A seleção e o cultivo hábeis das sementes mais adequadas a um determinado local estão no centro da pequena agricultura e dos sistemas agroflorestais. A agrobiodiversidade que resulta de centenas de milhares de variedades de cultivos e raças de animais encontradas nos campos dos pequenos agricultores no mundo todo é o alicerce do sistema alimentar global. Os agricultores e as variedades locais que eles desenvolveram ainda alimentam a maioria de nós. Em contraste, a agricultura industrial dominada por um pequeno número de empresas transnacionais reduziu drasticamente a agrobiodiversidade dos cultivos que são plantados. Ela também invadiu rapidamente as terras das quais os agricultores dependem para produzir alimentos e os impediu de acessar a diversidade de sementes que constitui a base da pequena agricultura e dos sistemas agroflorestais.
Durante milênios, os agricultores salvaram, trocaram e replantaram sementes, ano após ano, e essa prática gerou a enorme agrobiodiversidade que o mundo tem hoje. Isso sempre foi uma pedra no sapato das indústrias que querem controlar o mercado global de sementes e, assim, reduzir sua diversidade. Elas querem que os agricultores comprem as sementes delas todos os anos e pressionam continuamente os governos a adotar leis e tratados cada vez mais rigorosos para forçar os agricultores a entrar no mercado comercial de sementes.
Uma das principais maneiras de controlar o acesso dos agricultores às sementes são os acordos comerciais. Mais de 20 anos atrás, empresas comerciais de sementes conseguiram pressionar os governos para incluir no acordo da Organização Mundial do Comércio (OMC) a obrigação de que todos os países prevejam direitos de propriedade intelectual sobre variedades de plantas. Isso significa basicamente que as empresas podem reivindicar direitos de propriedade sobre as sementes que desenvolvem e os materiais genéticos que elas contêm, impedindo os agricultores de fazer o que eles vêm fazendo há milênios: conservar, trocar e melhorar as sementes. Esse foi um importante ponto de partida para a indústria de sementes e, desde então, ela não parou de pressionar por sua agenda. Seu próximo objetivo era conseguir que os países aderissem à UPOV, a União de Proteção de Novas Variedades Vegetais, uma convenção que concede direitos de propriedade intelectual sobre variedades de sementes. Ao mesmo tempo em que as empresas de sementes corporativas faziam lobby para que os direitos de propriedade intelectual sobre as variedades vegetais fossem consagrados no acordo da OMC, a convenção da UPOV também era alterada. Em 1991, a organização eliminou o direito dos agricultores de conservar, e trocar sementes que eram “protegidas” – ou seja, eram de propriedade de empresas que tinham adquirido títulos da UPOV sobre elas. Combinados, esses dois eventos proporcionaram o caminho perfeito para que as empresas obtivessem mais controle sobre o suprimento mundial de sementes.
Acordos comerciais bilaterais e regionais são usados para fortalecer o controle das empresas sobre as sementes
Na última década, acordos comerciais bilaterais e regionais foram usados para fortalecer ainda mais os direitos de propriedade de empresas sobre as sementes. Em julho deste ano, a GRAIN publicou um novo conjunto de dados com uma lista de acordos comerciais que fazem exatamente isso. (1) Sucessivos acordos são assinados pelos governos para incluir exigências de que os países subscrevam as regras empresariais da UPOV ou fortaleçam de algum outro modo os direitos de propriedade intelectual sobre a biodiversidade em seus países. Portanto, as exigências inseridas nesses acordos comerciais significaram nada menos do que roubo legalizado, uma vez que essas sementes corporativas foram desenvolvidas originalmente a partir de variedades desenvolvidas e cultivadas pelos agricultores.
Entre os mais recentes acordos comerciais bilaterais e regionais que restringem ainda mais o controle dos agricultores sobre as sementes que cultivam estão:
• O Acordo de Comércio Econômico Global (CETA) da União Europeia e do Canadá, que atualmente enfrenta problemas para sua ratificação. Ele dá às empresas de sementes no Canadá e na UE novas ferramentas poderosas para fazer valer os direitos de propriedade intelectual contra os agricultores, através de apreensões de sementes e medidas liminares baseadas em mera suspeita de violação, incluindo a conservação de sementes.
• Os Acordos de Parceria Econômica (APE) da UE com países africanos, que comprometem todos os signatários a elaborar novas normas sobre direitos de propriedade intelectual, incluindo as sementes.
• Nesse meio-tempo, o governo dos EUA pressiona regularmente seus parceiros comerciais a cumprirem seus compromissos em matéria de direitos de propriedade intelectual. Em um relatório recente, critica o Chile e a Colômbia por não terem adotado a versão mais recente da UPOV, de 1991 (UPOV 91, que elimina o direito dos agricultores a conservar e trocar sementes protegidas), como esses países concordaram em fazer nos seus acordos comerciais bilaterais de 2003 e 2006 com o governo dos EUA.
• A Parceria Transpacífico (TPP, na sigla em inglês) obriga 12 países da Ásia e das Américas a aderir à UPOV 91. Isso, por sua vez, obrigará muitos deles a reprimir a capacidade dos agricultores de conservar sementes de variedades protegidas. A indústria de biotecnologia e sementes dos EUA acredita que esse tratado também abre a porta para patentear plantas em geral, e chama a TPP de “a maior ferramenta” até hoje, por impor padrões mais elevados de propriedade intelectual não só na Ásia, mas globalmente.
Têm havido alguns esforços em nível da ONU para proteger os direitos dos agricultores e das comunidades locais sobre a biodiversidade que cultivaram ao longo dos séculos. Um deles é o Tratado das Sementes negociado e acordado há 15 anos na Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Ele inclui uma cláusula sobre Direitos dos Agricultores, que reconhece o direito de “conservar, utilizar, trocar e vender sementes (...) produzidas na exploração”. Ao mesmo tempo, no entanto, o Tratado das Sementes também reconhece os direitos de propriedade intelectual das empresas. Em um recente encontro oficial sobre o tema, realizado em outubro de 2016, na Indonésia, a Via Campesina manifestou sua forte decepção com o fato de que, após 15 anos, o Tratado tenha feito pouco para implementar e garantir os direitos dos agricultores. Mais uma vez, o movimento apelou aos países-membros do Tratado para que parassem de negociar acordos e leis de propriedade intelectual que prejudiquem e criminalizem os direitos dos agricultores às sementes. (3)
Outro tratado da ONU que trata da questão é a Convenção sobre a Biodiversidade (CDB), que adotou o Protocolo de Nagoya, em 2010. O Protocolo se concentra no acesso e na partilha dos benefícios da biodiversidade. Em teoria, esse protocolo prevê o consentimento prévio e informado e uma proteção aos direitos das comunidades locais. Na realidade, porém, o Protocolo tem sido criticado por reduzir as sementes a uma mera mercadoria, em vez de considerá-las como um elemento essencial da herança cultural das pessoas. Em junho de 2016, uma decisão do Tribunal Constitucional da Guatemala suspendeu a implementação do Protocolo no país (leia artigo neste boletim), em grande parte como resultado de campanhas feitas por organizações dos povos indígenas e agricultores, que argumentaram que o objetivo deveria ser proteger a Biodiversidade, e não comercializá-la. (3)
A boa notícia em meio à agressiva usurpação, por parte de empresas, do controle dos agricultores sobre as sementes que usam é que a oposição aos acordos de comércio e direitos de propriedade intelectual cresce a cada dia, e as mobilizações contra a privatização da biodiversidade são uma parte central dessa oposição. Em muitos países, como no Chile, na Argentina, na Colômbia e na Guatemala, os movimentos sociais vêm conseguindo questionar as novas leis de sementes. Em outros, novos acordos comerciais são cada vez mais contestados nas ruas. Aqui reside a nossa força para manter a biodiversidade nas mãos dos povos indígenas, dos pequenos agricultores e das comunidades locais.
GRAIN
https://www.grain.org/
(1) GRAIN (2016). Novos acordos comerciais legalizam o roubo corporativo e tornam ilegais as sementes dos agricultores. https://www.grain.org/article/entries/5511-new-trade-deals-legalise-corporate-theft-make-farmers-seeds-illegal. Os dados estão disponíveis para download em: https://www.grain.org/attachments/3939/download
(2) Via Campesina e ITPGRFA (2016). Em Consulta sobre os Direitos dos Agricultores, a Via Campesina exige um grupo de trabalho no Tratado que inclua as organizações camponesas, para ajudar a implementar seus direitos. https://viacampesina.org/en/index.php/main-issues-mainmenu-27/biodiversity-and-genetic-resources-mainmenu-37/2149-itpgrfa-at-consultation-on-farmers-rights-la-via-campesina-demands-a-working-group-in-the-treaty-comprising-peasants-organisations-to-help-implement-peasants-rights
(3) Karen Hansen-Kuhn, IATP (2016): Sementes do Poder Empresarial versus Direitos dos Agricultores: Precisamos começar a redirecionar o campo em favor dos agricultores e do meio ambiente. http://www.iatp.org/blog/201609/seeds-of-corporate-power-vs-farmers-rights-we-need-to-start-tilting-the-field-back-in-fa