Na África há uma história que tem perdurado ao longo dos anos sobre uma mulher do Mali de nome Nyéléni, que desafiou o poder patriarcal desde a agricultura, considerada uma tarefa de homens. Além de superar os homens em numerosas competências agrícolas, Nyéléni venceu também a aridez do território e conseguiu domesticar lavouras de grãos como o fonio e o samio, que permitiram alimentar toda a população malinesa.
Os fóruns sobre Soberania Alimentar, iniciados em 2007 no Mali, pela organização La Via Campesina e diversas organizações sociais com o objetivo de reafirmar as bases do conceito de soberania alimentar usaram o nome de Nyéléni, em sua recordação, e também no boletim criado como ferramenta de comunicação e intercambio do fórum para continuar com a luta pela soberania alimentar.
O boletim Nyéléni (www.nyeleni.org) completou seu primeiro aniversário e vai comemorar lembrando como “dia a dia, as mulheres devem encarar problemas só pelo fato de ser mulheres: seja no campo seja na cidade, devem enfrentar um sistema econômico que as discrimina por igual, já que é tanto capitalista quanto patriarcal. Um sistema que está baseado na separação entre produção e reprodução; que situa as atividades do mercado dentro da primeira e coloca as tarefas, que geralmente realizam as mulheres, dentro da segunda, tornando invisíveis os laços entre elas”.
Mas também salienta como “em oposição a esta separação, a economia feminista volta a ampliar a noção de trabalho (1) e a diferencia da noção de emprego (trabalho remunerado ou de mercado) para incluir na definição de trabalho as tarefas de reprodução biológica e social, isto é, as tarefas domésticas, comunitárias e de cuidado. A Soberania Alimentar também se situa nesse contexto, já que reconhece o trabalho fundamental que realizam as mulheres bem como implica a redistribuição e igualdade de tarefas entre todos os integrantes dos lares.
Sob esta ótica, o agronegócio é um exemplo muito didático de como a economia patriarcal e capitalista, baseada em um modelo corporativo de exploração e concentração, causa impactos sobre a vida das mulheres: “desde seus custos sociais mais evidentes, como o deslocamento dos camponeses e camponesas ou aqueles relacionados com a exploração no trabalho em termos gerais, até os mais invisibilizados, relativos à divisão sexual do trabalho. Nos setores altamente mecanizados, como é o caso da soja ou da cana, os postos mais qualificados são ocupados por homens, enquanto as mulheres ocupam tarefas relacionadas com os serviços de apoio, como a limpeza e a cozinha. Por outra parte, em setores intensivos como a fruta e as flores, contratam- se as mulheres, com freqüência, jovens, por um minguado salário e sem conceder- lhes direitos como trabalhadoras.
No caso do negócio de eucalipto, as mulheres trabalham tanto no manejo das mudas de eucalipto- um trabalho delicado- quanto na aplicação de agrotóxicos, porque são consideradas mais ‘responsáveis' que os homens, ainda que sua saúde, em especial por serem mulheres, tende a ter mais riscos.
Um dos artigos do boletim nº 6 (http://www.nyeleni.org/DOWNLOADS/newsletters/Nyeleni_Newsletter_Num_6_ES.pdf) afirma que na prática, observa-se que a acentuação da economia de mercado tende a aumentar as disparidades já existentes, tanto no tocante à exploração no trabalho associada ao agronegócio quanto ao acesso diferenciado à terra para homens e mulheres. Conforme a FAO (2), à medida que a terra é comercializada e diminui sua disponibilidade, observa-se que os membros homens das famílias reduzem o acesso à terra que tinham as mulheres, em especial no caso das viúvas e divorciadas. Apesar de representarem em média 43% da força de trabalho agrícola dos países em desenvolvimento (3), as mulheres possuem menos de 15% da terra no mundo todo (4). Ao negarem às mulheres o acesso igualitário à terra- que não tem por que ser limitado à propriedade privada, mas que podem ser garantidos direitos sobre ela através da locação de terras públicas ou de propriedade comunal- é erodida sua condição em nível econômico, social e político, o que se vincula diretamente com o sistema patriarcal. Este sistema estabelece que a terra seja herdada por linha paterna, e que as mulheres possam ter acesso a ela unicamente através de seus filhos homens, de seus maridos ou de seus familiares homens”.
No caso das mulheres da floresta, a expulsão de seus territórios por projetos empresariais e programas de áreas protegidas significou também um enfraquecimento de sua situação comparada com o tempo em que seus povos viviam como caçadores e coletores. É provável que naquela época os direitos coletivos sobre grandes áreas de floresta permitissem às mulheres exercer com autonomia as formas de uso da terra, e seus direitos à coleta e à caça não dependiam dos homens. Agora, em muitas situações a perda de acesso aos recursos alimentícios da floresta tem sérios impactos sobre as mulheres, que são as principais responsáveis pelo fornecimento do alimento diário à família. Com isso, esses projetos lesam não apenas a situação da mulher mas também a soberania alimentar desses povos.
E as mulheres assumem a luta, com Nyéléni como símbolo das dificuldades que devem enfrentar e vencer. Assim, as trabalhadoras rurais sem terra, expatriadas em seu próprio país, cansadas de viver precariamente, enfrentaram no Brasil os “desertos verdes” de eucaliptos da Stora Enso, Fíbria, Suzano, Arcelor Mital, todos financiados pelo BNDES (vide Boletim nº 165 do WRM). Na Índia, uma centena de mulheres líderes de sete estados reuniram- se em Dumka, Jharkhand, para realizar uma consulta sobre os direitos das mulheres sob a Lei dos Direitos sobre as Florestas e para reclamar o controle comunitário das florestas, dirigido por mulheres, ao longo dos 7,5 milhões de hectares de terras florestais (vide Boletim nº 165 do WRM); em Papua Nova Guiné, as mulheres associam- se e fortalecem- se contra as plantações de dendezeiros (vide Boletim nº152 do WRM); na África, criaram a Rede de Mulheres Africanas para o Manejo Comunitário das Florestas (REFACOF, sigla em francês) com o objetivo de promover os direitos das mulheres à terra e à floresta na África Central e Ocidental.
A resistência continua e, como anunciaram na Argentina (vide Boletim nº 158 do WRM) as mulheres “resistiremos e continuaremos na luta enquanto for preciso, não apenas contra o avanço das monoculturas de árvores exóticas e dos megaprojetos das empresas de celulose e papel, mas também contra os processos de mercantilização da vida dos seres e de desempodeiramento das mulheres. Nós, as mulheres, temos o potencial de fazer que ‘o novo aconteça' e o estamos fazendo”.
1. A partir do desenvolvimento industrial “só será estabelecido como trabalho o assalariado ou o autoemprego, perdendo tal categoria as atividades sem remuneração desenvolvidas pelos integrantes do lar para cobrir suas próprias necessidades. Dessa maneira, fica restrita a definição original de trabalho apenas àquelas atividades que apresentam características do trabalho de mercado” (Cristina Carrasco, “La sostenibilidad de la vida humana, um assunto de mulheres?, 2001).
2. Relatório Gênero e Terra. Igualdade de condições, FAO, 2007.
3. FAO, 2011
4. International Center for Research on Women, 2006