Não são invasores; eles deram nome a este território
Foram as comunidades indígenas maias qeqchis que deram a este mágico lugar de floresta o nome de “Semuc Champey”, que se traduz como “o rio que se esconde na montanha”. Esse também é o nome registrado pelo Conselho Nacional de Áreas Protegidas (Conap), sem consulta às comunidades que habitaram e cuidaram da terra, muito antes do nascimento do conceito de áreas protegidas, e antes de ser declarada, em 2005, na categoria de Monumento Natural.
A categoria de manejo como Monumento Natural homenageia a beleza paisagística do lugar. Contudo, infelizmente, desde a sua criação, as comunidades indígenas foram excluídas desse modelo de conservação. Isso ficou claro em agosto de 2016, quando elas sofreram uma expulsão brutal por parte das autoridades governamentais, o que se soma a uma série de violações históricas de seus direitos e à tomada de suas terras por fazendeiros e autoridades governamentais.
Hoje, as comunidades que vivem na área de Semuc Champey são injustamente identificadas como invasoras pelo Conap, quando estão há centenas de anos na área, e só o que exigem é administrar seu território. Em vez de ser protagonistas do manejo, são tratadas como espectadoras do processo, recebendo alguns benefícios, enquanto veem que o “desenvolvimento” da área gera renda para hotéis, estrangeiros, agências de viagens e o próprio Conap. Isso faz com que, depois de onze anos, suas condições de vida não tenham melhorado, apesar de viverem em um belo território.
A atitude do Conap é, no mínimo, questionável. Com mais de 27 anos de existência, esse caso mostra que a instituição evoluiu pouco com relação à visão e ao manejo das áreas protegidas no país. Para cumprir suas metas de “proteção da biodiversidade”, o Conap deve priorizar a participação local e comunitária das populações que vivem próximo ou dentro de áreas protegidas, e não vê-las e qualificá-las como inimigas da conservação.
Antecedentes históricos da Aldeia qeqchi de Lanquín Semuc Champey
Durante séculos, estas terras pertenceram aos avós qeqchi. Anos mais tarde, um fazendeiro alemão chegou para ocupá-las, e as abandonaria durante o governo de Jorge Ubico, na década de 40. A fazenda como um todo se chamava Actelá. Durante a permanência do fazendeiro nestas terras, nossos avós e pais foram usados como criados, trabalhando muitos dias sem salário para que suas casas não fossem removidas da fazenda.
Depois que o fazendeiro foi embora, os originários se organizaram para administrar a terra. Anos mais tarde, algumas cooperativas registraram a terra em seu nome, e uma delas é a Actelá.
Nesse meio-tempo, os membros da comunidade cuidaram do lugar, semearam belas árvores e cuidaram dos animais que habitavam o que hoje é conhecido como Semuc Champey.
Em torno de 2000, um prefeito municipal se interessou em apoiar a comunidade na compra das terras da Cooperativa Actelá. Os membros da comunidade aprovaram a ideia e a compra foi feita, a um custo de Q 375 000 (cerca de 50.000 dólares), ficando em nome de “Chicanus e Santa María”. De comum acordo, a área de Semuc Champey foi melhorada.
Por confiar no prefeito, os anciãos decidiram, nessa época, que os 90 hectares de terra onde estava a parte mais bonita do lugar (Semuc Champey) seriam administrados pelo município, em conjunto com as comunidades. Nessas condições, transferiu-se a administração da área de terra ao município, mas ninguém contava com que, passados alguns anos, a terra lhes seria tirada por completo.
Nessa mesma época, sem consulta às comunidades nem ao prefeito, um deputado apresentou o projeto de lei 25/2005, para declarar Semuc Champey como área protegida. Isso já viola a Constituição da República, na qual se garante o direito dos povos indígenas a seus territórios, e as convenções internacionais – considerando que, naquela época, já estava em vigor a Convenção 169 da OIT, que estabelece o direito a uma consulta livre, prévia e informada. Tampouco importou o código municipal, nem que se violasse a autonomia municipal – o prefeito nem ficou sabendo!
Oito dias antes de se aprovar esse acordo, o prefeito foi notificado de sua votação pelo Congresso. Dois dias antes, ele apresentou um recurso, que não foi aceito, e o Decreto 25/2005 ganhou vida.
Em 2005, a zona foi declarada área protegida, sob a categoria de Monumento Natural. A lei designa o Conap como administrador e, automaticamente, o município e as comunidades ficam excluídas do cuidado do território. Daí surge a reivindicação das comunidades por seu direito à governança dessas terras, já que parte de seus territórios foi tomada sem aviso prévio. Em seguida, o Conap negocia com as comunidades qeqchis para que lhe dessem o manejo, em troca de projetos de desenvolvimento.
Chega-se a um acordo, no qual 60% das receitas do parque iriam para o Conap, 10% para o município e 30% para a comunidade, além de haver trabalho para as famílias.
Com o passar dos anos, não se cumpre o acordo estabelecido. Em julho de 2015, chegam autoridades do Registro de Informação Cadastral (RIC) querendo medir a terra em conjunto com o Conap, com a intenção de ampliar a área do Parque Semuc Champey. Essa ampliação (119 hectares) viola o território onde as comunidades vivem.
Naquele dia, pedimos que o Conap e o RIC se retirassem, e que assinassem um documento dizendo que não concordávamos com a medição das nossas terras e com decisões tomadas sobre nosso território, e exigimos que se retirassem.
A partir daquele momento, as comunidades tomam de volta o manejo e a administração do Parque Semuc, devido ao descumprimento dos compromissos do Conap e ao desrespeito do Município para com a comunidade, por não querer envolvê-las em uma mesa de diálogo.
Uma autoridade qeqchi disse: “na’ qaj naq te’ suqesi chaq li q’a ch’och” (Assim como o Conap nos tirou nossas terras, o município as tomou sem diálogo; queremos nossas terras de volta).
“Li qa maak sa’ ru eb’ ahan ix b’anaq in k’a ix q’a kanab’eb’ ix b’isb’al li ch’och’ ut naq in k’a ix q’a kanab’ naq te oq’ sa chijunil li q’a na’jej” (Nosso pecado, diante do Conap e do Município, foi não deixarmos que nos tirassem os 119 hectares a mais de ampliação, e que a terra fosse dividida).
Administração do parque nas mãos das comunidades
Durante a administração comunitária, as quatro comunidades qeqchi que habitam a área se organizaram. Semanalmente, 52 pessoas, incluindo mulheres, anciãos e jovens, frequentavam o Parque Semuc Champey. Todas as famílias tinham trabalho, as ervas daninhas eram cortadas, recolhia-se o lixo e foi organizado um grupo de salva-vidas comunitários para ajudar os visitantes. Claro, algumas pessoas tinham trabalho garantido com o Conap, para prejudicar a nossa imagem e o trabalho que estávamos fazendo.
“Ixq’a kut’ ix xutan laj CONAP, ix q’a kut’ naq lao laj ral ch’och na ko trabajik chi chab’il chiru heb’ a an” (52 pessoas trabalham a cada semana, e deixamos o Conap com vergonha, mostrando que os filhos desta terra fazem um manejo melhor do lugar).
As verbas que entraram foram usadas para pagar a jornada de cada trabalhador, a estrada foi limpa e os buracos, cobertos.
“Se fizermos as contas, temos nossos papéis que nos respaldam, foi mais fácil para o Conap e as autoridades nos tirar à mão armada, porque eles não querem o diálogo, eles sabem que, se entrarmos com um processo na justiça, vamos ganhar e eles vão perder. Para nós, vale o povo originário, a autoridade indígena, o sistema jurídico indígena e próprio da comunidade qeqchi”, disse um líder comunitário qeqchi.
Em 4 de março de 2016, sete autoridades indígenas foram capturadas sob a acusação de usurpação, coerção e furto qualificado. A comunidade demonstrou que não havia provas desses delitos e eles foram liberados pouco depois.
Despejo
No início da manhã de 4 de julho de 2016, 60 patrulhas da Polícia Nacional (PNC) e da polícia de choque se apresentaram para
expulsar a comunidade de Semuc Champey. As comunidades resistiram e solicitaram às autoridades que se retirassem, mas dois jovens ficaram feridos durante a resistência. As mulheres, que estavam na linha de frente, se agitaram e desmaiaram de medo na hora de fugir, quando a polícia jogou gás lacrimogêneo e disparou para o ar.
Nesse dia, o propósito deles não foi alcançado. Eles voltaram inesperadamente no dia seguinte, às 6 da manhã, “125 policiais do choque e mais de 300 elementos da PNC despejaram as comunidades Santa María Semuc Champey, Chi Q’anus, Semil e Chisub’ e, em Semuc Champey, Lanquin Alta Verapaz. Assim que chegaram, começaram a atirar, das 6 às 8 da manhã, como se estivéssemos em guerra outra vez, os animais gritavam assustados, as pessoas corriam para todos os lugares e a maioria da comunidade de Santa María Semuc Champey se refugiou nas florestas para se proteger. Eles falam de não poluir o meio ambiente, dizem que protegem a vida dos seres vivos. Por que tanta poluição com a arma de fogo, por que ameaçam nossas vidas? Não se sabe se houve animais que tenham sido atingidos pelas armas de fogo.
Agora estão chegando às casas das comunidades para reprimi-las com força excessiva e invadir suas terras, exercendo a violência contra as famílias qeqchis. As famílias não estão armadas e temem por suas vidas.
Também há relatos de uma campanha de mídia contra as comunidades, que diz que elas estão incitando a violência, quando foi a polícia que usou força excessiva e armas letais contra moradores desarmados. As comunidades sempre favoreceram o diálogo, mas o pessoal local do Conap não as levou a sério, e hoje a polícia as provoca com a violência do Estado. As comunidades deixam claro que não são invasoras e estão dentro de sua propriedade.
As comunidades locais e originárias e os povos indígenas demonstraram que são guardiães fiéis do território e da natureza, desde as florestas de Totonicapán, das florestas de Palin, até os manguezais da Costa Sul, para mencionar apenas alguns exemplos. Sem o trabalho e a contribuição da comunidade local, o Conap não poderia garantir a conservação e a proteção do Sistema Guatemalteco de Áreas Protegidas. Com essas ações contra as comunidades qeqchis em Semuc Champey, o Conap deixa claro um retrocesso na gestão coletiva de áreas protegidas e viola o direito dos povos indígenas a seus territórios.
Enquanto as comunidades lutam pelos territórios do parque, as instituições governamentais aprovam estudos para a exploração do rio Cahabón, com o objetivo de favorecer interesses privados.
Dina Juc, Associação Utzche
Carlos Salvatierra, salvatierraleal@gmail.com
Membro da SAVIA Guatemala e da COGMANGLAR (Coordenadora Guatemalteca para a Defesa dos Mangues e da Vida)