Nos últimos anos, mecanismos destinados a transformar componentes naturais fundamentais dos bens comuns (biodiversidade, terra, água, florestas e suas funções ecológicas, etc.) em ativos financeiros negociáveis têm se expandido rapidamente. Por causa disso, um número cada vez maior de grupos da sociedade civil se envolve intensamente na tentativa de desvendar os mecanismos, lógicas e motivações por trás dos processos de financeirização e do que eles podem significar para as comunidades. Para reverter essa tendência, que põe em risco a vida de milhões de pessoas em todo o mundo, é fundamental identificar as forças e os principais atores por trás dela.
O processo de “financeirização da economia” penetrou em todos os mercados. Nele, o comércio de dinheiro, riscos e produtos financeiros criados com base neles se tornou mais rentável e começou a superar o de bens e serviços, em nome da acumulação de capital. Mais do que isso: seu alcance se expandiu de áreas como sistemas sociais reprodutivos (aposentadoria, saúde, educação, habitação) para bens comuns da natureza. Neste quadro, a financeirização dos bens comuns naturais cria novos “ativos”, dos quais é possível se apropriar e dos quais investidores financeiros podem extrair lucro, seja diretamente ou através da criação de outras possibilidades de comércio e especulação nos mercados financeiros.
Quando se trata de tentar compreender os mecanismos e as implicações da financeirização da “água”, temos que considerar que estamos nos referindo a uma substância vital, da qual depende toda a vida. Segundo o interesse em questão, a mesma água pode ser classificada de formas diferentes, como: bem comum (compartilhado para o benefício de todos e sem prejudicar ninguém), bem público (a sociedade como um todo se beneficia de um abastecimento público de água que seja seguro), bem privado (consumo de água engarrafada), bem econômico (importante para as pessoas, mas escasso em relação à demanda), um bem de mérito (o consumo depende da capacidade das famílias de pagar por ele) ou um destinado ao bem-estar social (o acesso a água potável como contribuição à saúde pública).
Até que ponto se pode afirmar que a água natural, como bem comum, está financeirizada?
É importante perguntar quais novas tentativas de mercantilização e mercadização da “mercadoria” água foram feitas até agora, como possíveis passos para que aconteça a financeirização, e quais implicações isso terá sobre a nossa organização para reverter essa tendência?
Enquanto outros mercados de commodities estão muito mais avançados, o da água é considerado de grande potencial. Em 2011, o analista financeiro James E. McWhinney escreveu: “A água pode vir a ser a maior história de mercadoria do século XXI. [...] Por que o interesse na água? Como o ouro e o petróleo, a água é uma mercadoria (commodity) – e bastante escassa [...] existem atualmente muitas maneiras de acrescentar água ao seu portfólio – a maioria demanda apenas um pouco de pesquisa” (1).
Em outras palavras, a razão por trás dos investimentos das empresas financeiras em água está ligada à ideia de que uma escassez previsível vai valorizar os fornecedores. A pressão pelo controle da água e, portanto, dos direitos sobre ela, deve crescer em um futuro próximo. Na verdade, “o comércio de água” já foi introduzido em alguns lugares onde foram criados direitos sobre ela, e já há mercados de água em funcionamento. É o caso de alguns países, como a Austrália, África do Sul, oeste dos Estados Unidos, Costa Rica, Espanha e, sobretudo Chile.
Segundo a Reuters, a China também está prestes a iniciar um projeto-piloto de comércio de água: “A China escolheu sete províncias para sediar mercados-piloto de comercialização de direitos sobre a água, no momento em que o governo enfrenta uma crise hídrica crescente, que ameaça reduzir o crescimento econômico e prejudicar a produção de alimentos. A ação é o mais recente sinal de que a China pretende usar mecanismos de mercado para lidar com problemas ambientais cada vez maiores. O país já lançou sete mercados-piloto para reduzir as emissões dos gases do efeito estufa que alteram o clima e planeja estabelecer um regime nacional ainda nesta década” (2). Enquanto isso, o “Plano para salvaguardar os recursos hídricos europeus”, da Comissão Europeia (2012), sugere que o comércio pode ser passar a ser considerado uma ferramenta para gerenciar a água (3).
A existência de mercados de água não leva imediatamente à financeirização. No entanto, os mercados facilitam a criação de novas classes de ativos que podem ser negociados sem qualquer evidência de que isso contribua para melhor alocação ou gestão da água.
O preocupante exemplo do Chile
Uma possível transição da mercantilização à financeirização pode ser observada no Chile, onde o sistema mais neoliberal na América Latina levou a um modelo muito desenvolvido de financeirização da água, no qual ela é totalmente regulada pelo mercado, e o Estado tem um papel meramente administrativo.
Como escreveu Jessica Budds em 2009, “O Chile opera um sistema único de direitos privados negociáveis sobre a água. Segundo o Código de Águas de 1981, os atuais direitos sobre a água (a prerrogativa de usar um determinado fluxo de água em condições específicas) foram convertidos em propriedade privada e regulamentados por meio de mecanismos econômicos e de mercado” (4).
O Código de Águas de 1981 foi aprovado pelo regime militar de Augusto Pinochet, dentro de uma estrutura neoliberal baseada em direitos de propriedade e princípios de mercado. A lei, ainda em vigor, entregou o controle dos recursos hídricos ao setor privado, gratuitamente e por um período ilimitado de tempo. Suas características econômicas e de mercado foram projetadas para considerar a água uma mercadoria como qualquer outra, o que implicava separá-la da terra e do território onde ela flui. Como consequência, os proprietários de terras não possuem automaticamente os direitos sobre a água em suas terras. Portanto, esses direitos – sobre todos os recursos superficiais e subterrâneos – podem ser negociados em separado com relação às terras (5). A consequência é que a água só pode ser usada por quem detiver os direitos correspondentes. O Código de Águas demoliu a estrutura institucional existente e estimulou a criação de um mercado paralelo de direitos sobre a água, permitindo sua alocação gratuita e permanente, sem uma restrição de volumes que pudesse impedir a concentração nas mãos de poucos.
Em 1992, o ex-presidente chileno Patricio Aylwin propôs ao Congresso um projeto de lei que limitava as concessões de direitos de água e previa sua restituição ao Estado quando os detentores desses direitos não os usassem. O Congresso precisou de 13 anos para chegar a um acordo. A lei 20.017 modificou o Código de Águas, mas a restituição dos direitos ao Estado foi considerada uma “receita socialista” e foi substituída por uma “punição pelo não uso”.
Esse ato incomum implicou dois paradoxos. De um lado, pela primeira vez, esses detentores de direitos sobre a água que não a usavam tiveram de pagar mais do que aqueles que a consumiram. A “punição pelo não uso” os forçou a usar água e criou as condições para tornar o desperdício mais conveniente do que preservá-la e evitar o uso indevido. Por outro lado, a reforma permitiu uma maior concentração dos direitos sobre a água em poucas mãos.
De acordo com uma pesquisa publicada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), o preço de venda dos direitos sobre a água nas regiões chilenas centrais, como Valparaíso e Coquimbo, pode ser até 22 vezes maior do que a multa por não usá-la. Como consequência, muitos dos detentores desses direitos preferem pagar a multa para manter os direitos da água até o seu preço subir, e, portanto, ganhar mais dinheiro mais tarde.
Esse sistema não tem nada a ver com o comércio de quantidades reais de água mercantilizada, para uso em agricultura ou serviços urbanos. É um mercado financeirizado, no qual os direitos sobre a água são vendidos e comprados com o único propósito de acumular lucro. Em tempos de escassez de água ou quando sua demanda aumenta por causa, por exemplo, da expansão de atividades industriais de mineração, esses direitos adquirem mais valor, de modo que as oportunidades de lucrar nos mercados financeiros aumentam. O impacto desse processo é absolutamente real: o preço da água é um dos mais altos da América Latina, muitos habitantes de zonas rurais e urbanas não têm acesso, e os detentores dos direitos sobre ela estão aumentando seu poder político e econômico, o que permite o controle social.
Implicações
As implicações da mercantilização e da financeirização da água para as comunidades locais e o meio ambiente são reais, muito reais. Descobrir onde elas diferem e onde se oculta a financeirização da água, e como ela se relaciona com a transformação da natureza em ativos financeiros rentáveis, tem uma importância considerável em termos de organização e apoio às comunidades que lutam contra as consequências. Entender esses processos também é importante para a compreensão de como podemos contribuir para revertê-los.
A água está cada vez mais sendo financeirizada pela criação de classes de ativos com base na mercadoria (commodity) “água” (como no caso do carbono, das florestas, do petróleo, dos alimentos etc.). Esse processo está intimamente ligado à lógica que permite a geração de novos produtos “virtuais” através de “mecanismos de compensação” baseados no maior controle de territórios. Isso abre um horizonte quase ilimitado ao potencial de lucro financeiro e, portanto, demanda que as organizações da sociedade civil atuem de forma solidária para com as comunidades afetadas em todo o mundo, para repensar os métodos tradicionais de defesa e promoção da causa.
Nesse quadro mais amplo, está em jogo a natureza em sua totalidade. E os “mecanismos de compensação”, o comércio de “serviços ecossistêmicos”, o princípio do “capital natural”, os “títulos verdes”, os “créditos de conservação”, os “bancos de biodiversidade” e todos os mecanismos e estruturas relacionados que se baseiam na ideia de colocar um preço em elementos ou funções específicas da natureza estão se tornando verdadeiros desafios. Eles estão acoplados à lógica perversa e ao marco das políticas que estão sendo desenvolvidas para facilitar a apropriação da natureza e de territórios pelo capital financeiro atual. Revelada, essa lógica explica por que esses mecanismos devem ser rejeitados, pura e simplesmente.
A partir desse cenário em mudança, surgem novas questões, que pode ser útil tentar responder coletivamente: o que essa mudança implicam para as comunidades? Até que ponto esse cenário representa uma oportunidade para a construção de alianças para combater e reverter o processo de financeirização? Confrontados com essa nova complexidade, como vamos identificar de forma eficaz as metas de nossas ações? A quem essas novas lógicas e mecanismos realmente beneficiam? Como vamos enfrentá-los de forma eficaz?
Debater estas questões é urgente, pois é fundamental para o avanço das críticas à “financeirização da natureza” de forma mais ampla. E, ao responder a essas questões, podemos lentamente identificar, junto aos afetados, as estratégias possíveis para reverter esta tendência devastadora.
Leitura complementar (inglês): “Financialization of Water”, Re:Common, 2014,
http://www.recommon.org/eng/financialization-of-water-meeting/
Tancredi Tarantino, tarantino@recommon.org
Giulia Franchi, gfranchi@recommon.org
Re:Common, www.recommon.org
- Water: The Ultimate Commodity, James E. McWhinney, 17 de julho de 2011http://www.investopedia.com/articles/06/Water.asp#axzz1heWbZhHI
- China to roll out seven pilot markets for trading water rights, Reuters, 24 de julho de 2014,http://www.reuters.com/article/2014/07/24/china-water-environment-idUSL4N0PZ2DJ20140724
- http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:52012DC0673
- J. Budds, Contested H2O: Science, policy and politics in water resources management in Chile, Elsevier, 2009. Veja mais sobre o Código de Água do Chile em: J.Budds, Contested H2O: Science, policy and politics in water resources management in Chile, Elsevier, 2009.