Em julho de 2017, nas margens do poderoso rio Narmada, na região central da Índia, a visão de pessoas realizando rituais na sua margem, pescadores trabalhando silenciosamente em pontos distantes, martins-pescadores de várias cores pairando sobre nós e o sol descendo lentamente me de deixaram sutilmente impressionado. Eu pensava que, mesmo que a lei na Índia não reconheça que entidades não humanas têm direitos, o rio como personalidade é uma parte aceita da cultura, e sua forma física é apenas um aspecto de seu caráter divino, pois esse caráter é considerado transcendental pelas comunidades que vivem ao seu redor. E mesmo que o rio sagrado esteja destruído e poluído, sua existência exige inevitável e necessariamente que os direitos sejam estendidos a ele.
Na Índia, os rios são reverenciados como mães, mas quase não há nada mais a ser feito para profanar a mãe. O rio Ganga [optamos pelo uso tradicional da palavra que nomeia o rio Ganges na Índia] passa por cinco estados, cobrindo 26% da massa terrestre do país, mas está fortemente represado em seus braços superiores e excessivamente poluído nas planícies. O rio Yamuna, um dos maiores afluentes do Ganga, não passa de um dreno na maior parte de seus braços superiores. A poluição e o represamento excessivos prejudicaram brutalmente a flora e a fauna, bem como todo o equilíbrio ecológico, colocando em risco não apenas o equilíbrio desses rios sagrados, mas também qualquer uso razoável.
Sinalizando uma mudança radical em relação à mentalidade extrativa, em 30 de março de 2017, o Tribunal Regional de Uttarakhand determinou que os rios Ganga e Yamuna, seus afluentes, bem como as geleiras e a bacia hidrográfica que alimenta esses rios, têm direitos jurídicos como se fossem pessoas. Foi apresentada uma petição reclamando que os estados de Uttarakhand e o vizinho Uttar Pradesh não estavam somando esforços com o governo central para conter a poluição e a invasão das margens dos rios. Essa decisão ocorreu uma semana após a aprovação da lei Te Awa Tupua no parlamento da Nova Zelândia, o que concede personalidade jurídica ao rio Whanganui e seu ecossistema. No direito moderno, a inclusão tem dois motivos: primeiro, conscientizar a sociedade sobre os direitos da natureza e, segundo, estabelecer uma posição jurídica contrária ao esgotamento da natureza.
Atualmente, o pedido foi suspenso após o estado de Uttarakhand apresentar uma petição no Supremo Tribunal da Índia contra a decisão do Tribunal Regional do Estado. O governo estadual de Uttarakhand argumentou que a ordem é juridicamente insustentável e simplesmente não é “viável”. No entanto, a decisão oferece a oportunidade de refletir sobre um conjunto interessante de preocupações complexas. O que significa um rio ter direitos ou ser reconhecido juridicamente como pessoa? O que significa estender esses direitos a toda a natureza? Como podemos repensar a lei e a governança para o bem-estar da natureza? Como nossas instituições podem refletir o valor intrínseco da natureza?
Os direitos da Natureza se tornaram uma preocupação central para acadêmicos, pensadores e ativistas em várias discussões em todo o mundo. A ideia pressupõe mudanças radicais nas formas de conhecer e se relacionar com o mundo natural e não humano e no nosso modo de vida social e político, e representa um desafio fundamental para o mundo contemporâneo em termos de normas e práticas que governam o nosso mundo social e político. A ideia de reconhecer os direitos da natureza, claro que não na linguagem das leis, há muito faz parte da visão de mundo de vários povos indígenas e de sua existência. Por exemplo, a visão de mundo dos indígenas andinos acredita que não há divisão entre vivos e não vivos. A Pachamama, ou Mãe Terra, é um organismo vivo maior, que interage com o sol e o cosmos, e os humanos são apenas um componente da comunidade da Terra.
No entanto, a disputa importante tem sido sobre o direito ocidental e sua limitação antropocêntrica, que considera a humanidade como o elemento central ou mais importante da existência. A linguagem dos direitos é limitadora, mas mesmo assim, estendê-los à natureza é questionar a legitimidade do sistema que acredita em superar todos os limites ecológicos para satisfazer as “necessidades” ilimitadas de uma espécie. Um rio ter direitos aos olhos do direito ocidental significaria que se pode promover uma ação judicial em nome dele, danos podem ser reconhecidos, o poluidor pode ser responsabilizado por causá-los e pagar uma indenização para beneficiar o rio. O que isso significaria? O rio pode ter direito a um fluxo livre, que pode ser equivalente ao direito fundamental de uma pessoa à liberdade de expressão? Isso significaria que ele pode fluir mantendo sua biodiversidade e habitat únicos? Ou que também existe a possibilidade de reverter as violações contra o rio (represamento, transposição de bacias, poluição etc.)? Tudo isso exigiria questionar agências governamentais, visões sobre “desenvolvimento” internacional impulsionadas por instituições como o Banco Mundial e empresas privadas que praticam essas violações. Também seria preciso repensar a ética básica das sociedades em que vivemos.
Mas é necessário refletir sobre a implementação dos direitos. Como não pode lutar por conta própria, o rio precisaria de protetores e guardiões. Nesse caso, movimentos sociais e grupos da sociedade civil terão que pressionar para que múltiplos conjuntos de atores de diferentes origens se envolvam. O processo de decisão deve ser descentralizado e os direitos tradicionais/consuetudinários dos habitantes locais (que podem ser mais afetados se a saúde do rio for perturbada) devem ser prioridade em qualquer um desses processos. A lei da Nova Zelândia tem uma participação democrática maior (envolvendo um conjunto múltiplo de atores) do que a ordem do Tribunal Regional de Uttarakhand. De acordo com a lei de Whanganui, o povo indígena Iwi e o governo compartilham a paternidade. Além disso, eles nomearam uma equipe de assessoria e uma equipe de estratégia composta por iwis de Whanganui, autoridades competentes locais, departamento de Estado, usuários comerciais e recreativos e grupos ambientalistas. A composição dos guardiões da ordem do Tribunal Regional de Uttarakhand, por sua vez, está fortemente inclinada ao Estado e, embora se mencione a possibilidade de envolvimento da comunidade, ainda tende muito ao critério dos membros do governo. Supõe-se que o Estado tenha o dever de proteger os “recursos naturais” e determinar o seu uso razoável, e que irá cumprir esse dever se receber mandato para isso do tribunal. No entanto, deixar esse problema para os departamentos estaduais é problemático em função de um histórico em que os governos estatais não fizeram nada além de oferecer soluções técnicas.
Juntamente com a implementação vem a reparação e a indenização. Será que a reparação poderia significar restaurar o máximo possível da forma original do rio, como era antes da violação, por exemplo, demolir barragens? Quem receberá a indenização? As comunidades mais afetadas pelo dano ao rio podem ser as destinatárias? Como elas serão identificadas e quem fará isso? E, fundamentalmente, qual será a forma de indenização? Essas são perguntas sem respostas fáceis. A sociedade civil terá que ser corajosa e imaginativa ao oferecer soluções para essa situação.
Embora a ordem do Tribunal Regional esteja suspensa, ainda se pode estender o argumento para solicitar a aplicação legal desses direitos. Para que os direitos do rio alcancem uma base mais forte, é necessária uma lei de nível nacional ou uma disposição constitucional. Diz-se que uma proposta para um projeto de Lei do Direito do Rio Ganga, elaborada pela organização Ganga Action Parivar, está sendo examinada pelo governo central, mas, considerando-se o foco exclusivo no hinduísmo, ela pode ser mal utilizada por forças de direita para sequestrar o processo e promover suas próprias agendas cínicas.
No entanto, temos que ir além da inclusão de textos jurídicos sobre os direitos da natureza. A ideia é mostrar as contradições do atual sistema, questionar as “necessidades” humanas cada vez maiores que estão por trás do cenário atual, e conseguir ir além dos direitos jurídicos. Ir além dos direitos jurídicos significaria avançar a uma sociedade cuja consideração moral não se limitasse aos seres humanos, e sim se estendesse à toda a comunidade da Terra, e os direitos da natureza não fossem garantidos mas inerentes à forma como nossas sociedades, economias e políticas estariam organizadas, bem como nossas atitudes, nossos estilos de vida e nossos modos de ser.
Shrishtee Bajpai, shrishteebajpai [at] gmail.com
Kalpavriksh Environmental Action Group, Pune, Maharashtra, Índia
Obrigado a Ashish Kothari pelas contribuições.