É responsável, sustentável, renovável e certificada uma economia que destrói o planeta?

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certification greenwashing

Os esquemas de certificação que buscam legitimar atividades prejudiciais ao meio ambiente e suas populações com termos como “sustentável” são uma tática de sobrevivência do capitalismo. No marco da transição energética, até a indústria de mineração tenta legitimar seu crescimento imparável. A transição deve acontecer, sim, mas de forma justa e consensual, e não com base em mais mentiras verdes.

O extrativismo de matérias-primas inclui metais e minerais, mas também commodities da agricultura industrial. Ao se referir a elas, o discurso capitalista enfatiza o suposto caráter essencial desses recursos para a economia mundial. Dessa forma, cada vez mais a extração se justifica a qualquer custo e em quantidades que vão muito além da integridade do planeta e da segurança, da vida e da saúde das pessoas.

Como forma de se legitimar, diante das já inocultáveis ​​evidências dos impactos devastadores dessas atividades industriais, as empresas extrativas insistem em estratégias de lavagem de imagem, e isso aumentou durante a pandemia. “Certificações” de cadeias produtivas ou de matérias-primas, uso de conceitos como “sustentável” ou “responsável”, e mecanismos de “compensação” são algumas das táticas que os movimentos ambientalistas denunciam.

Isso se estende à forma como o termo “renovável” é usado para descrever novas fontes de energia nos chamados processos de transição energética – táticas muito enganosas, principalmente no contexto de uma transição que está sendo tudo, menos justa. É exatamente dessa hipótese que eu parto.

A ideia que prevalece é que o crescimento econômico baseado na extração de matéria-prima em grande escala tem que acontecer, não importa como. Com as emissões poluentes das indústrias em seu nível mais alto, os governos declaram que estão concentrando seus esforços em salvar o planeta da crise climática nos termos do Acordo de Paris. Nesse contexto, fala-se de uma transição energética para alcançar a “neutralidade climática”. Em outras palavras, a extração industrial de matérias-primas é vendida como aceitável, desde que a destruição ou a contaminação causadas por outro projeto, em outro lugar, possa ser “neutralizada” ou “compensada”.

Renovável

As energias renováveis ​​são nomeadas para substituir (parcialmente, pelo menos por enquanto) os combustíveis fósseis. Pelas suas características naturais, e graças ao manejo adequado, elas não se esgotam, e existe a possibilidade de utilizá-las constantemente. Para uso doméstico e industrial, elas incluem as energias hidroelétrica, de biomassa, eólica, solar. No transporte, promove-se o uso de biocombustíveis ou agrocombustíveis à base de óleo de dendê ou soja, e o veículo elétrico, que, ao contrário do veículo convencional à base de combustíveis fósseis, não produz emissões poluentes ao circular, mas a fabricação dele próprio e de suas enormes baterias requer uma quantidade e uma variedade muito maiores de metais, e gera um leque de problemas relacionados à sua extração. Assim, a indústria de mineração faz parte dessa discussão, em posição de destaque.

As energias renováveis ​​são apresentadas como a solução “verde” para descarbonizar a economia. A suposta solução que depende de metais e minerais é chamada de Acordo Verde. Em contraposição, a sociedade civil já está criticando a União Europeia por elaborar essa mentira em uma escala tão grande, o que dá um novo impulso, dentro de um marco verde, ao ataque global às matérias-primas. (1)

Para os promotores desse tipo de energia renovável, não é tão importante reduzir a sobre-extração, a produção e o consumo de energia. Em vez disso, eles se concentram em calcular o quanto se reduzem as emissões de gases poluentes quando os combustíveis fósseis são substituídos por fontes renováveis. Mas a verdade é que a contagem do dióxido de carbono é bastante problemática, e é útil ao interesse capitalista de manter a produção e o consumo globais de energia, em níveis cada vez maiores. E não existe um monitoramento real da poluição e dos impactos gerados em toda a cadeia de geração de energia renovável.

Como se não bastasse, o objetivo final de muitos dos novos projetos de geração de energia em todo o planeta não é mais cobrir, pelo menos, as necessidades básicas de energia da população em geral, e sim fornecer energia barata para grandes indústrias como mineração, metalurgia, automóveis, aviação, produção de armas, construção, tecnologias digitais e muitas outras. Isso mostra, entre outras coisas, como esse impulso por energias renováveis ​​deixa inquestionados a violência e o abandono intrínsecos a esse sistema energético.

Sustentável

A verdade é que, hoje em dia, qualquer empresa ou iniciativa pode ser classificada como “sustentável” com um mínimo de esforço. O termo é tão amplo e vago que atividades puramente destrutivas, como extração de petróleo, mineração ou expansão de monoculturas industriais para fins energéticos e para indústria de madeira ou celulose podem se atribuir ou receber um selo de produção “sustentável” ou “responsável”.

Mas muitas vezes, os impactos dessas indústrias são imensos e incluem roubo, apropriação e destruição de terras, causam deslocamento e fome e, portanto, um genocídio de povos nativos e legítimos proprietários dos territórios. Atividades industriais altamente poluentes, usando produtos químicos tóxicos e máquinas pesadas em ecossistemas sensíveis – como florestas tropicais, turfeiras e pântanos, salinas ou desertos – não só fazem avançar a fronteira agrícola, as mudanças climáticas, o abastecimento de água, a regulação das chuvas, incêndios, mas também encarecem os preços dos alimentos. (2)

Às comunidades tradicionalmente sustentáveis, que coexistem com seus territórios, foi imposta a ideia de que “desenvolvimento” é produzir para exportar a países já “desenvolvidos”. Agora, o desenvolvimento é “verde” ou “sustentável” porque “certifica” esses processos de produção e extração que foram denunciados como insustentáveis. Os selos de certificação – há milhares deles – visam convencer empresas financiadoras e vender para o consumidor final, principalmente no Norte global.

Certificável                                                                                               

No marco das crescentes discussões sobre as mudanças climáticas e dos acordos para economias “verdes” ou “de baixo carbono”, tudo é certificável. A maioria das operações industriais, que busca continuar fazendo seus negócios normalmente, não tem outra opção além de recorrer a alguma certificação para lavar sua imagem.

A certificação tem como objetivo determinar se um produto é “sustentável” e conter os riscos envolvidos em sua produção, desenvolvendo critérios ambientais (e às vezes, sociais) que o produto ou operação devem atender.

Mas quem elabora esses critérios? Eles são válidos? Quais elementos de controle existem para sua implementação e seu cumprimento? Qual é o investimento necessário para tornar esse controle efetivo? Quem fará o controle? Quem financia? E quanto às questões de direitos humanos e sociais que não estão sendo consideradas? E o que acontece quando se fala em responder a todas essas perguntas, mas os anos passam e ninguém encontra respostas satisfatórias?

Para todas essas perguntas existem respostas, embora não sejam satisfatórias.

Os programas de compensação de carbono que buscam “neutralizar” a poluição, como os de REDD+, recorrem à certificação de suas atividades para se legitimar diante de críticas contundentes. Iniciativas de certificação de monoculturas (por exemplo, para biocombustíveis), como a Mesa Redonda sobre Óleo de Palma (Dendê) Sustentável (RSPO) (3) e a Mesa Redonda sobre Soja Responsável (RTRS), (4) foram amplamente questionadas, desde seu início, como sendo maquiagem verde, por organizações de direitos humanos e ambientais, incluindo o Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais e Salva la Selva. Quando as organizações ambientais começaram a questionar frontalmente esses esquemas, na primeira década dos anos 2000, um dos desafios foi ter que mostrar à opinião pública que um esquema que se apresentava como solução para um problema ambiental era uma completa farsa. A “solução” para o problema era, na verdade, um problema.

O que essas iniciativas buscam é a aceitação dos produtos, a redução de questionamentos e a abertura de novos mercados mais exigentes. Mas os problemas de fundo permanecem sem solução. As iniciativas ou mesas redondas que pretendem reunir as partes interessadas são altamente dominadas pela indústria. As comunidades afetadas que participaram desses espaços disseram que a experiência foi frustrante. Houve acusações de uso dos afetados apenas para legitimar as mesas redondas. Por meio das certificações, as empresas também buscam vantagens, como participar no mercado de carbono, beneficiar-se de políticas fiscais por meio de subsídios e incentivos ou entrar no mercado como um produto “eco”, com imagem ecológica. Os sistemas envolvem muita burocracia e são difíceis de examinar minuciosamente.

Em geral, os esquemas de certificação são privados e voluntários, ou seja, uma empresa que quer obter certificação tem que procurar outra empresa, uma certificadora, à qual terá que pagar por certificar o produto, o negócio ou a parte do negócio determinada pela empresa contratante. Então, obviamente, se quiser cobrar pelo trabalho e continuar conseguindo clientes e contratos, a certificadora tenderá a escrever em seu relatório mais ou menos o que seu cliente sugerir ou se ajustar às necessidades dele. Sob esse esquema, as certificadoras não podem atuar de forma independente.

As certificações de sustentabilidade são amplamente utilizadas em campanhas publicitárias de empresas. Não há um monitoramento integral do cumprimento, por nenhuma instância. E é muito comum que as empresas certifiquem apenas uma pequena parte de seus negócios, justamente aquela da qual farão mais propaganda, diferente do resto de suas operações insustentáveis.

Um exemplo clássico de como tudo é certificável é o que aconteceu com a barragem de rejeitos de mineração em Brumadinho, (5) no Brasil, que se rompeu em 2019, causando cerca de 300 mortes e muitos outros impactos graves, poucos dias após receber o certificado de estabilidade da estrutura.

Ainda não existe um sistema de certificação de recursos minerais. Nos últimos 10 a 15 anos, foram lançadas várias iniciativas para determinados recursos (alumínio, ouro, estanho) ou regiões específicas, como a Iniciativa para a Garantia de Mineração Responsável (IRMA, na sigla em inglês) ou o fundo do Banco Mundial que promove atividades de mineração “climaticamente inteligentes”. No entanto, elas não cobrem as atividades de mineração globais ou todos os recursos minerais. A União Europeia está trabalhando em um padrão de sustentabilidade para matérias-primas, mas que devido às experiências anteriores nos obriga a analisá-lo de forma muito crítica.

Em meio a belas palavras ecológicas, estratégias que promovem a produção “sustentável” em escala industrial levam à perda de economias locais, ecossistemas, biodiversidade e modos de vida de povos indígenas e outras populações tradicionais. Algumas grandes ONGs conservacionistas fazem parte das mesas de discussão sobre padrões. O WWF é cofundador de vários selos, como o MSC sobre pesca “responsável”, ao qual a própria organização chegou a se opor. (6) O Greenpeace acabou abandonando o esquema de certificação de madeira FSC, (7) alegando que seus termos não garantiam os direitos das pessoas que dependem da floresta, (8) e lançou recentemente um relatório muito abrangente sobre o tema da certificação. (9)

Deve-se observar também que os padrões, princípios e critérios das certificadoras são voluntários e não estão sujeitos à obrigatoriedade, como acontece com leis chamadas de devida diligência, due diligence em inglês. No entanto, a existência de leis não garante o cumprimento se não houver controles, como no caso da FLEGT e da EUTR, legislações europeias para a prevenção da extração ilegal de madeira, que não impede a entrada de madeira ilegal em abundância na Europa. Quem é responsável por garantir que as matérias-primas e a energia sejam realmente recursos renováveis, sustentáveis ​​e responsáveis? Pelas razões expostas, a certificação certamente não é.

Sair da lavagem verde e fazer a transição justa

O fato é que o sistema econômico dominante se baseia em indústrias extrativas tão abertamente destrutivas que um exército de certificadores tenta prometer aos consumidores, bem como a seus financiadores e fontes de subsídios públicos, que “não há problema”. No entanto, não se deve esquecer que, para uma indústria, chamar-se “responsável” é muito fácil. Sê-lo é outra coisa.

São muitos os casos bem estudados de operações empresariais certificadas que, ao analisar as circunstâncias, revelam uma realidade muito diferente da que sugerem as certificações. É o caso das grandes monoculturas de eucalipto da Veracel e da Aracruz no Brasil ou de uma grande concessão madeireira administrada pela empresa IFO na República Democrática do Congo, certificada com o selo FSC de manejo florestal “responsável”. Também é o caso das plantações industriais de dendê, entre outros, da IOI ou da Sinar Mas na Indonésia, com certificação RSPO de dendê “sustentável”. A vigilância exige tanto esforço e recursos que muitos outros casos suspeitos não podem ser totalmente rastreados e seguem em frente, impunes. (10)

A sociedade, principalmente a ocidental, precisa se conscientizar e ser mais exigente: falar de novas fontes de energia como “renováveis” e “sustentáveis” enquanto a geração de energia e seus benefícios estão concentrados nas mãos de algumas multinacionais é enganoso e prejudica outros territórios e seus habitantes. Grande parte das afirmações feitas por meio da publicidade e da mídia de massa, bem como de “certificações” enganosas, é baseada em suposições muito questionáveis e em terminologias e definições confusas, e até mesmo falsas. É necessário, portanto, questionar e se solidarizar com as lutas nos territórios afetados, bem como romper a lógica do consumo excessivo para reduzir a pressão sobre os territórios.

O objetivo das indústrias e de seus financiadores aliados é fazer negócios em base da tecnologia, do crescimento, sendo cada vez mais imposto à força, esquecendo-se facilmente de questões fundamentais, como o respeito à mãe natureza e o cuidado com a vida.

Nesse sentido, é urgente haver regulamentações e leis que incluam itens obrigatórias relacionadas ao comportamento das empresas em termos de direitos humanos, da destruição da natureza e da fiscalização das cadeias produtivas, bem como das respectivas penalidades. Com leis desse tipo e uma ampla solidariedade para com as lutas populares e a priorização dos direitos humanos e da natureza, haveria avanços. Os esquemas voluntários de certificação se transformaram num problema e se não prestarmos atenção aos rastros deixados pela certificação do agronegócio, isso está fadado a se repetir em breve no campo da mineração e de outras matérias-primas. A única solução gira em torno de uma redução radical do uso e principalmente do abuso de recursos.

Guadalupe Rodríguez, ativista e pessoa de contato regional para a América Latina em Salva la Selva/Rainforest Rescue, e  da Rede Sí a la Vida No a la Minería/Yes to Life No to Mining (YLNM)
https://www.salvalaselva.org/  http://www.yestolifenotomining.org/

(1) Impulsando la minería destructiva: la sociedad civil europea denuncia planes de materias primas de la UE en el Pacto Verde Europeo
(2) Índice de preços de alimentos da FAO
(3) Agroindústria pretende “maquiar” de verde o negócio do dendê
(4) Sobre a RTRS e no modo atual de produção de soja
(5) TÜV Süd será alvo de ação coletiva na Alemanha por Brumadinho
(6) Nós nos opomos à primeira certificação MSC para atum-rabilho do Atlântico
(7) Greenpeace saindo do FSC: o que vem a seguir para as mesas redondas de commodities?
(8) Greenpeace denuncia que a certificação faz parte da lavagem verde empresarial e que não está impedindo a destruição de florestas, 2021
(9) Destruição: Certificada
(10) Existem inúmeros estudos e relatórios críticos que apresentam esses ou outros casos, como o mencionado pelo Greenpeace, a investigação da EIA, Quem está vigiando os vigias, ou o livro e documentário O Silêncio dos Pandas. As páginas da web do FSC-Watch e do REDD Monitor são bons recursos sobre o tema da lavagem verde, com muitos exemplos concretos.