Foto: Indígenas Mashco-Piros da reserva de Madre de Dios. Diego Cortijo - Sociedad Geográfica Española, 2011. Fonte: Pueblos Indígenas en aislamiento voluntario y contacto inicial, IWGIA – IPES – 2012
A Amazônia peruana e zonas contíguas que atravessam limites internacionais são habitadas por uma diversidade de povos ou segmentos de povos em isolamento. Seus idiomas foram classificados principalmente dentro de duas famílias linguísticas: aruaque e pano. Além disso, existem numerosos grupos na vasta área compreendida pelas nascentes dos rios Tahuamanu, Yaco, Chandless, Las Piedras, Mishagua, Inuya, Sepahua e Mapuya, no sudoeste, que até o momento não puderam ser identificados. Ainda assim, investigações recentes indicam a presença de conjuntos que possivelmente pertençam às famílias linguísticas Záparo e Waorani, em Loreto, próximo à fronteira com o Equador, e outros não identificados ao sul de Madre de Dios, na zona fronteiriça com a Bolívia.
A informação sobre sua existência se baseia principalmente em testemunhos de alguns integrantes desses mesmos povos que se encontram em contato inicial e de populações indígenas e não indígenas vizinhas a seus territórios, que costumam vê-los ou encontram seus rastros durante deslocamentos para caçar ou pescar. Esses vestígios podem ser moradias, restos de fogueiras, alimentos, vestimentas, utensílios, flechas, caminhos, galhos colocados como obstáculo à passagem e como sinal de advertência para que não se entre em seus territórios, pegadas, entre outros. Também são testemunhas de sua presença trabalhadores de empresas petroleiras, madeireiros, caçadores, pescadores, missionários, funcionários do Estado e pessoal de vigilância de áreas naturais protegidas, antropólogos, militares de postos de vigilância de fronteira, aventureiros.
Existem fontes históricas e etnográficas que indicam a retirada de segmentos de vários povos indígenas amazônicos a lugares inóspitos de seus territórios ou de espaços próximos, em contextos altamente violentos, depois de oferecer forte resistência à presença e a ataques externos e acabar dizimados ou gravemente afetados.
Fonte: “Perú, despojo territorial, conflicto social y exterminio”, Beatriz Huertas Castillo, na publicação “Pueblos Indígenas en aislamiento voluntario y contacto inicial”, I WGIA-IPES-2012,http://www.iwgia.org/iwgia_files_publications_files/0603_aislados_contacto_inicial.pdf
Povos em isolamento, povos com direitos
No âmbito jurídico internacional, os direitos dos povos indígenas em isolamento são reconhecidos, embora só tenham recebido atenção nos últimos anos. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 13 de setembro de 2007, garante seu direito “de viver em liberdade ... como povos distintos” (Artigo 7), e obriga os Estados a estabelecer mecanismos eficazes para prevenir e ressarcir “[t]odo ato que tenha por objeto ou consequência privar-lhes de sua integridade como povos distintos ou de seus valores culturais ou sua identidade étnica” e “[t]oda forma de assimilação ou integração forçada” (Artigo 8.2). Esses direitos, ao se aplicar aos povos indígenas em geral, por definição, também se aplicam especificamente aos povos em isolamento voluntário.
No sistema interamericano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão autônomo e independente da Organização dos Estados Americanos, abordou o tema dos direitos dos povos indígenas em isolamento por meio de seus diferentes mecanismos. A CIDH outorgou duas medidas cautelares para a proteção dos povos indígenas em isolamento: a medida cautelar 91-06, sobre os Povos Indígenas Tagaeri e Taromenani, do Equador, e a medida cautelar 262-05, sobre os Povos Indígenas em isolamento voluntário de Mashco Piro, Yora e Amahuaca, do Peru.
Diferentemente de outros sujeitos de direitos, os povos indígenas em isolamento, por definição, não podem defender seus próprios direitos perante instâncias nacionais ou internacionais. Por isso, a proteção de sua vida e sua cultura ganha especial relevância para o sistema interamericano de direitos humanos.
Os desafios e as ameaças são os mesmos: a invasão gradual, mas persistente, de seus territórios, a exploração legal e ilegal dos recursos naturais que aí se encontram (desde a época da borracha, até as madeiras preciosas e os hidrocarbonetos e minerais de hoje em dia) e as doenças e epidemias que tudo isso acarreta.
A difusão de informações sobre os povos em isolamento e a criação de consciência sobre sua situação e seus direitos é algo que cabe a todos nós, defensores dos direitos humanos.
Beatriz Huertas Castillo, IWGIA,http://www.iwgia.org/iwgia_files_publications_files/0603_aislados_contacto_inicial.pdf
Povos isolados em reservas
Para conhecer a situação dos povos em isolamento nas reservas do Peru, conversamos com Daniel Rodríguez, David Hill e Alejandro Chino Mori , que falaram a partir de suas experiências de trabalho, respectivamente na reserva de Madre de Dios, na reserva Nahua Kugapakori e nas reservas Isconahua e Murunahua .
* Políticas peruanas sobre os Povos Indígenas em Isolamento
Daniel Rodríguez, que trabalhou para a Federación Nativa del río Madre de Dios y Afluentes (FENAMAD), diz que a aprovação, em 2006, de uma lei que dispõe sobre a proteção dos povos em isolamento e contato inicial implicou o reconhecimento legal dos direitos desses povos e definiu sua vulnerabilidade, bem como as obrigações que o Estado tem de protegê-los.
David Hill, da organização Forest Peoples Programme , que trabalhou como consultor na reserva Nahua Kugapakori , falou das cinco “Reservas Territoriais” intangíveis criadas para esses povos, que totalizam 2,8 milhões de hectares. Embora sejam figuras territoriais interessantes que constituíram bases legais para o desenvolvimento de políticas de saúde específicas, as reservas indígenas surgiram basicamente do movimento indígena, que impulsionou a normativa por força de estudos e pressões, segundo Daniel. David concorda em que a política estatal de proteção aos povos isolados é frágil e que o Estado vai a “reboque” da sociedade civil.
Por outro lado, na definição de territórios, deixa-se aberta uma janela legal que permite a extração de recursos naturais em territórios de povos isolados em casos de “interesse nacional”. Cria-se uma ambiguidade jurídica que permite a existência de contradições entre as obrigações de proteger os isolados e a promoção de políticas extrativas e de desenvolvimento em seus territórios (hidrocarbonetos e megaemprendimentos na Amazônia).
David cita como exemplo “ o recente relatório do Ministério da Cultura sobre a Avaliação de Impacto Ambiental (EIA) da expansão do projeto de gás de Camisea, na Reserva Kugapakori-Nahua-Nanti, que afirmou que o empreendimento poderia ‘devastar' ou ‘extinguir' três dos povos indígenas de lá. Esse relatório desapareceu da esfera pública em poucas horas, foi anulado uma semana depois, e agora está sendo re-escrito, e, enquanto isso, vários funcionários do ministério ‘se demitiram'. Isso só mostra o quanto o atual governo do Peru leva a sério essas questões! ”
Segundo Daniel, diversos grupos de isolados estão cada vez menos invisíveis em determinados setores da Amazônia. Sua proximidade é interpretada por alguns como uma mudança na vontade de se isolar e uma expressão de sua intenção de sair e se comunicar. Isso faz com que os trabalhos de proteção dos direitos desses povos sejam cada vez mais difíceis e indica a urgência de se aumentarem os esforços mínimos de controle territorial realizados até agora.
Por sua vez, Alejandro Chino Mori, Assessor Jurídico para a questão de Povos Indígenas em Isolamento Voluntário da Organização Regional Aidesep Ucayali (ORAU), integrante da Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Peruana (AIDESEP), considera que, no Peru, “não existe uma política clara e definida pelo Estado e, especificamente pelos governos da vez, em favor dos povos indígenas em situação de isolamento voluntário nem em situação de contato inicial. A luta constante da nossa organização indígena AIDESEP e suas bases regionais, como a ORAU, conquistou alguns avanços para que os direitos coletivos e individuais desses povos ao menos sejam respeitados de uma ou outra forma, embora ainda não estejam garantidos e sejam vulneráveis”.
* Número de grupos de povos em isolamento
Especialistas internacionais convergem em torno de um número de 20 grupos em 2005. Atualmente, fala-se de uns 15 ou 20, que totalizam umas 1.000 pessoas de várias famílias linguísticas, principalmente pano e aruaque, embora também zaparo, waorani e outras desconhecidas.
A maioria dos membros de alguns desses grupos estabeleceu vínculos com a sociedade nacional, mas alguns escolheram não fazer contato, como os matsigenka, os asháninka e os cacataibo. Há povos com essas características nas zonas norte e central do Peru, mas a maioria está no sudeste do país. Alejandro nos informa sobre os povos identificados que habitam as seguintes reservas territoriais: na reserva de Mashco Piro, os mascho-piros, os mastanahuas e os chitonahuas; na reserva de Murunahua, os chitonahuas e os mashco piros; na reserva de Isconahua, os isconahuas e os Remos.
* As reservas existentes são suficientes?
David é categórico ao afirmar: “ Absolutamente não. Como eu já disse, as cinco reservas existentes nunca foram devidamente protegidas, nem cobrem todas as áreas habitadas por povos isolados. A Reserva Madre de Dios é um exemplo. Como resultado, elas pouco ou nada significam na prática. Além disso, há as cinco reservas propostas que ainda não foram estabelecidas, bem como PIAV (povos indígenas em isolamento voluntário, na sigla em espanhol) que vivem em áreas onde não há nem reservas, nem reservas propostas ”.
Alejandro também concorda em que as reservas não são suficientes para os povos em isolamento “já que seus territórios ancestrais vão além do demarcado, e por uma simples razão: para eles, não existem limites nem fronteiras em seus deslocamentos ou percursos”.
Por sua vez, Daniel também opina que “a relação com os territórios é dinâmica e fluida. A criação de reservas com limites fixos não se ajusta à lógica desses povos, e menos ainda se estiverem sujeitos a pressões variáveis e mudanças ecológicas e climáticas”.
* Situação dos povos em isolamento que não estão em reservas
Ainda que as realidades variem muito, tanto entre os distintos povos em isolamento dentro das reservas quanto fora delas, Daniel comenta que, em termos gerais, ambas as situações não diferem muito, na medida em que a proteção dentro das reservas não é tão efetiva quanto se gostaria. Logicamente, sua presença dentro de um parque nacional, por exemplo, muda as coisas, já que, por um lado, é verdade que existem mais meios efetivos para controlar a aproximação de pessoas e prevenir um contato, mas, por outro lado, os objetivos dessas áreas incluem atividades como turismo ou pesquisa científica, que limitam o exercício dos direitos desses povos.
Alejandro comenta que, para os povos que não estão em reservas, a AIDESEP elaborou propostas formais ao Estado, para que eles sejam reconhecidos.
* As reservas em processo de demarcação
Há muitos anos, as organizações indígenas, apoiadas por outras organizações sociais, propuseram a criação de cinco reservas além das existentes.
A Comissão Multissetorial, criada pela Lei 28736, diz Alejandro, é a encarregada de examinar as reservas em processo de demarcação, que já contam com parecer técnico favorável, que deverá ser aprovado por essa comissão e reenviado à Presidência do Conselho de Ministros para sua respectiva aprovação.
“Em uma carta à AIDESEP no início deste ano”, informa David, “o Ministério da Cultura revelou seu apoio às cinco reservas propostas. Essas propostas deveriam ser discutidas por uma comissão intergovernamental, em Lima, em agosto, mas a reunião foi adiada e reagendada para o próximo mês. O que vai acontecer não se sabe. Lembre-se, desde as demissões no Ministério relacionadas ao EIA do ‘Lote 88', o pessoal lá é muito diferente. Mas todo esse processo, que está levando anos e tem sido impulsionado pela sociedade civil, particularmente as organizações indígenas, é realmente muito constrangedor para o governo peruano. Ou pelo menos deveria ser. Demonstra muito claramente, mais uma vez, o quanto o governo se preocupa pouco com os PIAV – ou, dito de outra forma, o pouco que se preocupa com os direitos humanos de alguns dos cidadãos mais vulneráveis do país”.
* O consentimento prévio informado e os povos em isolamento
As Diretrizes da ONU sobre a proteção dos povos isolados reconhecem o isolamento como uma manifestação de vontade política. Portanto, o direito a não participar deve ser respeitado como tal, uma posição que é reforçada ao se considerar a notória vulnerabilidade imunológica desses povos. O Peru tem obrigação de respeitá-lo, segundo o direito internacional e a interpretação da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que o país assinou em 1978.
Como explica David, “ o que isso significa – ou melhor, o que deveria significar – é que o Peru não pode dar concessões a companhias de petróleo e gás nem a qualquer outra, em regiões onde há povos isolados. Obviamente não. Eles são povos isolados! Estão em ‘isolamento voluntário'. Não estão em contato com o Estado e, portanto, o consentimento não pode ter sido obtido. Mas, dito isso, há um risco de que esse conceito seja manipulado e se tente ou se fabrique um contato com os povos isolados, na tentativa de cumprir a lei e/ou fazer parecer que o consentimento foi dado. Isso não só prejudicaria os princípios do próprio consentimento livre, prévio e informado (de que forma essas pessoas poderiam realmente ser ‘informadas' sobre as operações de petróleo ou gás em seu território?), mas também poderia ser catastrófico, como eu já expliquei. Como povos indígenas, eles também têm direito à autodeterminação, reconhecido pelas leis internacionais. Isso significa que eles têm direito de viver como quiserem, o que, neste caso, é em ‘isolamento voluntário'. O governo peruano deve respeitar isso e, ao fazê-lo, tem a oportunidade de dar um exemplo progressista de direitos humanos a outros países onde também existem povos isolados ”.
Sobre esta base, como reflete Daniel, “é necessário tomar decisões em relação a cada situação específica, como é o caso do grupo Mashco Piro, da região do Alto Madre de Dios, que, desde maio de 2011, tem se tornado cada vez mais visível e dado mostras de querer estabelecer comunicação com outros. Embora não seja possível negar a possibilidade do intercambio dialético nesse tipo de caso, é necessário abrir um processo de reflexão em torno à forma e as condições nas quais se abriria um processo de diálogo. Ainda não se iniciou formalmente esse tipo de processo de definição de estratégias consensuais de relacionamento, e existem vários setores nos quais ele é muito necessário”.
* As novas tecnologias de mapeamento (Google Earth, GPS): benefícios ou ameaças para os povos isolados?
Alejandro opina que, como ferramentas de trabalho, as novas tecnologias permitem obter mais precisão sobre os espaços territoriais onde habitam os povos isolados, permitindo saber pontos exatos de avistamento ou encontro de evidências desses povos.
Daniel comenta sua experiência: “Este é um ponto fundamental. As imagens de povos isolados acompanhados de sua localização são cada vez mais frequentes nos meios de comunicação. Politicamente, esses materiais cumprem um papel muito importante, já que, no Peru, a existência desses povos foi questionada publicamente e de maneira reiterada por determinados setores do governo. A luta pelos direitos desses povos se centrou em grande parte em mostrá-los nacional e globalmente. O caso mais claro foi a difusão, por parte de FUNAI, das fotos aéreas de um grupo na fronteira entre Peru e Brasil, em 2008.
Também é necessário refletir sobre o uso de imagens: a exposição de um grupo publicamente, de forma reiterada, nos meios de comunicação oferece riscos em função do “efeito chamada” que provoca em terceiros. Além disso, implica aspectos éticos em relação a sua imagem. No caso concreto do grupo Mashco Piro do Alto Madre de Dios, essa exposição não se refletiu em mudanças significativas nas políticas públicas de proteção”.
A situação na Reserva de Madre de Dios
– em conversa com Daniel Rodríguez –* Quais são as características da reserva de Madre de Dios, entre elas, a área com relação aos PIAV existentes?
A reserva de Madre de Dios foi uma solução para a proteção territorial de povos isolados no norte daquele departamento, tomada em um tempo política e economicamente tumultuado na região.
Chegou-se a um consenso para a delimitação da área sem levar em conta os dados existentes sobre a territorialidade dos isolados, de modo que a linha leste que separa a reserva da área de concessões florestais é artificial.
A presença de isolados fora da reserva é um problema que vem se acentuando nos últimos anos e foi criando uma problemática complexa, porque os territórios usados por esses povos se sobrepõem aos direitos de outros povos indígenas assentados na zona.
Por outro lado, a Reserva é um paradigma do modelo de proteção de direitos no Peru, principalmente pela notória e sustentada ausência do Estado e o papel predominante da sociedade civil, principalmente da organização indígena regional FENAMAD, na implementação de políticas de proteção. A FENAMAD teve um papel catalítico na criação da área em 2002, e continua seu trabalho de proteção territorial e alerta precoce, articulado com comunidades indígenas próximas, principalmente na bacia do rio Las Piedras.
Nos últimos anos, o Estado, por meio de seu órgão coordenador de políticas de proteção de isolados, o INDEPA, tem manifestado interesse em assumir a proteção na reserva. Essas iniciativas têm sido principalmente declaratórias, e não tiveram resultados práticos. Mais do que isso, a tendência tem sido de não reconhecer os trabalhos e o papel das organizações indígenas e suas comunidades, razão pela qual têm se acentuado os conflitos sobre a legitimidade da representação dos interesses dos isolados entre organizações indígenas e o Estado.
* Quais são as ameaças aos PIAV nessas regiões e quais são as tendências? São as mesmas ameaças de quando se criaram as reservas ou atualmente há outras?
Houve mudanças importantes na reserva territorial. A natureza das ameaças não é tão visível quanto no momento de sua criação e em anos seguintes, no sentido de que não existe uma presença maciça de madeireiros ilegais em seu interior – embora haja igualmente zonas de extração ilegal. As atividades madeireiras se formalizaram em grande parte e se desenvolvem no entorno da reserva. Essas grandes empresas estão trabalhando em territórios que têm limites diretos com a reserva e são ocupados pelos isolados. Muitas delas estão certificadas e proclamam seu interesse em contribuir com a proteção da reserva, mas temos informações de que continuam extraindo madeira de áreas de sua concessão onde se registrou a presença de isolados, pondo em perigo a vida de seus trabalhadores e dos indígenas. Essa situação é complexa. Eles têm direitos outorgados pelo Estado, mas é preciso ter em vista que o processo de outorga dessas concessões na criação da reserva foi fruto de uma negociação política e não de uma decisão informada por dados de territorialidade existentes.
Por outro lado, existe uma série de questões que não são tão tangíveis e afetam aos povos isolados, como a complexa relação entre esses povos e seus vizinhos, ou as mudanças ecológicas e climáticas. No caso dos mashco piros, eles se movem em territórios muito extensos em função de recursos que aparecem em determinados lugares, como os rios, ao quais eles vão em épocas secas, em busca de ovos de tartaruga e de outros animais. As secas enormes, que prolongam os verões e secam os rios, fazem com que os isolados passem mais tempo nas margens dos rios, sem retornar às zonas mais altas, propiciando assim vários encontros nas praias, com as consequências que isso tem. As mudanças do clima também alteram as dinâmicas de caça.
Sem, dúvida, os projetos de desenvolvimento em zonas próximas têm grande impacto na mobilidade dos povos isolados, ao passo que o trânsito de pessoas pela reserva ficou visível, inclusive relacionado ao narcotráfico.
A situação na reserva de Nahua Kugapakori
– em conversa com David Hill –* Quais são as características da reserva Nahua Kugapakori, entre elas, a área com relação aos PIAV existentes?
Essa reserva foi criada em 1990 e, em seguida, recebeu maior proteção legal por meio de um Decreto Presidencial em 2003, que mudou o título para incluir, além dos kugapakoris e dos nahuas, os nantis e os “outros”. Estende-se por mais de 450 mil hectares e fica entre o rio Urubamba, um dos principais afluentes do Amazonas, e o Parque Nacional de Manu, descrito pela UNESCO como o local de maior biodiversidade do planeta. No entanto, como as outras quatro reservas, esta nunca foi devidamente protegida. Na verdade, é uma ironia particularmente trágica que essa reserva tenha a “melhor” proteção legal de todas as reservas existentes e ainda tenha alguns postos de controle, seja financiada pelo governo, mas, na verdade, seja a menos protegida na prática.
Em 2000, o governo peruano assinou um contrato com o consórcio Camisea para operar em uma concessão chamada de “Lote 88”, quase 75% da qual está sobre a reserva e a corta quase totalmente pela metade. Desde então, a Pluspetrol vem explorando em busca de gás, perfurando e bombeando, e agora planeja expandir suas operações mais ao norte, ao leste e ao sul dentro da reserva, que é o que motivou um apelo às Nações Unidas, em janeiro deste ano, por parte da organização indígena nacional AIDESEP, das organizações indígenas regionais COMARU e ORAU, e do Programa de Povos da Floresta, para quem eu estou trabalhando como consultor. Esses planos de expansão incluem a perfuração de poços e a realização de testes sísmicos 2D e 3D em áreas usadas pelos PIAV, por exemplo, no sudeste e no nordeste do Lote 88, nas cabeceiras dos rios Cashiriari e Serjali. A Pluspetrol reconhece isso abertamente em seu EIA. Ela afirma que os PIAV são muito vulneráveis, que o contato é “provável”, e que, em geral, pode levar a “mortes em massa”. Na verdade, o EIA também reconhece que as operações da Pluspetrol em 2002 e 2003 levaram ao contato forçado com alguns matsigenkas em “isolamento voluntário”, e cita a antropóloga peruana Beatriz Huertas Castillo, segundo a qual o projeto Camisea também forçou o contato com alguns dos Nanti .
* Quais são as ameaças aos PIAV nessas regiões e quais são as tendências? São as mesmas ameaças de quando se criaram as reservas ou atualmente há outras?
A demanda por petróleo é uma das maiores ameaças. Perenco, Repsol e Subandean operam no Lote 67, no Lote 39 e no Lote 121, no norte do Peru, perto da fronteira equatoriana, e a Pacific Rubiales está no Lote 137, também no norte do país, perto da fronteira com o Brasil. Todas essas concessões se sobrepõem a áreas habitadas pelas reservas PIAV e por reservas propostas. As operações estão em diferentes estágios e, portanto, as ameaças variam.
A Perenco está operando sobre depósitos que foram declarados comercialmente viáveis em dezembro de 2006 e pretendia começar a bombear até julho deste ano, e o tipo de infraestrutura necessária para isso – plataformas, poços e, com o tempo, um gasoduto – significa que a empresa tem a intenção de permanecer lá, no território dos PIAV, por muitos anos. A Repsol, por outro lado, anunciou uma série de descobertas desde 2005, mas continua explorando, por meio da perfuração de poços e da realização de mais testes sísmicos, enquanto a Pacific Rubiales só começou seus testes sísmicos muito recentemente. É claro que a realização desses testes não significa que a empresa vá permanecer em qualquer área o tempo que ficaria se descobrisse os depósitos que pretendia explorar, mas como reconheceu a Defensoria Popular do Peru (Ouvidoria), a fase de exploração é a que tem mais probabilidades de gerar contato por causa da maneira como as equipes sísmicas se movem. Como já se enfatizou repetidamente, qualquer tipo de contato – e eu quero dizer QUALQUER – entre os PIAV e trabalhadores de empresas pode ser catastrófico por causa da falta de defesas imunológicas desses povos e do fato de que até mesmo gripes e resfriados, se transmitidos, pode facilmente matá-los. Sem falar do que acontece quando o petróleo vaza. Olhe o rio Corrientes, no norte do Peru, para ver como pode ser devastador.
O gás é outra grande ameaça, como eu já deixei claro. Mas não só no Lote 88. Também é possível que o governo venha a estabelecer outra concessão no “Lote Fitzcarrald”, que estaria imediatamente a leste do Lote 88 e imediatamente ao extremo oeste do Parque Nacional de Manu, e dividiria completamente a Reserva Kugapakori-Nahua-Nanti em duas. O ministro da energia do Peru minimizou o Lote Fitzcarrald em uma audiência no Congresso do Peru, em abril, depois de um interesse considerável da mídia e alguma oposição da sociedade civil, e algumas pessoas parecem pensar que não passa de mito ou fantasia, mas a ameaça permanece. Não resta dúvida sobre isso” .
*Há outras ameaças?
Certamente. As reservas já foram invadidas várias vezes por madeireiros, e também há missionários cristãos, traficantes de drogas, turistas ocasionais e até cineastas em busca de temas exóticos. Os missionários podem ser particularmente perigosos, porque eles realmente querem fazer contato com os PIAV, ao contrário de madeireiros, traficantes de drogas e companhias de petróleo e gás, etc, para os quais esses povos são simplesmente inconvenientes ou uma potencial ameaça à vida, ou, pelo menos para os últimos, um potencial problema de relações públicas. Os madeireiros também podem ser especialmente perigosos. Apesar dos esforços para controlar a extração de madeira estabelecendo concessões, muitas delas se sobrepõem a territórios de PIAV desprotegidos, enquanto a extração ilegal realizada fora dessas concessões ainda é galopante em afluentes distantes, onde ainda existem madeiras valiosas. Claro, tudo isso é completamente desregulado, e os madeireiros, ao contrário das empresas de petróleo e gás, muitas vezes portam armas. Eu mesmo os vi, armados, subindo o rio de barco em uma das reservas, e ninguém para detê-los. Às vezes, há relatos sobre brigas e madeireiros sendo feridos ou mesmo mortos pelos PIAV, mas nunca se ouve falar de quantos indígenas morreram .
* As ameaças são as mesmas de quando se criaram as reservas ou atualmente há outras?
Eu acho que a maioria das ameaças continua igual, mas enquanto a principal ameaça, digamos, dez anos atrás, era das madeireiras, hoje ela vem mais claramente do petróleo e gás. As estimativas variam, mas a porcentagem da Amazônia peruana atualmente coberta por concessões de petróleo e gás é muito alta. Basta olhar um mapa! Dito isto, existe toda uma nova ameaça que é, no longo prazo, potencialmente mais grave do que qualquer das outras. Sabe a lei de 2006 que eu mencionei antes? Uma das coisas que essa lei faz é criar uma nova categoria jurídica para os PIAV, chamada de “Reserva Indígena”, na qual, de acordo com o artigo 5º, inciso C, da lei, os recursos naturais podem ser explorados se forem considerados de “necessidade pública”. É um furo grave que, como eu disse, acaba tornando o resto da lei um enigma. Agora existe, já em processo, um plano para transformar todas as cinco “Reservas Territoriais” em “Reservas Indígenas”, transformando-as, de supostamente “intangíveis” em ‘tangíveis'. Exploráveis . Não quer dizer, infelizmente, que essa “intangibilidade” tenha significado muito no caso da Reserva Kugapakori-Nahua-Nanti!