Onze por cento da Amazônia estão concentrados em território boliviano. Em uma definição ampla, a região amazônica desse país inclui os departamentos de Beni e Pando, bem como as regiões ao norte de Santa Cruz, La Paz e Cochabamba.
O desmatamento no território amazônico boliviano vem aumentando significativamente nos últimos anos, principalmente com a expansão da agroindústria, as obras de infraestrutura, a mineração, os grandes incêndios florestais e o desenvolvimento de políticas governamentais que aceleram a agenda extrativista.
No dia 2 de dezembro de 2018, por vontade de 12 povos e organizações que resistem ao extrativismo, foi criada a Coordenação Nacional de Defesa dos Territórios Indígenas Originários Camponeses e Áreas Protegidas (CONTIOCAP). Seu principal objetivo é articular comunidades e povos indígenas e camponeses que defendem seus direitos de forma independente, em um contexto cada vez mais adverso devido às políticas extrativistas promovidas no país.
Em seus poucos anos de existência, a CONTIOCAP se posicionou na opinião pública como referência em dignidade e contribuição ao debate público sobre análise da conjuntura, em denúncias das crescentes violações dos direitos humanos e dos povos indígenas, e na apresentação de propostas alternativas ao extrativismo.
No final de 2023, o WRM conversou com Ruth Alipaz, líder indígena da Nação Uchupiamona, na Amazônia boliviana, e membro da CONTIOCAP, para refletir sobre a situação daquele território e a forte resistência que os Povos Indígenas vêm exercendo.
O negócio da queima
Estima-se que os incêndios florestais tenham destruído 3 milhões de hectares de florestas na Bolívia em 2023. Esses incêndios foram agravados pela seca que o país atravessa, com uma redução de 17% nas chuvas em 2023, em comparação com anos anteriores. Mas essa situação não é casual. Por trás desses incêndios estão principalmente empresas do agronegócio. É um ataque direto aos territórios e às áreas protegidas, que se sobrepõem, em grande parte, às terras indígenas.
Para ampliar a fronteira agrícola, os empresários agroindustriais realizam o chaqueo (queima de certas áreas para fazer agricultura) indiscriminadamente e ultrapassam a fronteira agrícola, já que o governo não tem nenhum tipo de mecanismo sério de controle dessas grandes corporações agropecuárias que, por sua vez, costumam se beneficiar dos lucros que produzem em terras comunitárias, uma vez que os residentes são forçados a arrendá-las porque não têm recursos suficientes para as explorar em benefício próprio e de suas comunidades. Esses empresários que atravessam ilegalmente a fronteira agrícola são punidos com a ridícula multa de 0,20 centavos de dólar por hectare queimado, o que é um convite a queimar mais do que o permitido e obter enormes lucros. (1)
Ruth Alipaz nos explica como as empresas descobriram que o negócio era queimar para que a floresta perdesse valor. “Incendiar é uma forma de desmatamento cruel de floresta primária, de baixo custo. Ela permite a mudança de uso da terra para depois poder estabelecer plantações de monoculturas, por exemplo”, afirma.
Ruth nos diz: “Todos os anos, nós, bolivianos, respiramos a fumaça e as cinzas do nosso futuro, porque estão nos privando dos nossos meios de vida e de nossa dignidade. E não apenas para os Povos Indígenas. A dignidade nos é dada pelo nosso território, onde somos conhecidos e reconhecidos porque somos alguém. A dignidade existe na medida em que se contribui para o sonho de realizar um projeto de autonomia usando nossa cultura e nossos saberes ancestrais.”
Além dos incêndios, o desmatamento na Amazônia boliviana vem aumentando a passos gigantes.
Desmatamento e agronegócios
Em 2022, a taxa de desmatamento na Amazônia boliviana foi a segunda mais alta da região amazônica, atrás apenas do Brasil, e a terceira do mundo em termos de área desmatada. Estima-se que 270 mil hectares tenham sido desmatados naquele ano. De acordo com a Fundação Tierra, uma organização boliviana, no quinquênio 2016-2021, o desmatamento aumentou 73% em comparação com 2010-2015. Ainda não há números oficiais sobre 2023, mas especialistas concordam que a tendência é o desmatamento continuar crescendo. (2)
Em grande medida, esse aumento gigantesco nos índices de desmatamento é resultado da expansão do agronegócio industrial, voltado à produção de soja e à pecuária para exportação. Segundo a Fundação Tierra, “a expansão do modelo da soja é o motor da mudança, cuja força motriz é a consolidação dos direitos fundiários para as grandes e médias propriedades empresariais. As florestas foram eliminadas para disponibilizar mais terras ao cultivo da soja, que avança mais rapidamente do que outros setores comerciais (milho, sorgo, trigo, cana-de-açúcar, arroz). A titulação de extensas áreas de floresta como terras privadas e a concessão de muitas autorizações para desmatamento foram a base da rápida habilitação de extensos campos de cultivo. “O avanço da agricultura industrial é acompanhado pela pecuária para exportação.” Só de soja, a Bolívia tem cerca de um milhão e meio de hectares plantados, estando entre os principais exportadores de soja do mundo.
Como exemplo, o departamento de Beni, localizado no coração da Amazônia e onde vivem 18 dos 36 Povos Indígenas da Bolívia, não está isento dessas pressões, pelo contrário. Os governos que estão no poder desde 2016 promoveram a atualização do Plano de Uso do Solo (PLUS) e, em 2019, foram realizadas a revisão e a atualização do PLUS Beni. Segundo um estudo acadêmico, esse plano foi executado “sob a premissa de ampliar a fronteira agrícola e tirar o departamento da pobreza”. (3) No entanto, inúmeras organizações indígenas criticaram duramente o processo por não as levar em consideração ou não as consultar. Elas denunciam que só foram consideradas as opiniões dos setores empresariais, principalmente as dos pecuaristas, que têm interesses econômicos na expansão da fronteira agropecuária. (4)
Em última análise, o novo Plano PLUS Beni é uma ferramenta que permite a destruição da Amazônia, sem considerar os modos de vida dos numerosos Povos Indígenas que tradicionalmente habitaram e, portanto, conservaram esses territórios.
Dendê para “biocombustíveis”
Outra das causas subjacentes aos incêndios, segundo denúncias de ativistas e organizações locais, está relacionada à promoção de culturas para a produção dos chamados “biocombustíveis”. Recentemente, sob pretexto de gerar empregos e reduzir a dependência em relação aos combustíveis fósseis, o governo boliviano lançou uma série de medidas que favorecem o plantio e a expansão de três novos cultivos: dendezeiro, pinhão-manso e mamona. Ainda não muito amplas na Bolívia, essas três novas culturas vão se somar às áreas já existentes de soja, cana-de-açúcar, etc.
Até recentemente, o cultivo de dendê era desconhecido na Bolívia. Através do chamado “Programa de Fomento às Espécies Oleíferas”, o governo já criou mais de 18 viveiros com capacidade para produzir 48 mil mudas. O programa é voltado para a região amazônica, pois os dendezeiros necessitam de muita umidade para crescer, e seu objetivo é plantar uma área de 60 mil hectares em cinco anos. (5)
Segundo declarações feitas à mídia nacional pelo coordenador Javier Mamani Quispe, “o programa não resultará em desmatamento, e sim reabilitará solos degradados”. Contudo, a experiência com esse cultivo em países da África, da Ásia e da América Latina mostra que as plantações industriais de dendê não apenas causam desmatamento e contaminação de solos e fontes de água, mas também têm vários impactos sobre as pessoas que vivem dentro e em torno dos territórios ocupados por essas monoculturas.
Os milhares de hectares de florestas primárias queimadas serão declarados como terras degradadas e, portanto, plausíveis de ser ocupados com monoculturas de dendê?
A expansão do dendezeiro está ligada à violação dos direitos dos Povos Indígenas e das comunidades camponesas, bem como ao impacto sobre seus meios de vida e suas culturas. Já foram documentados muitos conflitos pelos direitos à terra. As mulheres, incluindo as trabalhadoras, e as meninas sofrem as mais profundas injustiças e desigualdades diante da expansão dessa indústria e enfrentam formas contínuas de opressão. (6)
Mega-hidrelétricas e infraestrutura
De mãos dadas com o extrativismo, também avança a construção de obras de infraestrutura necessárias ao processamento e transporte dos bens produzidos, como mega-hidrelétricas para gerar energia.
Por exemplo, na bacia do rio Beni, que atravessa o Parque Nacional Madidi – uma das áreas com maior biodiversidade do planeta – e a Reserva Pilón Lajas, o governo tenta, há anos, promover as mega-hidrelétricas de Chepete e Bala. Estima-se que 75% da energia produzida pela usina de Bala serão exportados ao Brasil. Os dois reservatórios inundariam milhares de quilômetros quadrados e causariam o desmatamento de mais de 100 mil hectares. Seis Povos Indígenas vivem nas terras a ser submergidas: Mosetenes, Chimanes, Esse-ejjas, Lecos, Tacanas e Uchupiamonas, sendo que este último é o povo ao qual Ruth pertence. (7)
Por enquanto, a construção das barragens está paralisada, mas o assédio e a pressão continuam. Da mesma forma, para construir barragens, é necessário fazer estradas, o que abriria o território a madeireiras e mineradoras, entre outras atividades destrutivas. Ruth explica: “É fato que toda essa avalanche de atividades extrativas, de regulamentações que as facilitam e incentivam, além das grandes infraestruturas de energia e transporte, os complexos industriais de duvidosa viabilidade técnica e econômica (como o engenho de açúcar de San Buenaventura) e os avanços de colonos e especuladores de terras, todos juntos, fazem parte de uma verdadeira cruzada de colonização e saque do norte, da Amazônia, onde quem tem muito a perder são as comunidades e os Povos Indígenas”.
A visão indígena sobre o desmatamento e suas lutas de resistência
Porém, durante a conversa, Ruth destacou que, historicamente, os Povos Indígenas da Bolívia desempenharam um papel central na defesa dos territórios e ainda permanecem firmes em sua luta.
Como resultado das lutas dos Povos Indígenas da Bolívia – na Amazônia, no Chaco, nos Vales e no Altiplano – surgiu a Nova Constituição Política do Estado (CPE) de 2009. Ela reconhece os Povos Indígenas, os Territórios Indígenas, a Justiça Indígena Originária Camponesa e principalmente a Autonomia e a Autodeterminação dos Povos Indígenas em seus territórios por direito pré-existente, com base na Convenção 169 e na Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas (Leis 3.760 e 3.897 na Bolívia).
No entanto, Ruth explicou que, em relação à Carta Magna e outras leis como a da Mãe Terra, têm sido sistematicamente emitidas outras leis e decretos que contrariam o que está estabelecido na Constituição. Segundo a análise de Ruth, são essas normas de nível inferior que acabam sendo impostas como política de governo, “legalizando o que é ilegal e inconstitucional para implantar uma política econômica extrativista e capitalista na qual as normas são feitas para os grandes capitais e os empresários nacionais e transnacionais, na medida dos seus interesses.”
Assim sendo, por exemplo, entre 2013 e 2019, foi aprovado um conjunto de normas conhecidas como “normas incendiárias”, que ampliam direta ou indiretamente a quantidade de hectares a ser desmatados ou queimados, flexibilizando os mecanismos jurídicos que estavam vigentes no país. Da mesma forma, a Lei de Mineração e Metalurgia 535, do mesmo período, permite a mineração dentro de Áreas Protegidas sem cumprir normas como o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e dentro de Territórios Indígenas, dispensando a realização da Consulta Livre, Prévia e Informada. (CLPI) aos Povos Indígenas, com o argumento de que os mineradores têm direitos estabelecidos antes da referida lei.
As políticas governamentais dos últimos anos, diz Ruth, favorecem os grandes poderes econômicos. “Essas políticas violam a integridade da Mãe Terra, tirando-lhe a virtude e a capacidade de dar, gerar e regenerar vida. Estão cortando suas veias, que são os rios, para fazer mineração de ouro com uso de mercúrio e para implementar megaprojetos hidrelétricos. Estão desnudando sua pele com o desmatamento implacável, inclusive com fogo, para o agronegócio e a pecuária. Estão envenenando seus órgãos produtores de oxigênio, como solos e florestas, com agroquímicos, para plantar soja ou dendê. Estão dinamitando e perfurando suas veias vitais, que são as fontes de água subterrâneas e superficiais, em busca de petróleo. Estão mutilando suas exuberantes montanhas e as margens de seus rios, que foram criadas para apreciar a beleza e a vida em abundância. Uma abundância de vida que hoje definha porque as mineradoras que se escondem em supostas ‘cooperativas mineiras comunitárias’ ou atividades de ‘mineração em pequena escala’ para evitar o pagamento de impostos ou de insignificantes royalties de 2,5%, estão ligadas a transnacionais chinesas e brasileiras e a grandes empresas nacionais.”
Da mesma forma, Ruth esclarece que essas políticas estão submetendo os Povos Indígenas à pobreza extrema. “Não ter água significa pobreza extrema. “Nada é possível sem água”, ela adverte. “Então ocorrerá o processo de extinção da Amazônia por conta dos êxodos, porque nós, que desde tempos ancestrais a habitamos, cuidamos, protegemos e defendemos, teremos que sair para buscar algo que não temos mais em nossos lugares. Ou passaremos por um processo de transformação para ser os destruidores dos nossos próprios territórios, pois eles nos obrigarão a nos tornarmos garimpeiros ou plantadores de dendê para tentar sobreviver. E assim, uma vez despojados de toda a nossa dignidade, das nossas identidades, dos nossos princípios e valores, da nossa espiritualidade e veneração à sagrada Mãe Terra, dos nossos rios, das nossas montanhas, as florestas e os territórios ficarão sem os seus protetores, que somos nós, os Povos Indígenas.”
Mas, felizmente, dentro desse panorama cruel em relação ao futuro da Amazônia e de seus povos, Ruth compartilha sua visão de esperança, com os Povos Indígenas em luta constante.
Da mesma forma, as novas gerações estão começando a repensar o futuro que desejam. Para Ruth, à medida que os mais jovens começarem a compreender que nós, que vivemos hoje, não temos direito de privá-los do que eles têm para viver em um futuro muito próximo, a esperança aumentará.
LUTAR PELO TERRITÓRIO É LUTAR PELA VIDA!
E VIVER COM AUTODETERMINAÇÃO É UM DIREITO INALIENÁVEL DO NOSSOS POVOS INDÍGENAS!
Artigo elaborado com base em entrevista com Ruth Alipaz Cuqui, líder da Nação Uchupiamona, da Amazônia Boliviana, e membro da Coordenação Nacional de Defesa dos Territórios Indígenas Originários e Áreas Protegidas (CONTIOCAP), e nas seguintes fontes de informação:
(1) Izquierda Diario, Incendios forestales: los intereses agroindustriales ante la mirada tibia del gobierno, November 2023
(2) Fundación Tierra, Deforestación 2016-2021. El pragmatismo irresponsable de la “Agenda Patriótica 2025,” June 2022
(3) Rojas Calizaya, J; Anzaldo García, A., El nuevo PLUS del Beni excluye a los actores y sus diversas visiones de desarrollo y atenta contra la Amazonía boliviana, Cipca, 2020
(4) Cejis, Análisis socioambiental del Plan de Uso de Suelo (PLUS) 2019 del departamento del Beni, 2020
(5) RTP Bolivia, Video: Engineer Javier Mamani Quispe, General Coordinator to foment production, January 2023
(6) Ver Seção “Óleo de dendê” no site do WRM.
(7) Boletim WRM, “Sem Água não há vida: os rios da Amazônia boliviana”, setembro de 2022.