o chefe da aldeia. Embora a terra em questão possa ainda não pertencer ao chefe, ele deve ser informado sobre isso porque todas as disputas de terras são encaminhadas inicialmente aos líderes tradicionais, antes de ser levadas a tribunais formais. Isso ocorre porque, no caso de quem faz uso da terra querer reivindicar a terra que lhe foi concedida, o líder tradicional seria uma testemunha e um árbitro muito importantes para julgar esses assuntos, em seu próprio nível.

É importante que proprietário e quem faz uso da terra entendam a necessidade do direito do outro à terra em qualquer momento. Às vezes, quem faz uso da terra deve pagar um arrendamento anual ao proprietário para ser informado sobre quem possui o direito de propriedade. Também é verdade que alguns proprietários não pedem um centavo de quem faz uso da terra, por considerarem que o uso é algo divino. Também é responsabilidade de quem a usa cuidar da referida terra enquanto ela estiver sob sua custódia.

Biyoa Léon, sobre a situação em Camarões

A aplicação do direito consuetudinário tem várias características e envolve diferentes métodos de aquisição de terras. Existem vários sistemas consuetudinários de posse da terra:

- O sistema privado, que leva em consideração grupos de indivíduos e unidades familiares criadas por casais. Assim, dentro de uma comunidade, diferentes famílias podem ter direitos exclusivos sobre áreas de terra. Por exemplo, um catequista se estabelece com sua família próximo à sua aldeia e passa a ser dono de um terreno na aldeia anfitriã;

- O sistema comunitário, no qual cada membro do grupo tem o direito de usar os bens da comunidade de forma independente;

- O sistema de acesso aberto, no qual ninguém tem direitos específicos atribuídos a si e ninguém pode ser excluído. A diferença entre acesso aberto e o sistema comunitário é que, no segundo caso, os indivíduos que não pertencem à comunidade não têm permissão para usar a terra comum;

- O sistema público, no qual os direitos de propriedade – por exemplo, direitos de uso de pastagens, florestas, florestas sagradas ou terras agrícolas da comunidade – são atribuídos a uma entidade pública. Esse sistema é justificado pela concentração de plantações de culturas comerciais, como o cacau, em uma única área. O chefe detém essas áreas em nome de todos os cidadãos.

Além desses sistemas diferentes, a outra característica principal da lei consuetudinária de posse é a pessoa com poderes para administrar a terra. É por isso que se faz uma distinção entre o papel religioso e o papel jurídico. Outros preferem falar do conceito espiritual animista do mundo e da exigência social de solidariedade entre todos os homens.

O papel religioso e o papel espiritual animista têm o mesmo objetivo e são exercidos pela mesma pessoa, ou seja, o chefe da terra, porque existe uma relação divina entre a terra e os homens. Portanto, esse chefe da terra é responsável pelas orações e os sacrifícios para que os deuses da terra concedam uma produção generosa.

O chefe da aldeia exerce o papel jurídico e/ou garante a existência social da solidariedade, e é responsável por resolver todos os conflitos dentro de sua comunidade e cuidar do bem-estar de todos os seus homens. Ele garante a paz entre eles. No entanto, às vezes a mesma pessoa, o chefe da aldeia, tem função religiosa e jurídica. Isso é determinado pela lei consuetudinária de posse da terra.

E a aquisição da terra? Para manter a terra, isto é, tornar-se seu dono, é preciso adquiri-la. Existem duas maneiras principais de se adquirir terra: a apropriação violenta e a apropriação não violenta. A apropriação não violenta da terra é expressa pelo direito de cortar árvores ou “direito do machado” e pelo direito ao “corte e queima”. Esse direito é dado à primeira pessoa para cortar uma área de floresta não explorada. Quanto mais forte for um camponês, maior a área que ele pode cortar. O direito ao “corte e queima” é um corolário agrícola do direito ao corte, uma vez que a agricultura é praticada em terra que foi cortada e queimada. Tudo o que alguém precisa fazer para se tornar dono de uma área de terra é cultivá-la. No entanto, uma pessoa também pode usar a força física não para se tornar o primeiro a desenvolver uma terra, e sim para tomar terra onde já há desenvolvimento. Essa é a apropriação violenta, em que um grupo, uma aldeia, um clã ou uma tribo ataca outro grupo ou comunidade para expulsá-los e assumir suas terras. Essa é a terra conquistada, que se torna um troféu de guerra.

Michele Ongbassomben, sobre a situação em Camarões

A terra é sagrada nas sociedades de base consuetudinária. A principal maneira de ter acesso à terra continua sendo a herança consuetudinária. Esse tipo de direito também reconhece os direitos individuais como modo de apropriação da terra e a propriedade coletiva em nível de aldeia. Nesse caso, o chefe da aldeia administra a terra, mas não a controla. Em algumas regiões, a terra pode ser dividida em áreas para agricultura e pecuária.

WRM: Na sua opinião, quais são os principais benefícios e problemas do uso do direito consuetudinário? Por que você acha que há tantas diferenças entre os “direitos” de homens e mulheres ao acesso à terra nesse sistema?

Nina Kiyindou, sobre a situação na República do Congo

[A República do Congo é um dos poucos países que reconhece legalmente a posse consuetudinária.] O principal benefício da lei sobre o direito consuetudinário de posse é o reconhecimento de que ele representa uma garantia inegável. A lei criou entidades responsáveis por documentar e reconhecer esses direitos em todos os departamentos (estados). Essa fase possibilita que as comunidades passem de uma situação em que seus direitos à terra são inexistentes para uma situação em que têm direitos. Na verdade, a documentação e o reconhecimento já conferem status legal aos direitos consuetudinários à terra.

O importante atualmente é informar e conscientizar comunidades locais e populações autóctones. As comunidades desconhecem a existência de entidades cuja tarefa é documentar e reconhecer os direitos consuetudinários de posse da terra e realizar todos os processos. Elas estão usando cada vez menos esse mecanismo, que, no entanto, é garantido. O processo para converter terras consuetudinárias em terras juridicamente reconhecidas envolve gastos que geralmente estão fora do alcance das comunidades.

A lei não faz qualquer distinção entre os direitos humanos e os das mulheres em termos de direitos consuetudinários de posse, porque o princípio da igualdade jurídica entre os gêneros é promovido. Na prática, contudo, o peso de muitas normas sociais tradicionais mantém as mulheres na posição de vítimas em relação aos direitos consuetudinários de posse. Essas normas incluem:

  • A cultura da masculinidade que resulta na exclusão das mulheres,
  • crenças e
  • estereótipos.

Abass Kamara, sobre a situação em Serra Leoa:

O principal benefício de se manter o direito consuetudinário é que a terra permanece nas mãos de membros das comunidades locais e não nas de estrangeiros ricos que têm tudo para comprar a terra dos pobres nas províncias de Serra Leoa.

Por outro lado, as leis consuetudinárias têm sido usadas para negar às mulheres o direito de acesso, controle e propriedade da terra. Os homens temiam que a terra de  propriedade de mulheres pudesse ser transferida às famílias dos maridos no futuro. Essa é uma prática muito ruim, que pode ser alterada sem repercussões negativas. É tudo uma questão de ganância dos homens nas províncias do leste e do norte de Serra Leoa, onde isso prevalece.

WRM: Atualmente, muitos órgãos do Estado, ONGs e agências internacionais tentam substituir o direito consuetudinário pelo sistema jurídico ocidental “oficial” (principalmente fornecendo terras individuais). Como isso pode afetar a organização comunitária?

Michele Ongbassomben, sobre a situação em Camarões

Se a posse da terra se tornasse um direito individual, a venda de títulos de propriedade nas comunidades locais explodiria, e os investidores seriam os maiores beneficiados.

Nina Kiyindou, sobre a situação na República do Congo

Eu acho que quando as comunidades permanecem sob um sistema tradicional que não oferece qualquer garantia jurídica, elas continuam em um estado bem conhecido de insegurança da posse da terra. Hoje, estamos testemunhando muitos casos de apropriações de terras relacionados aos desafios econômicos atuais, em que as multinacionais estão investindo implacavelmente em seringueira, dendê (palma), milho, soja, entre outras plantações de monoculturas. Cada vez mais comunidades ficam surpresas com o estabelecimento de grandes plantações em terras que foram tradicionalmente delas por gerações, sem ter sido informadas nem consultadas. Elas são roubadas e não têm a quem recorrer. Para garantir a segurança fundiária, todos os direitos consuetudinários de posse devem ser documentados e reconhecidos. Um laudo seria a prova, e o registro daria acesso ao título da terra, que é definitivo e inquestionável de acordo com o artigo 13 da Lei 17/2000, de 30 de dezembro de 2000, sobre o sistema de posse da terra. Essa lei estipula: “O título da terra é definitivo e inquestionável, exceto nos casos previstos nos Artigos 15 e 32, abaixo. Em tribunais congoleses, ela constitui o único ponto de partida de todos os direitos reais e servidões de propriedade existentes, e melhorias ou investimentos no momento do registro, incluindo todos os outros direitos não registrados”. O principal desafio continua sendo o custo exorbitante das operações de registro de terras. É preciso tomar medidas de incentivo ao exercício efetivo dos direitos consuetudinários de posse por parte de comunidades locais e populações indígenas.

Agradecemos as contribuições de:

  • Abass Kamara, SiLNoRF (Sierra Leone Network on the Right to Food), Serra Leoa:
  • Biyoa León, RADD (Réseau des acteurs du Développement Durable), Camarões;
  • Michèle Ongbassomben, CED (Centre pour l’Environnement et le Développement), Camarões;
  • Nina Kiyindou, OCDH (Observatoire congolais des droits de l'Homme), República do Congo.

 

** Para saber mais sobre a situação das mulheres em relação à terra e leis consuetudinárias em Camarões, você pode ler um artigo escrito por Michèle Ongbassomben para o Boletim 224 do WRM, de maio/junho de 2016, intitulado “A mulher e a propriedade em Camarões: entre o direito e a realidade”: https://wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim-do-wrm/secao1/a-mulher-e-a-propriedade-em-camaroes-entre-o-direito-e-a-realidade/

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