Economia Verde no Brasil: mulheres relatam os impactos do projeto REDD da SPVS e de uma área protegida da Fundação Boticário

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chica contra REDD

A sobrevivência de populações tradicionais na região litorânea do Paraná está sendo seriamente ameaçada por iniciativas privadas de apropriação de áreas florestais na região, para diversos fins. Neste artigo, dedicamo-nos em especial a duas: uma de comércio de créditos de carbono, nos moldes do mecanismo REDD, promovida pela ONG brasileira Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), e outra para preservar a floresta e a biodiversidade na chamada “Reserva Natural Salto Morato”, de propriedade da Fundação Boticário.

No final dos anos de 1990, a SPVS chegou à região e, em parceria com a ONG estadunidense TNC (The NatureConservancy), começou a comprar grandes áreas de fazendeiros. Ao todo, sua área abrange hoje cerca de 18.600 hectares nos municípios de Antonino e Guaraqueçaba. Essas áreas têm hoje o status de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN). Trata-se de áreas privadas que têm como objetivo preservar a biodiversidade e onde a caça, a pesca e quaisquer outras atividades extrativistas são proibidas.

A SPVS conseguiu adquirir suas áreas através da parceria com a TNC, mobilizando recursos de três empresas americanas, a General Motors, a American Eletric Power e a Chevron, com um objetivo primordial e de especial interesse dessas empresas: o carbono “estocado” nessas áreas. A TNC afirma que as empresas investidoras “destinaram, entre 1999 e 2001, US$ 18 milhões para a implantação, a execução e a manutenção dos projetos brasileiros ao longo de 40 anos.” Desta forma, em 1999, anos antes do lançamento do mecanismo de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD), um dos primeiros projetos de carbono em áreas de floresta no mundo já havia iniciado.

A Reserva Natural Salto Morato foi criada pela Fundação Boticário, que pertence ao Grupo Boticário, uma empresa brasileira do ramo de produtos de beleza. A Reserva tem 2.253 hectares, inclusive uma queda de água de cerca de 100 metros. A área foi comprada em 1994 com apoio da TNC.

A Fundação Boticário se articula com outras ONGs como, por exemplo, a SPVS e TNC na iniciativa “Observatório do Clima”. Trata-se de uma iniciativa que dá uma grande importância ao chamado mercado de carbono, iniciativa considerada mais “contundente” para atacar as mudanças climáticas.

Perseguição

A polícia ambiental sempre atuava na região, mas, conforme afirmam as pessoas das comunidades vizinhas às áreas da SPVS e Fundação Boticário, nunca perseguia a comunidade, como tem acontecido depois da chegada dessas entidades.

As mulheres são especialmente afetadas, já que ficam mais expostas por serem as responsáveis pelas tarefas domésticas e pelas crianças pequenas, enquanto os maridos costumam sair mais em busca de trabalho. Há muitos relatos das mulheres sobre a atuação da Força Verde, a polícia ambiental, de como policiais armados entram nas casas delas sem possuir a devida autorização judicial.

Uma moradora do município de Antonina, vizinha da SPVS, afirma que “eles não chegam aqui conversando, já chegam perturbando”. Ela conta que:

“Aqui em casa eles vieram, eu não estava, tinha saído para entregar uns convites (...) aí eles subiram para minha casa, minha filha estava sentada ali tomando café. Não bateram na porta, já foram direto para a janela. Minha filha se assustou. (...) Aí, quando voltei lá de cima, eles já tinham andado praticamente meu quintal inteira, sem pedir permissão (...) Não sabia que já tinham entrada na minha casa. Aí, com aqueles aparelhinhos [de gps], comigo não fizeram, fizeram com minha filha (...) mostrava para minha filha, mostrava para ela, falavam: “seu pai tem duas espingardas dentro de casa, onde está? Fala com titio onde está?” (...) aí eles me perturbaram bastante, eles queriam entrar dentro de casa, eles fizeram uma barbaridade mesmo. (...) E só eu em casa. Eu e meus filhos, sem meu marido, ele estava trabalhando fora.(...) a gente no meio de seis homens ali. Daí ele falou: se você não entregar [a espingarda], a gente vai pegar teu marido. Aí eu peguei a espingarda e entreguei.”

Ouvimos diversos relatos de mulheres sobre como seus maridos foram presos. A moradora acima citada conta que, uma vez, seu marido foi algemado em casa pela Força Verde, que disse que era o “serviço” deles. Em outra ocasião, ao cortar uma árvore para fazer uma canoa, ele ficou preso por 11 dias. Para sair, teve que pagar fiança. Quando o marido é preso, aumenta ainda mais a insegurança e o medo das mulheres.

Moradores da comunidade de Morato, vizinhos da Fundação Boticário, afirmam que a polícia está sempre na comunidade. Uma moradora conta como o pessoal entrou na casa da avó dela, de 80 anos:

“Minha avó tem pressão alta, ela não passou bem. Ela ficou nervosa. Ela tinha carne de porco e frango, em cima da forneira. Entraram com tudo sem pedir licença, sem nada, mexendo em tudo para ver o que tinha. Ela estava na cozinha como sempre. Assustaram [ela]. Minha avó não passou bem. E agora, vai falar alguma coisa para eles. Vai preso!”

Problemas de saúde

A impossibilidade de fazer roça no sistema de pousio, de caçar e pescar, e praticar a medicina tradicional, gerou uma situação em que alimentos básicos saudáveis, sem agrotóxicos, que antes eram garantidos através dessas atividades, não podem mais ser consumidos. Em vez disso, as famílias precisam comprar a maioria dos alimentos básicos, muitas vezes contaminados com agrotóxicos. Segundo as mulheres, essas mudanças na base alimentar explicam o surgimento de novos problemas de saúde.

Uma moradora antiga conta que antes “o povo vivia mais sossegado”. A comunidade produziu sua própria alimentação. A dificuldade hoje das famílias produzirem sua própria comida é por falta da área. Ela complementa que “não tinha doença que tem agora, não tinha. A doença era sarampo, tosse cumprida, que toda vida teve, varicela, catapora. Mas essas doenças de diabetes, artrite, artrose, trombose, não tinha nada, ninguém tinha nada.”

Ter dinheiro para poder comprar alimentos constitui-se em mais uma pressão para as pessoas saírem das comunidades em busca de trabalho.

Forçado a buscar trabalho fora e promessas não cumpridas

A perseguição provocou uma situação em que as comunidades se sentem “presas” e “acuadas” na própria casa, cercadas por uma floresta que apenas podem admirar, mas onde não podem entrar e cujos benefícios não podem aproveitar. Questionados sobre se os projetos conservam a mata, moradores afirmam que, quando tinham suas roças perto de casa, havia muito mais caça porque também as caças se alimentavam com os alimentos cultivados. Mas hoje não podem mais cultivar e as caças se afastaram.

Não concordam de jeito nenhum com a afirmação de que seu uso tradicional da floresta estaria pondo o futuro da mesma em risco. Por exemplo, em relação a um dos alimentos mais comuns e apreciados pelas comunidades, o palmito, uma moradora afirma: “Aqui mesmo, aqui em redor da casa tem muito palmito, a semente cai no chão; às vezes a gente joga pelas matas, mas não pode colher depois, a gente não pode colher.”

É por isso que muitos moradores, os homens, mas também as mulheres, são forçados a vender sua força de trabalho para fazendeiros na região ou buscar serviço nas pequenas cidades na região ou na capital.

Garantir um salário trabalhando na SPVS tampouco é uma opção relevante para as comunidades. Na sua chegada, a SPVS prometeu empregos que durariam cerca de 40 anos, o mesmo tempo de existência previsto para o projeto de carbono. Segundo os moradores, inicialmente, a SPVS empregou 47 moradores da comunidade, a maior parte como guardas florestais, mas hoje sobram poucas pessoas. Ex-empregados contam que a grande maioria foi demitida, restando apenas sete funcionários. Além disso, os salários pagos eram e são bastante baixos, pouco mais de um salário mínimo. Apenas três dos 47 funcionários iniciais eram mulheres com salários ainda menores que os dos homens. O caso da Fundação Boticário não é muito diferente. Segundo moradores da comunidade de Morato, apenas 6 pessoas estariam sendo empregadas.

Enquanto a classe média de Curitiba, capital do estado, tem comprado casas em áreas na região para passar seus finais de semana e feriados, várias famílias das comunidades locais têm desistido de continuar vivendo no local, contribuindo para o esvaziamento das comunidades. Entretanto, há também casos de famílias que retornaram para suas comunidades, devido à dificuldade de se adaptar à cidade. Uma moradora que já residiu um tempo na cidade e depois voltou conta que: “(...) prefiro aqui, aqui tá sossegado. Mas (...) dá para gente fazer mais nada.”

Comunidades resistem e apontam alternativas

No entanto, as comunidades continuam resistindo à pressão da SPVS e da Fundação Boticário, que só pode ter como objetivo a expulsão de todas elas. Uma comunidade organizou-se de forma especial. No início da década passada, em uma das localidades no município de Antonina, um fazendeiro queria vender sua área para a SPVS, o que poderia levar à expulsão de todas as famílias que viviam no local. Elas se organizaram e, com o apoio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), realizaram, em 2003, uma ocupação. Atualmente, há 20 famílias no local, lutando pela oficialização do acampamento, que tem o nome do ambientalista José Lutzenberger, no assentamento de Rio Pequeno, para que seja um assentamento da reforma agrária.

A comunidade começou a realizar pequenos trabalhos de reflorestamento e, a partir da opção pela agroecologia, foi escolhida a proposta de trabalhar coletivamente através do sistema agroflorestal, como proposta principal para futuramente gerar renda para as famílias. Além disso, cada uma das famílias terá sua área individual para a subsistência básica. Uma moradora, durante o trabalho de recuperação com agrofloresta, de uma das áreas degradadas pelo fazendeiro, conta:

“Eu mesmo eu tenho quatro anos que moro aqui e eu gosto. (...) Trabalho aqui, tenho um terreno também, e trabalhamos no coletivo. (...) No coletivo consegue que todo mundo ajuda, aí vai, é muito bom, é muito gostoso (...) No futuro aqui, mais tarde, vai ser um mato que vai virar uma agrofloresta (...) para poder ter renda para mim e para todas as companheiras, no futuro penso assim (...) E é bonito, entrar aqui dentro, ver as árvores, as plantas. A gente não trabalha só pensando no dinheiro, a gente trabalha pensando na vida também. A gente trabalha com muito orgulho, com muito amor. Porque a planta é uma vida igual à gente, sente sede também (...) Eu morei na cidade, (...) a cidade é um horror. (...) Aqui não, a casa fica tudo aberta. (...) E para minhas crianças, esse lugar é um paraíso. (...) Aqui não tem nada de violência.”

Portanto, a realidade do Paraná mostra também que as comunidades resistem. E elas nos oferecem uma série de elementos para repensar o modelo de desenvolvimento perverso que a economia verde busca consolidar. Por exemplo, as próprias famílias praticam a recuperação da natureza. Mostram que o ser humano faz parte e depende da natureza, que a natureza é uma riqueza que possibilita que o povo possa “viver bem”, conservando e desfrutando uma verdadeira riqueza.

Resumo do artigo “Economia Verde no Brasil: a privatização da Mata Atlântica: Projetos de REDD e áreas protegidas, e seus impactos sobre mulheres e homens em comunidades tradicionais no litoral do Paraná”, de Winfridus Overbeek, publicado em revista produzida conjuntamente com Amigos da Terra América Latina e Caribe, e Grain/Acción por la Biodiversidad sobre Economia Verde. Para ver o artigo completo em português, vejahttp://www.wrm.org.uy/paises/Brasil/Economia_Verde_no_Brasil
_a_privatizacao_da_Mata_Atlantica.pdf
 e completo em castelhano:http://www.wrm.org.uy/temas/Economia_Verde/asalto_final_a_los_bienes_comunes.pdf