“Economia Digital”: consolidando a expansão da extração e da poluição

Imagem
Data Center do Google. Ph. Green Queen

A chamada “economia digital” costuma ser promovida como se tivesse um impacto relativamente baixo sobre o meio ambiente e muito pouca necessidade de recursos materiais. Mas o que (e quem) está sendo ocultado por essas imagens de uma economia quase etérea e mais limpa?

A ideia de que a economia está cada vez mais se tornando “digital” geralmente se baseia no pressuposto de que as tecnologias da informação (de computadores e drones a blockchains (1) e máquinas de reconhecimento) seriam o foco da atividade econômica futura. A chamada “economia digital” costuma ser promovida como se tivesse um impacto relativamente baixo sobre o meio ambiente e muito pouca necessidade de recursos materiais. Mas o que (e quem) está sendo ocultado por essas imagens de uma economia quase etérea e mais limpa?

Para além do alarmante nível de concentração empresarial que acompanha a digitalização da economia, os vários impactos ambientais e sociais das tecnologias de informação são cada vez mais evidentes. E eles incluem não apenas os subprodutos tóxicos associados à produção, mas também a poluição causada pelas enormes quantidades de energia e água necessárias para o funcionamento de centros de processamento de dados como os do Google e do Facebook. Quando se olha para a imensa teia de fios, cabos, torres, geradores e outros equipamentos físicos que sustentam o domínio aparentemente virtual desse chamado “ciberespaço”, ele não parece estar muito distante das formas mais tradicionais de produção industrial. (2)

As enormes quantidades extras de eletricidade necessárias para executar enormes bibliotecas de “big data” por meio de computadores super-rápidos instalados em gigantescos centros de processamento de dados pressionam ainda mais as áreas florestais que contêm fontes de energia hidrelétrica ou combustíveis fósseis. Essas novas demandas imensas de energia também aumentam a pressão sobre a estabilidade climática. Esses centros de dados costumam ser chamados de data warehouses, data farms, server farms ou, mais recentemente, “a nuvem” – um nome mais conveniente, que camufla essas megaoperações por trás dessa imagem imaterial. Combinado, o uso de energia por parte de gigantes de tecnologia como Amazon, Google, Microsoft, Facebook e Apple consome mais de 45 terawatts-hora por ano, o que é quase a mesma quantidade usada anualmente por toda a Nova Zelândia. Essa quantidade deve crescer, pois o surgimento da inteligência artificial e do aprendizado de máquina requer mais poder computacional. (3) Se a “nuvem” fosse um país, seria o sexto maior consumidor de eletricidade do planeta. E, claro, onde se usa energia, gera-se calor. O resfriamento de um “parque de servidores”, até mesmo de médio porte, pode exigir até 1,36 milhão de litros de água limpa e gelada por dia. Uma única fábrica de semicondutores demanda milhões de litros. A disponibilidade cada vez menor de água representa uma das muitas consequências imprevistas, cujas implicações estão apenas começando a ser percebidas. (4)

A digitalização afeta todos os aspectos da sociedade. A fabricação de dispositivos digitais requer a extração de grandes quantidades de recursos minerais. Cada computador depende de centenas de cadeias internacionais de abastecimento que consomem muita energia e emitem resíduos tóxicos, frequentemente em condições perigosas para os trabalhadores envolvidos. Enquanto isso, a varejista “online” Amazon possui e opera uma das maiores estruturas de armazenamento, transporte e logística do mundo.

Ao considerar as várias camadas das cadeias de produção, operação e consumo da “economia digital”, fica evidente que ela está longe de ser “limpa” e que seus impactos são imensos sobre o meio ambiente e o clima e, portanto, sobre as populações que dependem desses espaços de vida. É um fenômeno global caracterizado por histórias de extração, destruição de espaços de vida, condições de trabalho precárias, poluição, degradação ambiental, deslocamento de comunidades, racismo e opressão.

Digitalizando terras e agricultura

Tentativas sofisticadas de digitalizar a agricultura tendem a ampliar o leque e o alcance da extração de recursos por parte das empresas, bem como os esforços do Estado para identificar e perseguir os povos e os pequenos agricultores que dependem da floresta. Grandes empresas financeiras e de tecnologia querem que a agricultura passe a funcionar “online”. Está sendo estabelecida uma combinação de drones, tecnologia 5G, sensoriamento remoto e satélites como espinha dorsal dessa “agricultura digital”, que visa transformar em circuitos de dados os materiais genéticos de sementes, solo e recursos hídricos, bem como operações agrícolas, de transporte, armazenamento e vendas. Enquanto isso, corredores de extração e transporte comandados por computadores ameaçam os meios de subsistência e os territórios de povos e agricultores que dependem da floresta. E saber quem realmente é dono desses dados é fundamental para entender o poder exercido sobre as cadeias de produção de alimentos e sobre os territórios dos agricultores. (5)

Gigantes do varejo, como Amazon, Walmart, Alibaba e Flipkart também estão lucrando com a explosão do mercado de entrega de alimentos. Essas empresas estão estabelecendo parcerias com gigantes tecnológicas para se beneficiar das tecnologias da informação e acessar dados sobre o que as pessoas compram, comem e vestem. Isso as ajuda a melhor influenciar e moldar as escolhas de consumo, de maneiras cada vez mais sofisticadas.

Além disso, há uma tendência cada vez maior a digitalizar a governança fundiária e o uso da terra, e os recursos vinculados a ela. Essa digitalização envolve o uso de tecnologia de localização e medição dos limites das propriedades. E, embora, em teoria essas tecnologias pudessem auxiliar nos processos de titulação de terras, seu uso dentro dos desequilíbrios de poder existentes, que marginalizam a titulação coletiva e os direitos das comunidades que dependem da floresta, faz com que essas tecnologias acabem por validar os processos históricos de concentração de terras.

Um relatório recente da GRAIN analisando cinco regiões de expansão do agronegócio na América do Sul, incluindo Brasil, Colômbia, Paraguai, Bolívia e Argentina, expôs o amplo processo de titulação individual em favor daqueles que acessam, em primeiro lugar, os sistemas de posicionamento digital (GPS) de terras públicas ou ocupadas consuetudinariamente por comunidades. Essa tendência, alerta o relatório, constitui basicamente uma grilagem digital de terras, (6) que está sendo reforçada por ninguém menos que o Banco Mundial. O Banco destinou 45,5 milhões de dólares para o registro da savana brasileira (conhecida como Cerrado) no cadastro ambiental rural e 100 milhões para um cadastro multifuncional na Colômbia. Os cadastros estão sendo usados ​​como uma nova forma de validação de direitos de propriedade, legalizando títulos obtidos indevidamente e resultantes de injustiças históricas, violência e concentração de terras. Uma vez que a violência histórica foi “apagada” pelos cadastros digitais, a origem dos produtos na cadeia de valor – como soja, carne ou dendê – é registrada novamente e validada como “sustentável”. Isso é feito por meio dos sistemas de verificação e rastreabilidade da nova infraestrutura tecnológica dessas longas cadeias produtivas, principalmente por meio da tecnologia blockchain. Além disso, os mesmos sistemas digitais são usados ​​para vigiar e criminalizar quem vive nos territórios – pessoas que foram “apagadas” pelos cadastros digitais.

Outra questão importante é quem controla a infraestrutura física para tornar possível essa digitalização. Em dezembro de 2020, o governo indonésio ofereceu ao bilionário americano Elon Musk a ilha papua de Biak, onde vivem cerca de 100 mil habitantes, como uma possível área de lançamentos para a SpaceX. O plano é lançar e manter até 42 mil satélites na órbita da Terra, a fim de fornecer internet sem fio de alta velocidade em todo o planeta, bem como suporte para explorações e possível colonização futura de Marte. Isso exigiria o lançamento de foguetes quase que diariamente. A agência espacial russa Roscosmos também pretende estabelecer uma grande área de lançamento de foguetes em Biak, até 2024. A ilha também fica em uma região rica em cobre e níquel. Esses metais são essenciais para a produção de foguetes, além de baterias para veículos elétricos de longa autonomia, como os produzidos pela Tesla, empresa também controlada por Elon Musk. (7)

Economia digital = economia sem papel?

Já estava claro, há algum tempo, que a “economia sem papel” supostamente benéfica para a floresta, anunciada pelos entusiastas da “economia digital” do século 20, nunca iria se concretizar. Seus defensores há muito afirmam que “deixar de usar papel” pode poupar dinheiro, aumentar a produtividade, economizar espaço, facilitar a documentação e o compartilhamento de informações, manter as informações pessoais mais seguras e ajudar o meio ambiente. Eles também alegaram que o uso de papel seria reduzido e que a expansão da indústria de celulose e papel seria desacelerada por essa tendência “digital”. Mas não foi isso que aconteceu.

Grande parte da mudança na indústria de celulose e papel aconteceu em direção a materiais de embalagem, devido às enormes demandas associadas ao envio de produtos adquiridos “online”, junto com outras demandas constantes e crescentes, como papéis sanitários e embalagens de alimentos.

As compras “online” exigem embalagens para otimizar a exibição de produtos nas prateleiras com vistas a um armazenamento mais eficiente. Esse crescimento envolve uma demanda maior por caixas de papelão. As vendas “online” de produtos de celulose e papel estão crescendo nos Estados Unidos e na China, que são os maiores mercados. Além disso, a demanda global por vários tipos de produtos para embalagem também parece estar aumentando. (8)

Essa demanda contínua é sentida principalmente nos territórios das comunidades que enfrentam os impactos devastadores das plantações de monoculturas de árvores. Em fevereiro de 2021, o Ministério da Indústria da Indonésia confirmou que pelo menos seis novas fábricas de celulose começaram a operar no país recentemente, o que aponta para um aumento da demanda por madeira para esse fim e, portanto, por novas plantações para alimentá-las. Duas das fábricas já estão operando com capacidade total, três devem fazê-lo até o final deste ano, e a sexta aumentará sua capacidade para 85% este ano. A produção combinada quando estiverem funcionando em plena capacidade será de um milhão de toneladas de celulose por ano. Também existe um plano da maior empresa de celulose da China, a Nine Dragons Paper, de se expandir para a Indonésia com o objetivo de produzir seis milhões de toneladas de celulose por ano. (9) As centenas de milhares de hectares de florestas, turfeiras e espaços de vida de comunidades transformadas em plantações de monoculturas de árvores na Indonésia já sofreram impactos devastadores, além de aumentar os focos e a intensidade de incêndios descontrolados. A construção de novas fábricas de celulose apenas agravará esses impactos, principalmente para a vulnerável região de Papua.

O lado “verde” da “era digital”

Cientes do enorme rastro de poluição que as grandes empresas de tecnologia estão deixando, e tentando evitar que a suposta economia “digital” “mais limpa” perca toda a legitimidade, essas empresas vão aderir a campanhas “verdes” de relações públicas.

A Microsoft, por exemplo, prometeu ser “negativa em carbono” até 2030, ou seja, removeria mais dióxido de carbono da atmosfera do que emite a cada ano. Até 2050, a Microsoft diz que “removerá do meio ambiente todo o carbono que emitiu, seja diretamente ou pelo consumo de eletricidade, desde que foi fundada em 1975”. Isso será feito principalmente pela captura subterrânea de dióxido de carbono e pelo uso de projetos de compensação.

A Apple se comprometeu a ser 100% “neutra em carbono” até 2030, com relação à sua cadeia de fornecimento e seus produtos. A Amazon diz que seus envios terão “emissão líquida zero” e tem como meta que 50% de todos eles o sejam até 2030. O Google se comprometeu a operar todos os seus centros de dados com eletricidade livre de carbono (como energia hidrelétrica, eólica e solar) 24 horas por dia, até 2030.

Esta lista de compromissos apenas reforça a realidade de que a demanda por grandes projetos de compensação de carbono vai crescer, o que, por sua vez, aumentará ainda mais a pressão sobre florestas, territórios de comunidades e terras férteis.

Joanna Cabello, joanna@wrm.org.uy
Membro do Secretariado do WRM

(1) A tecnologia blockchain permite que ativos, como dinheiro, sejam transferidos “ponto a ponto” – diretamente, de uma parte a outra, sem a participação de terceiros, como bancos ou agentes fiduciários. Os dados das transações são armazenados em blocos marcados com data/hora e vinculados entre si na forma de códigos e sistemas de criptografia, formando uma cadeia. Cópias dessa cadeia são armazenadas em vários dispositivos e atualizadas a cada nova transação, o que torna virtualmente impossível alterar as transações retroativamente. Os sistemas blockchain costumam usar os chamados “contratos inteligentes” para facilitar as negociações de contratos, bem como a comercialização totalmente automatizada dos ativos por meio de um portal na internet. Para obter mais informações, consulte o seguinte artigo do Boletim 247 do WRM, de janeiro de 2020
(2) Ensmenger Nathan, The Environmental History of Computing, Technology and Culture, Volume 59, Número 4, Suplemento, Outubro de 2018, p. S7-S33
(3) Financial Times, 2021, How tech went big on green energy
(4) Idem (2)
(5) ETC Group, 2021, Big Brother is Coming to the Farm: the Digital Takeover of Food
(6) GRAIN, 2020, Digital fences: the financial enclosure of farmlands in South America
(7) Spaceport Genocide, International Appeal
(8) International Energy Agency (IEA), Tracking Industry 2020, Pulp and Paper
(9) Mongabay, March 2021, In Indonesia, pulp and paper firms stoke demand that may drive deforestation