Os índices africanos de eletrificação são assustadores: os mais baixos do mundo, com apenas 1% de acesso em algumas áreas rurais. Os índices médios na África subsaariana variam, de 16% em áreas rurais a cerca de 59% em áreas urbanas. Da população de 1,25 bilhão de habitantes do continente, mais de 600 milhões não têm acesso à energia moderna, o que é motivo de muita preocupação.
Ao longo do último meio século, sucessivos governos africanos têm se dado conta da necessidade de melhorar a infraestrutura e ampliar o acesso à eletricidade, e fizeram muitos esforços para resolver essas deficiências. Em 2012, chefes de estado africanos adotaram o Programa de Desenvolvimento de Infraestrutura para a África (PIDA), uma iniciativa para abordar lacunas em serviços de infraestrutura em energia, transportes, água e tecnologia da informação e comunicação. Depois de desenvolver um plano para selecionar ações prioritárias e acelerar sua implementação, 52 projetos foram escolhidos, incluindo 13 grandes projetos hidrelétricos, que aumentariam a capacidade de geração instalada em 15.000 MW combinados, com um custo de 30 bilhões de dólares. O plano de ação pretende entregar os projetos priorizados até 2020. Hoje, faltando três anos, é improvável que esse objetivo seja atingido.
Diante da polêmica e do ceticismo em torno de grandes hidrelétricas, a ONG International Rivers realizou uma análise de onze dos projetos do PIDA, avaliando a forma como estão estruturados e seu potencial para aliviar a crise energética da África a um custo econômico e financeiro razoável, enquanto promovem bem-estar social e sustentabilidade ambiental. [1] Este artigo apresenta algumas das conclusões do relatório e faz importantes considerações sobre o papel das grandes hidrelétricas no futuro energético da África.
Mudanças climáticas e grandes hidrelétricas
Por um lado, os projetos de usinas hidrelétricas do PIDA ignoram os riscos que as mudanças climáticas representam. O período de seca de 2014-2016 no leste e no sul da África resultou em uma redução nos volumes de água de muitas grandes barragens, levando a uma diminuição na geração de energia. Muitas hidrelétricas não conseguiram produzir sua capacidade firme (uma medida da capacidade de contribuir efetivamente para a confiabilidade do sistema) e algumas, na Tanzânia, tiveram que ser fechadas por falta de água adequada. A bacia do rio Zambeze foi particularmente afetada. Os níveis de água utilizáveis na barragem de Kariba, entre a Zâmbia e o Zimbábue, caíram para 14%. Os dois países enfrentaram baixa geração de energia a ponto de haver perda de produção na indústria e empregos em Zâmbia.
Em 2012, a International Rivers encomendou um estudo ao conhecido hidrologista Richard Beilfuss sobre os riscos das mudanças climáticas para projetos de energia hidrelétrica existentes e planejados no sul da África. [2] Entre outras descobertas, Beilfuss advertiu que as barragens do Zambeze não poderiam atender às necessidades de energia à medida que as temperaturas globais aumentassem e as quantidades de precipitação caíssem na bacia. Embora já tivessem sido realizadas avaliações sobre o impacto potencial das mudanças climáticas em barragens e recursos hídricos, o estudo de Beilfuss representou um valioso complemento a um coro cada vez maior, e proporcionou uma análise consistente sobre a questão. Ele concluiu que a Bacia do Zambeze era extremamente vulnerável às flutuações climáticas. Sob essas previsões, a barragem de Batoka Gorge (desfiladeiro), proposta para Zâmbia/Zimbábue, perderia até 32% de energia firme durante os anos de seca. Portanto, a atual dependência em relação à energia hidrelétrica é insustentável, e a atenção precisa ser redirecionada para tecnologias alternativas de energia.
Além disso, estudos recentes também fornecem evidências de que as usinas em regiões tropicais produzem grandes quantidades de metano, contribuindo para as emissões de gases de efeito estufa. Em um estudo de 2017, a ecologista tropical Claire Salisbury mostra que todas as barragens do mundo emitem alguns gases de efeito estufa. [3] Esse trabalho desmente justificativas anteriores para incluir represas hidrelétricas em iniciativas de financiamento climático. Existem agora evidências irrefutáveis de que o metano e outros gases do efeito estufa não são subprodutos involuntários das grandes hidrelétricas.
As grandes usinas hidrelétricas atendem a áreas urbanas e à indústria
Para alcançar os milhões de africanos que não têm acesso à eletricidade, sua distribuição geográfica precisa ser aumentada para as áreas rurais onde eles residem. Também é aí que os grandes projetos de energia hidrelétrica falham, pois têm pouca capacidade de distribuir amplamente a energia. Seu acesso é restrito a consumidores ligados à rede de distribuição, principalmente os que moram em centros urbanos e grandes indústrias – a maioria das quais são indústrias extrativas. Em 2008, as empresas de mineração consumiram mais eletricidade do que toda a população da África subsaariana. No caso do projeto da barragem de Inga 3, planejado para ser construído no rio Congo, na República Democrática do Congo (RDC), 55% da sua capacidade de geração de 4800 MW estão destinados à exportação para a África do Sul – país cuja economia é altamente dominada pela indústria de mineração –, 30% para as minas de cobre da província de Katanga e o resto para a capital, Kinshasa. Assim, essa megausina não terá qualquer impacto significativo no aumento do acesso à eletricidade na RDC. Ao se concentrar em grandes usinas e na energia hidrelétrica, o continente está perdendo a oportunidade de desenvolver outras fontes de energia que pudessem melhorar o acesso a diferentes tipos de tecnologias de energia fora da rede de distribuição. Em seu relatório de 2015, “Speaking Truth to Power” [4], a ONG Oxfam observou que dois terços do investimento em energia na África são dedicados à exportação, e que o enfrentamento da pobreza energética no continente passa menos pela ambiciosa expansão da capacidade de geração de eletricidade e mais pela ambição na prestação de serviços de energia para as áreas rurais.
Ninguém tratou dos problemas de reassentamento e indenização
Uma das questões mais polêmicas associadas à construção de grandes usinas hidrelétricas tem sido o deslocamento de comunidades que dependem de rios. Essa questão delicada levou ao estabelecimento da Comissão Mundial de Barragens (WCD) no final da década de 1990. Como as comunidades ribeirinhas pagam o preço, mas não colhem os benefícios desses investimentos, a WCD concluiu que as barragens “podem acabar retirando um recurso de um grupo e o alocando a outro”.
Como resultado dessa conclusão fundamental, os credores e os bancos de desenvolvimento formularam políticas, diretrizes e salvaguardas de mitigação, mas até hoje não existe um modelo efetivo de processo legítimo e justo de reassentamento e indenização. Apesar da conscientização e das recomendações feitas pela WCD, os problemas de deslocamento e reassentamento humanos persistem. Décadas após os projetos terem sido concluídos, as comunidades que foram deslocadas pela usina de Kariba (localizada no desfiladeiro de Kariba, no rio Zambeze, entre Zâmbia e Zimbábue, construída em 1955) e muitas outras no continente, continuam lutando por indenização justa.
Além das pessoas fisicamente deslocadas pela construção de usinas e reservatórios, muitas outras, que vivem a jusante, são prejudicadas economicamente pela redução da pesca e de outras atividades econômicas relacionadas à água. Um excelente exemplo disso é o lago Turkana, do Quênia, que recebe 90% de sua água do rio Omo, que flui da Etiópia. Com a construção da Usina de Gibe III pela Etiópia e o estabelecimento de grandes plantações irrigadas de cana de açúcar, os fluxos do Omo para o lago Turkana foram reduzidos drasticamente, o que teve um efeito devastador sobre os meios de subsistência de centenas de milhares de pessoas que dependem da pesca. Em outro exemplo, a usina de Mphanda Nkuwa, no rio Zambeze, em Moçambique, ameaçaria a indústria do camarão em Zâmbia.
A economia das grandes usinas: os números não fecham
Um relatório da Unidade Holandesa de Sustentabilidade, organizado pela Comissão para Avaliação Ambiental dos Países Baixos, mostra que os efeitos sociais e ambientais dos grandes projetos hidrelétricos costumam ser subestimados, enquanto os benefícios econômicos e financeiros são superestimados. [5] Os custos das megausinas são conhecidos por sair de controle, criando imensas dívidas para os países que as recebem. O relatório também confirma que governos e empresas têm uma tendência a adotar as grandes usinas como forma de conseguir financiamento. As empresas preferem esses grandes projetos de infraestrutura porque as elevadas quantidades de capital e a duração dos projetos obrigam os países a assumir os riscos, que se tornam muito menores para os financiadores privados. Isso também faz dos grandes projetos hidrelétricos um imã para corrupção. No final, os cidadãos são sobrecarregados com dívidas que se estendem por gerações, mas não são envolvidos na tomada de decisões.
O estabelecimento do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, projetos de compensação de carbono financiados dentro do Protocolo de Quioto e um acordo internacional vinculado à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas favoreceram ainda mais as grandes infraestruturas de barragens à custa de fontes alternativas de energia. [6]
Outro aspecto da economia das grandes hidrelétricas é que a promessa de eletricidade barata tende a ser uma ilusão. Quando os projetos são concluídos, com custo e prazos muito além do planejado, as tarifas geralmente aumentam acima dos níveis inicialmente previstos, já que os investidores procuram recuperar o que gastaram. Em Uganda, o custo da eletricidade ao consumidor aumentou significativamente após o projeto hidrelétrico de Bujugali ter chegado à rede, fazendo com que muitas pessoas não pudessem pagar. Elas recorriam ao uso de eletricidade apenas para iluminação e continuaram usando lenha e carvão para cozinhar. Isso é desanimador, depois de tantos recursos públicos terem sido gastos no projeto.
Transformação de energia
As estratégias de infraestrutura podem ter um papel importante na oferta de energia no continente africano. Para enfrentar a crise energética enquanto se promove um acesso includente à energia, que leve em conta os impactos das mudanças climáticas e todas as outras preocupações levantadas acima, os países africanos precisam fazer várias perguntas. De que tipo de infraestrutura precisamos? E esse tipo cumpre os nossos próprios objetivos de desenvolvimento? Quem toma decisões precisa visar deliberadamente uma infraestrutura que respeite as preocupações sociais e ambientais, para atender à maioria das pessoas que precisam da energia e definir marcos para avaliar o progresso.
Em todo o mundo, há um reconhecimento cada vez maior de que a megainfraestrutura conectada à rede de distribuição, como as grandes usinas hidrelétricas, é atrativa para aumentar a geração nacional e regional, mas lenta para entrar na rede e cara demais para a maioria dos países africanos. Um relatório de 2016 intitulado “Light Power Action: Electrifying Africa” [7], do Africa Progress Panel, afirma o que o estudo da International River concluiu: o modelo de energia e infraestrutura do PIDA não reconhece o desempenho historicamente pobre das grandes usinas na África. Este é certamente o momento de repensar o futuro da infraestrutura energética africana.
Rudo A. Sanyanga, International Rivers
https://www.internationalrivers.org/blogs/266/large-hydropower-dams-are-not-the-answer-time-to-rethink-africa%E2%80%99s-energy-infrastructure
Este artigo foi publicado anteriormente em Perspectives #02/2017: Putting People Back Into Infrastructure
(1) International Rivers 2015: Right Priorities for Africa’s Power Sector: An Evaluation of Dams Under the Programme of Infrastructure Development for Africa (PIDA), Pretoria. https://www.internationalrivers.org/resources/right-priorities-for-africa-s-power-sector-9150
(2) Beilfuss R. 2012: A Risky Climate for Southern Africa: An Assessment of Hydro Dams on the Zambezi River. Disponível em: https://www.internationalrivers.org/resources/a-risky-climate-for-southern-african-hydro-7673
(3) Salisbury C. 2017: Counterintuitive. Global Hydropower Will Add to Climate Change, Mongabay Series: Amazon Infrastructure, Mekong dams. Disponível em: https://news.mongabay.com/2017/02/counterintuitive-global-hydropower-boom-will-add-to-climate-change
(4) Horgath R. & Granoff I. 2015: Speaking Truth to Power: Why Energy Distribution More Than Generation is Africa’s Poverty Reduction Challenge; Working paper 418, Oxfam. https://policy-practice.oxfamamerica.org/static/media/files/FINAL_speakingpowertotruth_SH.pdf
(5) The Dutch Sustainability Unit 2017: Better Decision-Making About Large Dams with a View to Sustainable Development. Disponível em:
http://api.commissiemer.nl/docs/os/i71/i7199/7199_revised_advice_on_better_decision-making_about_large_dams_1june2017.pdf
(6) International Rivers, Failed Mechanism: Hundreds of Hydros Expose Serious Flaws in the CDM, 2007, https://www.internationalrivers.org/resources/failed-mechanism-hundreds-of-hydros-expose-serious-flaws-in-the-cdm-3844
(7) Africa Progress Panel 2016: Lights Power Action: Electrifying Africa. Disponível em: http://www.africaprogresspanel.org