Uma visão feminista dos Bens Comuns revela que a acumulação é contrária aos princípios básicos de compartilhar e sustentar: é garantindo que as necessidades (e não os desejos ou a ganância) definam a proporção da extração que se recebe da abundância da natureza. Para que os Bens Comuns existam, a abundância, e não escassez, deve determinar as necessidades.
Os Bens Comuns são a base dos meios de subsistência de grande parte da população da Índia e determinam seus ritmos de vida, principalmente para quem vive à margem da economia capitalista dominante. As pessoas que dependem desses Bens Comuns representam uma parte importante da população indiana, e a maioria delas depende das florestas e da pequena agricultura. Os planejadores de desenvolvimento buscam atrair essas pessoas para a economia moderna, para que elas possam obter benefícios econômicos. Porém, eles prestam pouca atenção ao fato de que os Bens Comuns representam um modo de vida e que os processos de desenvolvimento ameaçam a quem depende da natureza e de seus modos de vida entrelaçados, por exemplo, com as florestas, ao presumir que os Bens Comuns e seus habitantes precisam de uma mudança de paradigma em direção a um modo de vida mais “civilizado”. Incorporadas aos Bens Comuns – florestas inerentemente diversas, campos, corpos d’água, etc. – estão as múltiplas tradições que permanecem vivas e sustentam a si e às vidas ao seu redor com base em uma reciprocidade simbiótica de nutrir e repor, e em conhecimentos e práticas que vêm evoluindo por meio do ser e do fazer ao longo dos séculos.
As mulheres estão no centro dessas comunidades que praticam e cuidam dos Bens Comuns. Essas práticas surgem de uma tradição de dar e receber e, por sua vez, da criação de “abundância”.
Algumas feministas defendem que, como são as mulheres que dão à luz, a condição de cuidadoras lhes é dada “naturalmente”. Outras feministas, pelo contrário, consideram que esses papéis são socialmente construídos. O grau de reconhecimento e o foco dado às mulheres e suas contribuições ao cuidado das sociedades têm variado entre regiões e culturas, mas têm sido cada vez mais diminuídos e subjugados pela estrutura socioeconômica capitalista, patriarcal e hierárquica da sociedade, caracterizada pelo controle opressivo da mão de obra e pela dominação da natureza e do trabalho das mulheres.
Segundo o atual paradigma dominante, o trabalho das mulheres em casa ou nos campos, na floresta, criando animais ou forrageando em busca de combustível, comida, água ou pasto não é considerado “trabalho”, e tampouco é remunerado ou respeitado. Os direitos das mulheres à terra e aos meios de subsistência são sempre os mais inseguros. A violência desenfreada contra as mulheres nas sociedades é uma expressão da dominação e do controle do trabalho delas e de suas capacidades, bem como da dominação da natureza que vem combinada com tecnologias para esse fim: mineração, exploração madeireira, pesca de arrasto, etc. (1)
Na Índia, pastores e criadores de animais, muitas vezes nômades, constituem uma parte importante da população. Eles forragearam, caçaram e coletaram nas áreas florestais e tiveram séculos de aprendizado para desenvolver um “modo de vida” que harmoniza suas necessidades com as da natureza, da qual eles se sentem parte. Várias dessas sociedades tribais têm um histórico matrilinear (onde os descendentes são identificados através da linhagem das mães), que se acredita estar incorporado à centralidade das mulheres na manutenção de relações sinérgicas com os Bens Comuns (por exemplo, os khasis, no estado de Meghalaya, no nordeste do país, os grupos tribais do distrito de Sirmor, em Himachal Pradesh, no norte da Índia, etc.). Outras sociedades tribais, no entanto, estabeleceram padrões de sobrevivência e sustento dentro de estruturas menos igualitárias, e estão cada vez mais se voltando a rígidos modos patriarcais de governança.
Histórias contadas por elas: ciclos e abundância
O conhecimento e as histórias, as vidas e os ciclos sazonais das comunidades pastorais e dos povos indígenas vêm sendo cada vez mais documentados. Contudo, grande parte dessa documentação tem se baseado nas histórias contadas por homens e informadas por uma mentalidade patriarcal e capitalista. Isso fez com que certas atividades e processos se sobrepusessem a outras, gerou a captura de experiências que retratam e enfatizam aspectos específicos da economia e dos relacionamentos nela incorporados, o destaque a valores específicos que criam imagens de um determinado estilo de vida e enfatizam certas escolhas em detrimento de outras – uma tentativa de validar a legitimidade de um mundo baseado na ganância em detrimento da necessidade, a dominação e a competitividade como atributos naturais. Enquanto isso, aquelas histórias que são o alicerce de muitas comunidades, mas não servem ao propósito da acumulação nos modos de produção capitalistas, têm sido ignoradas.
Tentativas mais recentes de documentar as histórias dessas comunidades do ponto de vista das mulheres ilustram as nuances de sua existência. Elas destacam experiências de comunidades que sustentam suas vidas e seus meios de subsistência a partir de modos simples, mas entrelaçados, de estar com a natureza. São principalmente narrativas e análises oriundas de lugares onde há expulsão ou crise climática, das lutas contra os ataques do desenvolvimento destrutivo e da industrialização agressiva etc. Em todas elas, invariavelmente, há experiências de mulheres que trazem à tona a nuance, as expressões que informam os protestos, e os corpos das mulheres que acabam se posicionando na vanguarda da resistência. E assim, elas também são os alvos fáceis do poder agressivo masculino dos empreendedores capitalistas da indústria, trabalhando em aliança com o Estado.
Os Bens Comuns, na condição de espaço e ao longo do tempo, como “cultura” e “estilo de vida”, têm sido parte das formas de fazer, conhecer e ser das mulheres que dependem deles. O espaço desses Bens define e é definido por um infinito entrelaçamento de sua existência como entidades incorporadas a esses domínios, atribuído pelo ritmo da natureza. Seu ritmo e suas nuances são mais bem desvendados a partir das histórias e tradições orais. Por exemplo, o aparecimento de novas folhas em uma determinada espécie de planta que indica que poderá haver uma boa monção – vento típico do Sudeste Asiático -, um pássaro ou o florescimento de uma mangueira. As economias dos Bens Comuns a partir da perspectiva de gênero representam um ciclo diário de equilíbrio entre necessidades de sobrevivência e cuidados, com processos de abundância e escassez. O que se retira dos Bens Comuns segue a necessidade de reposição para manter um equilíbrio baseado em ciclos e estações do ano. O jhuming (cultivo itinerante) e o nomadismo têm seguido esse ritmo no espaço e no tempo.
Enquanto várias economias procuram redescobrir ou reimaginar os Bens Comuns como um modo de vida, muitas sociedades em diversas regiões do Sul global conseguiram até agora sustentar uma vida baseada neles – como um conjunto de princípios e ritmos definidos contextualmente, mas também universais em suas raízes ideológicas de compartilhamento e abundância.
Trabalho, Mão de obra e Produção
Apesar das importantes mudanças atuais nas sociedades tribais sob a influência da economia dominante opressiva, ainda existe o reconhecimento dos direitos das mulheres aos bens comuns da comunidade. No entanto, seus direitos estão sendo restringidos no campo dos direitos à terra de cada família - – um sistema que surgiu das práticas de pessoas que não dependem dos Bens Comuns, incorporando noções de propriedade privada.
Embora as mulheres continuem sendo as maiores detentoras de conhecimentos em relação a alimentos, ervas e práticas de cura, conscientes e capazes de forragear, coletar, colher e fazer outros trabalhos baseados em um legado de habilidades e conhecimentos adquiridos, a maior parte desse trabalho é invisibilizada e carece de reconhecimento. Esse trabalho se tornou um fardo para as mulheres quando surgiu a classificação do trabalho: o trabalho com valor de subsistência (atribuído às mulheres, que o fazem com base na convicção de seu valor) se separou do trabalho com valor econômico (atribuído primeiro e principalmente aos homens, que aspiram a obter ganhos econômicos através do trabalho assalariado ou outras formas de trabalho vinculados ao mercado). A partir dessa classificação, foram criadas hierarquias, remunerando-se o trabalho de valor econômico que, consequentemente, tem atribuído a si um valor mais alto.
O sistema de mão de obra (trabalho com valor econômico) é invariavelmente executado para alguém “de fora” – um contratante ou uma pessoa local com vínculos com o mundo externo aos Bens Comuns – por motivos outros que não a subsistência ou o sustento. A probabilidade de os homens serem atraídos para o sistema de trabalho com valor econômico é maior porque eles estão menos incorporados ao trabalho relacionado aos seus Bens Comuns e ao cuidado dessa filosofia. Os homens também começaram a dominar os espaços de tomada de decisões e formulação de regras que determinam os termos de envolvimento entre si e com o mundo outro/externo do mercado (de mão de obra). Como resultado, muitas dessas sociedades têm tendido a adotar e reforçar práticas e culturas dominantes, incluindo ideais patriarcais.
Debates sobre a necessidade de reconhecer o trabalho das mulheres como mão de obra compensando-o através de medidas financeiras encontraram ressonância na Índia entre alguns formuladores de políticas e feministas liberais ocidentais. Embora possa parecer um objetivo altruísta, na verdade, isso diminui a dignidade desse trabalho, pois reduziria o trabalho de cuidado das mulheres a uma ocupação que deve receber um salário, e o resumiria a isso. O ato de compartilhar, sustentar e cuidar dos Bens Comuns para a geração de abundância é negado ao ser considerado apenas como uma mercadoria a ser remunerada. Mas, como não é compartilhada, essa função fica confinada ao domínio das mulheres e ignora a estrutura social e cultural contida nela.
O “trabalho” dos Bens Comuns Feministas
Ao administrar os alimentos para a família, por exemplo, as mulheres tomariam decisões discretas sobre o que e quanto coletar. Elas provavelmente optariam pelos recursos mais abundantes, pois estes provavelmente serão repostos de forma mais rápida e fácil, diferentemente de ervas, tubérculos, raízes ou súberes (cascas internas) que seriam úteis como alimentos de crise, em tempos de doenças ou se a abundância estiver em risco. Essas escolhas discretas raramente são reconhecidas ou compreendidas por seu papel na manutenção de um equilíbrio no uso e na reposição dentro dos ciclos da natureza e, portanto, não entrariam na previsão de necessidades alimentares ou na gestão de crises.
No entanto, muitas vezes encontramos planejadores, burocratas e funcionários de programas estatais e de assistência dedicados a implementar uma determinada cartilha que define pagamentos e pacotes de desenvolvimento, lamentando que as comunidades pareçam não exercer uma abordagem baseada em planejamento para lidar com seus problemas e nem economizar para tempos de crise.
Uma perspectiva feminista sobre os Bens Comuns revelaria que o fato de estarem incorporados aos ciclos e ritmos da natureza faz com que a compulsão de acumular seja contraditória com os princípios do compartilhamento e do cuidado. Esse receber da abundância também é uma função de garantir que as necessidades (e não os desejos ou a ganância) definam a proporção da extração, a fim de permitir que outros e eles próprios dependam da disponibilidade em ocasiões futuras. Essas comunidades se abstiveram de uma cultura de acumulação, já que a abundância e a escassez não informam suas necessidades. A simplicidade das necessidades é entretecida para formar uma fina textura de relações de recebimento e reciprocidade, com o objetivo de impedir que surja a necessidade de acumulação e o conflito. E, se isso acontecer, também existem normas para sua reparação, que se sabe que muitas comunidades adotam.
O problema, então, não reside em sua falta de vontade de acumular, mas nos processos que ameaçam a sustentação da abundância da qual elas dependem. O “trabalho” visto através de uma lente feminista dos Bens Comuns precisa incorporar as ações e os processos realizados em um contexto de abundância da natureza e processos de produção compartilhados para beneficiar todo o domínio do bem-estar. O exercício da mão de obra, por outro lado, é uma coerção derivada do sentido da escassez, que obriga os indivíduos a buscar retornos econômicos para si mesmos, independentemente de como essas tarefas possam afetar a natureza e outros seres.
O trabalho visto como exercício de mão de obra, portanto, ignora os processos enraizados em contextos sociais e culturais complexos. Ele invisibiliza a trabalhadora, bem como a relevância social e a marca ecológica desse trabalho. Os movimentos de mulheres lutam pelo reconhecimento desse trabalho, mas não como “trabalho de mulheres” e sim como trabalho fundamental para o bem-estar das sociedades. As feministas também se esforçam para compartilhar esse trabalho, bem como as recompensas – sejam elas econômicas ou nas relações geradas por esse trabalho. Se ele for compartilhado, homens e mulheres poderão contribuir de maneira mais holística para a construção de Bens Comuns e sociedades que cuidam.
Este é um resumo do artigo:
“Women’s Work is Work: A Feminist Perspective on the Commons as Process”, Soma KP e Richa Audichaya, Índia.
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(1) “O patriarcado é um sistema social no qual os homens detêm o poder fundamental e predominam em papéis de liderança política, autoridade moral, privilégio social e controle dos direitos de propriedade. Os ideais patriarcais atuam para explicar e justificar esse domínio e atribuí-lo às diferenças “naturais” inerentes entre homens e mulheres.