A luta das mulheres pelo reconhecimento pleno e digno de suas vidas e seus territórios começa por não permitir o avanço do modelo privatizante e extrativista, mas deve se dar resolvendo a necessidade de as mulheres também tomarem decisões para fortalecer o controle político coletivo.
As mulheres e o acesso à terra no mundo
A agricultura camponesa e indigena produz até 80% dos alimentos em países não industrializados, e as mulheres são responsáveis por algo entre 60% e 80% dessa produção. Além disso, elas cumprem um papel fundamental na conservação das florestas e da biodiversidade em nosso planeta. Mesmo assim, apenas 30% das mulheres rurais possuem terras agrícolas, e elas não têm acesso aos meios de produção. (1) O sistema capitalista e patriarcal organiza e regula o trabalho de mulheres e homens segundo a divisão sexual do trabalho, beneficiando-se das atividades de cuidado invisíveis e não remuneradas que as mulheres exercem em suas casas e comunidades. A maioria delas assume tarefas de reprodução social, como a defesa da terra e do território, o cuidado com a água e a biodiversidade, ao mesmo tempo em que participa ou é responsável pela produção, o manejo e/ou a transformação agrícolas ou florestais. (2)
Em nível mundial, as mulheres do campo são responsáveis por mais da metade da produção de alimentos. Em termos de propriedade sobre a terra, no entanto, elas estão claramente em desvantagem em comparação com os homens. Mecanismos institucionais ou de parentesco tratam deliberadamente os homens como aqueles capazes de administrar a família e lidar com a demanda da agricultura e da pecuária. As mulheres recebem entre 5% e 10% do total de créditos para assistência técnica no campo. (3)
Mulheres na América Latina
O Atlas de mulheres rurais na América Latina e no Caribe, da FAO, apresenta uma visão geral na qual as mulheres rurais continuam situadas em uma condição de desigualdade política, social e econômica, e se reconhece que os percentuais de propriedade da terra por parte delas são baixos: 12,7% no Brasil, 15,7% no México, e 16,2% na Argentina. (4)
Além disso, temos o avanço de projetos de caráter extrativa, como monoculturas de árvores, mineração, expansão do modelo de agronegócio, entre outros. A implementação desses projetos está vinculada a processos de violência, militarização e paramilitarização nos territórios e, principalmente, nos corpos das mulheres. Os projetos extrativistas comprometem claramente as formas de produção e reprodução da vida, e as mulheres costumam travar diferentes batalhas na defesa do território e na luta pelo reconhecimento de seus direitos agrários. A combinação desses fatores limita a autonomia das mulheres e as empobrece ainda mais. Muitas vezes, sua inclusão, por meio da geração de empregos nos projetos extrativas, permite cumprir a “cota” de gênero necessária na política empresarial e que proporciona os enormes benefícios para as empresas que lucram com a espoliação de bens comuns em territórios, mulheres e seus corpos.
À medida que aumentam a exploração e o controle do capital sobre os territórios, ambos também aumentam sobre o trabalho e a vida das mulheres. Esses dois “recursos” são, ao mesmo tempo, indispensáveis e considerados infinitos e flexíveis no processo de acumulação de lucros. (5)
Essa abordagem extrativista aprofunda a invisibilização do trabalho de cuidado e a falta de acesso à terra, com um impacto especialmente negativo sobre as mulheres, uma vez que a decisão sobre o território e os bens naturais comuns está diretamente ligada aos direitos agrários ou de titularidade sobre a terra. O crescente avanço de projetos extrativistas em todo o mundo cobre isso de vital importância.
Mesmo dentro de comunidades com formas de propriedade coletiva, existem estruturas patriarcais que não costumam reconhecer o papel da mulher no trabalho coletivo e na reprodução da vida. Tampouco permitem a participação efetiva das mulheres nos espaços de decisão, apesar de elas participarem ativamente na sustentação das lutas pela defesa de suas terras diante da chegada de projetos extrativos.
O México e a posse da terra
No México, isso não é exceção. Embora, em termos de propriedade da terra e posse de florestas, por exemplo, sempre se observe que 80% (6) das florestas estão nas mãos de ejidos (terras coletivas) e de comunidades indígenas e camponesas, dentro deles está estabelecido um sistema de organização patriarcal que favorece os homens, como regra geral, no acesso à terra.
Junto a isso, quando têm acesso à terra e se convertem em sujeitos agrários ao herdá-la ou obtê-la por meio de compra ou de ações na justiça que duram muitos anos, as mulheres enfrentam situações de espoliação por parte de parentes, assembleias ou vizinhos. Por exemplo, os números obtidos pelo centro de direitos das mulheres de Chiapas, no sul do país, em 2015, mostram mais de 100 denúncias de espoliação naquele ano. (7)
Em 1992, com a reforma do artigo 27 da constituição, teve início o avanço da destruição da posse coletiva no México por meio da promoção de programas de certificação agrária, com a qual se pretende promover a privatização da propriedade social e coletiva.
Nesse sentido, temos a aplicação de programas como PROCEDE (Programa de Certificação de Direitos de Ejido e Titulação de Parcelas), FANAR (Fundo de Apoio a Núcleos Agrários Não Regulamentados) e RRAJA-FANAR (Programa de Regularização e Registro de Atos Jurídicos Agrários), que condicionam o acesso de comunidades e ejidos aos programas governamentais para o campo à individualização da terra mediante a obtenção de títulos de propriedade.
Mulheres e posse da terra: Para que queremos terra? Algumas reflexões
Nós, mulheres, desenvolvemos conhecimentos milenares, bem como um manejo e uma gestão holísticos dos bens naturais comuns, incluindo terras florestais e agrícolas: água, sementes, usos e transformações. Além disso, estamos sujeitas a políticas ativas nas lutas pela defesa de nossos territórios; não é correto dizer que apenas participamos de sua gestão.
No México, muitas experiências sugerem que as comunidades se fortalecem diante do exercício coletivo e participativo de seus direitos agrários. São essas comunidades que melhor defendem suas terras e seus territórios. No entanto, ainda há um longo caminho a percorrer para deixar de fortalecer estruturas nas quais os homens tomam decisões que perpetuam esse sistema de desigualdades sobre os territórios e os corpos das mulheres. O fortalecimento de assembleias que reconheçam os direitos de titularidade das mulheres sobre suas terras gera processos de decisão mais consistentes nos territórios.
Experiências locais em Guerrero, Chiapas e Oaxaca, no sul do México, apontam alternativas construídas pelas comunidades para o reconhecimento dos direitos agrícolas das mulheres, por exemplo, a criação de assembleias de comissões mistas encarregadas de escrever capítulos sobre os direitos das mulheres e cujo objetivo é o reconhecimento da propriedade social e coletiva dos povos e contra os projetos de privatização e espoliação. (8) No mesmo sentido, constrói-se a iniciativa que aposta na propriedade familiar da terra, a qual promove principalmente o direito de as mulheres serem reconhecidas como membros dos coletivos de ejidos e comunidades, em igualdade de direitos com os homens, e o reconhecimento da terra como propriedade familiar. Essa iniciativa aponta para a necessidade de as mulheres poderem, além de ter seus direitos reconhecidos, expressar sua voz e tomar decisões nas comunidades, para fortalecer o controle político diante do enfrentamento aos processos de privatização que buscam se instalar nos territórios.
Algumas reflexões que também respaldam essa luta são apresentadas por Lorena Cabnal, da Guatemala, a partir do feminismo comunitário: “Não defendo meu território-terra apenas porque preciso dos bens naturais para viver e deixar uma vida digna para outras gerações. Na abordagem baseada na recuperação e na defesa histórica do meu território corpo-terra, assumo o resgate do meu corpo espoliado, para gerar vida, alegria, vitalidade, prazeres e construção de conhecimentos libertadores para a tomada de decisões. (...) Nesse sentido, todas as formas de violência ameaçam essa existência, que deve ser plena”. (9)
A continuidade da vida depende dos espaços sociais de produção e reprodução. Essas iniciativas reafirmam formas de posse nas quais as coletividades continuam resguardando seu acesso à terra por meio de esquemas de posse coletiva. Isso acontece diante da onda de projetos que pretendem não apenas condicionar a política de investimento público no campo, mas também colocam em cena modelos de defesa do “projeto de vida” diante da imposição de projetos de privatização e espoliação.
Como nos diz Gladys Tzul Tzul, de Totonicapán, na Guatemala (2014): “Nós, mulheres indígenas e camponesas, buscamos não apenas o reconhecimento do acesso à terra, mas também uma participação plena: nossas histórias se inserem em muitos eventos coletivos que construíram caminhos políticos de luta nos quais a disputa central é pelos meios materiais de reprodução. (...) Se vivemos em relações sociais que produzem comunidade, temos que pensar seriamente na organização e na criação de formas de responsabilidade e trabalho compartilhados entre mulheres e homens, porque o cuidado não tem que se dar à custa da saúde da mulher. Também temos que produzir maneiras nas quais participemos plenamente, não apenas do uso das terras comunitárias, mas também no processo em que se tomam as decisões sobre o coletivo”. (10)
Nesse sentido, a busca pelo reconhecimento do direito à terra começa por não permitir o avanço de um modelo de privatização nos territórios, mas deve ocorrer sob o preceito do reconhecimento absoluto dos direitos agrários das mulheres e do nosso papel na reprodução da vida, na criação da comunidade, bem como na força de nossas memórias e na coragem de nossos modos de vida cotidianos. Isso implica a garantia do direito das mulheres à plena participação na vida social, política e econômica das comunidades, bem como do acesso a água, sementes e condições de produção e comercialização, com autonomia e liberdade.
Claudia Ramos Guillén, crguillen.2014@gmail.com
Agroecóloga com experiência em processos de defesa de florestas e biodiversidade em comunidades indígenas e rurais do sul do México.
(1) Agricultura Familiar en América Latina y el Caribe, recomendaciones de política. 2014. Consultado em fevereiro de 2020.
(2) Amigos de La Tierra Internacional. 2018. Manejo comunitario de Bosques y Agroecología: vínculo e implicaciones. Consultado em fevereiro de 2020.
(3) FAO aboga por mayor acceso de las mujeres a la tierra en América Latina y el Caribe. 2015; consultado em 14 de fevereiro de 2020.
(4) FAO, 2017. Atlas de las mujeres rurales de América Latina y el Caribe; consultado em 13 de fevereiro de 2020.
(5) Korol, Claudia. 2016. Somos tierra, semilla, rebeldía. Mujeres, tierra y territorio en América Latina. Uma coedição de GRAIN, Acción por la Biodiversidad e América Libre.
(6) Bray, D. B., L. Merino P. e D. Barry. 2007. El manejo comunitario en sentido estricto: las empresas forestales comunitarias de México. Em: Bray, D. B., L. Merino P e D. Barry (orgs.). Los bosques comunitarios de México. Manejo sustentable de paisajes forestales. Instituto Nacional de Ecología-Secretaría de Medio Ambiente y Recursos Naturales y Consejo Civil Mexicano para la Silvicultura Sostenible. México, D. F. México. p. 21-49.
(7) Centro de Derechos de La Mujer (CDMCH).2015. Construcción del movimiento de defensa de la tierra, el territorio y por la participación y el reconocimiento de las mujeres en la toma de decisiones. Documento de divulgación electrónico.
(8) Carpeta de Información. 2019. Gómez, Claudia; Rodríguez Maritza, Erika Carbajal. Integrantes del Grupo de género y extractivismo en México.
(9) Cabnal, Lorena. 2012. Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala. Consultado em fevereiro de 2020.
(10) Tzul Tzul, Gladys. 2015. Mujeres indígenas: Historias de la reproducción de la vida en Guatemala. Una reflexión a partir de la visita de Silvia Federicci. Bajo el Volcán, vol. 15, no. 22, março-agosto de 2015, p. 91-99. Benemérita Universidad Autónoma de Puebla. Puebla, México.