Desde sua fundação, há 20 anos, o Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM) tem defendido os esforços de baixo para cima para proteger as florestas do mundo do desenvolvimento destruidor e do planejamento de cima para baixo. Opomo-nos às 'soluções' impostas à crise das florestas do mundo que excluem as comunidades locais, os povos indígenas, as mulheres e os oprimidos, negando-lhes uma voz e direitos para forjar seus próprios destinos. Continuamos insistindo que até os esforços bem intencionados para 'salvar as florestas' fracassarão se não estiverem baseados em direitos e não forem genuinamente participativos. As ONGs que estabeleceram o WRM em duas conferências na Malásia em 1986 e 1987 adotaram o credo 'Não somos a solução. As soluções cabem às pessoas.’
As coisas não têm mudado muito desde essa época. Ainda vivemos em um mundo onde leis injustas significam que os direitos comunitários às terras e florestas às vezes não sejam reconhecidos e não estejam devidamente garantidos, onde os governos tendem a favorecer os interesses de grandes companhias e empresas com predomínio de capital, onde o acesso à justiça é tortuoso e um Poder Judiciário independente é um sonho distante e onde os políticos tendem a favorecer os ricos e ignorar as vozes dos pobres e sem poder. As continuas desigualdades entre o Norte e o Sul e as crescentes disparidades na riqueza tanto dentro de países 'desenvolvidos' quanto dentro de países 'em desenvolvimento' apresentam obstáculos adicionais para que os povos sem terras e dependentes das florestas possam ter um acesso justo e eqüitativo aos recursos naturais. Em um mundo assim, as reformas políticas e o 'bom governo' melhorado para outorgar às pessoas maior participação na tomada de decisões deveria ser uma prioridade. O WRM apóia aqueles grupos da sociedade civil que exigem controles obrigatórios, responsabilidade corporativa, o domínio da lei e melhor capacidade do estado para regulamentar o setor privado.
Lamentavelmente, mas em linha com os interesses corporativos, as principais tendências no 'desenvolvimento do mundo' estão trabalhando na direção oposta. Ainda estamos em uma época de desregulamentação e ajuste estrutural, liberalização comercial e transferências de capital, mercadorias e serviços aceleradas. Nesse contexto, esperar pelas muito necessárias reformas políticas tanto nos países desenvolvidos quanto nos países em desenvolvimento, pode ser esperar demais. A taxa de destruição das florestas do mundo continua crescendo, apesar das reconfortantes estatísticas dos tecnocratas da FAO que mostram o contrário, já que não conseguem distinguir as florestas naturais e as monoculturas industriais que estão sendo plantadas para substituí-las.
Esse é o contexto no que os esforços para melhorar o desempenho social e ambiental das corporações através da promoção da Responsabilidade Social Corporativa e reformas guiadas pelo mercado se têm deslocado para o centro. E não surpreende que esses enfoques voluntários, que implicam o desenvolvimento de padrões voluntários e códigos de conduta aplicados através da autoregulação, revisão paritária e verificação de terceiros, continuam sendo preferidos pela indústria sobre controles do estado estritos, executáveis e obrigatórios. As principais organizações da sociedade civil que estão impulsionando esses enfoques voluntários são as grandes agências de conservação, enquanto os grupos de direitos humanos e organizações de justiça social, grupos comunitários e povos indígenas têm tendido a não aproximar-se deles, com o resultado de que os problemas sociais são às vezes abordados deficientemente.
A presente edição do Boletim do WRM portanto se focaliza no debate renovado sobre ‘Florestas de Alto Valor de Conservação’ (FVAC), uma ferramenta conceptual que está sendo crescentemente usada por grandes ONG de conservação e corporações e agora também por agências de planificação do Estado, a paisagens florestadas de determinadas áreas para otimizar o manejo florestal. Como está sendo aplicada essa ferramenta? Os interesses de quem são 'otimizados'? Que garantias há de que os direitos das comunidades sejam respeitados e suas vozes sejam ouvidas em decisões sobre uso da terra?
O conceito de FAVC foi primeiramente promovido pelo Conselho de Manejo Florestal (FSC) como forma de fornecer proteção extra a florestas criticamente importantes. Muitas ONG de conservação esperaram que o conceito seria usado para estabelecer 'áreas proibidas', limites de exclusão para a atividade madeireira e conversão. Enquanto isso, ao definir o conceito mais precisamente percebeuse que os 'altos valores de conservação' são tanto sociais quanto biológicos e portanto identificaramse seis tipos de FAVC –como florestas que eram hábitats críticos, ecossistemas críticos, que continham espécies ameaçadas e em perigo, que forneciam serviços ambientais críticos, que eram críticas para os meios de vida e críticas para a manutenção dos valores culturais. Isso é inquestionavelmente uma vantagem do enfoque FAVC –que procura incluir uma ampla variedade de valores e requer um enfoque participativo para sua identificação.
Apesar de que o conceito de FAVC foi desenvolvido dentro do contexto da certificação de madeira, como apenas um dos 10 Princípios e Critérios do FSC, desde a época tem começado a ser usado bem mais amplamente. O próprio FSC está aplicando o conceito a madeiras não certificadas (mas 'controladas') que permite seja usado em produtos madeireiros mistos que no entanto levam o selo do FSC. O conceito também está sendo usado pelas corporações muito amplamente como uma ferramenta para ajudá-las a decidir onde deveriam obter madeiras responsavelmente. Outros o usam agora para decidir onde deveriam e onde não deveriam estabelecer plantações. A Mesa-Redonda sobre a Produção de Azeite de Dendê Sustentável tem adotado o conceito em seu recentemente adotado padrão para a produção de 'azeite de dendê sustentável' e estão realizando-se esforços para introduzir o conceito no padrão que está sendo adotado pela Mesa-Redonda Paralela sobre Soja Responsável. O Banco Mundial também está explorando como pode ser aplicado o conceito para ajudá-lo a definir o que são 'florestas críticas' e 'hábitats críticos' que suas políticas sobre florestas e hábitats naturais visam a salvaguardar. Em resumo, AVC tem emergido como uma ferramenta amplamente aplicada no planejamento de uso da terra, com todas as possibilidades e riscos que isso implica.
A experiência nos ensina que as ferramentas de planejamento e zoneamento de uso da terra, apesar de que são promovidas como métodos de 'múltiplas partes interessadas' raras vezes podem ser totalmente inclusivas, já que implicam um grau de planejamento 'de cima para baixo'. Os esforços das pessoas de fora para envolver os povos locais às vezes enfrentam desafios devido ao tempo e recursos limitados, barreiras da linguagem, prejuízos e preconceitos inconscientes ou indissimulados e a marginalização econômica e política dos 'grupos alvo'. E quanto maior a escala desse zoneamento –e quanto mais se baseie na alta tecnologia, como o mapeamento baseado em SIGmaiores são os riscos de que os direitos, interesses, opiniões e conhecimento das comunidades sejam ignorados.
Também surgem questões pelas maiores implicações do enfoque AVC se ele for aplicado só, sem ser implantado em um enfoque maior do planejamento da paisagem. Há risco de que quando uma área seja considerada sem AVC será considerada OK para atividade madeireira, mineração o conversão? Como evitamos o cenário pesadelar de ilhas de 'alto valor de conservação' rodeadas de 'áreas de sacrifício' devastadas?
Consciente de algumas dessas armadilhas, uma nova rede tem sido estabelecida agora –a Rede de Recursos de Alto Valor de Conservação- que procura debater esses desafios e achar formas convencionadas de superá-los, apesar de que ainda dentro do contexto voluntário, favorável para os negócios preferido pelas corporações. Proteger os 'Altos Valores de Conservação' é um objetivo meritório, mas se for feito em formas que não respeitam os direitos das comunidades ou promovem suas prioridades, também pode ser uma grave ameaça para as pessoas e a natureza tanto dentro quanto fora das áreas definidas como de 'Alto Valor de Conservação'. A presente edição do Boletim do WRM é oferecida como contribuição a esse debate.