A apropriação violenta e sistemática de territórios de camponeses e povos indígenas no Camboja está triplicando o número de famílias afetadas por conflitos de terra em 2014 em relação ao ano anterior (1). A Liga Cambojana para a Promoção e a Defesa dos Direitos Humanos (LICADHO) lançou um “banco de dados sobre concessões de terras” em março de 2015, mostrando as vastas áreas de terras tomada e usadas por empresas no país (2). Além disso, áreas de um projeto de REDD, que alega “preservar” as florestas públicas do país, estão sendo derrubadas e as comunidades, desalojadas para “abrir” espaço para lucros privados.
Só em 2014, a LICADHO registrou 10.625 famílias, ou uma estimativa de 49.519 indivíduos recém-afetados por conflitos de terra. Uma lista detalhada dos casos documentados (3), na maioria confinados a 13 províncias onde a LICADHO tem representações, mostra o envolvimento das empresas de mineração, plantações de árvores, agronegócio, construção de hidrelétricas, entre outras, bem como autoridades de segurança e militares. As famílias afetadas em 2014 representam mais de três vezes o número documentado em 2013 (3.475), e quase o dobro do número registrado em 2012 (5.672). Muitos desses conflitos de terra levaram a despejos forçados, que costumam ser violentos, e as forças do Estado são acionadas contra civis, para proteger os interesses e os ganhos do setor privado.
Devido à falta de transparência do governo, a informação que a LICADHO coletou para o “banco de dados sobre concessões de terras” permanece incompleta, mas os dados já mostram a grande quantidade de concessões dadas a plantações e a extração de borracha, açúcar e mandioca, bem como a plantações voltadas à produção de óleo de dendê e celulose e papel. Mas muitas outras áreas de concessão permanecem “desconhecidas” em termos de extensão, posse e uso (4).
O governo do Camboja continua negando a grave situação enfrentada por camponeses e indígenas, forçados a se erguer para defender seus territórios. Uma declaração anterior da LICADHO, de abril de 2014, já alertava sobre a crescente “onda” de conflitos de terra. Como disse na época a diretora da organização, Naly Pilorge, “cada número representa uma vida potencialmente destruída, um indivíduo que enfrenta dificuldades graves e de longo prazo. Sem terra, eles já não têm os meios para atender às necessidades básicas de uma vida digna”. (5) Como reação ao comunicado, o governo organizou uma entrevista coletiva para afirmar publicamente que as constatações da LICADHO “não eram reais”. Menos de quatro meses depois, um cambojano de 19 anos foi baleado e morto por soldados que dispararam contra um grupo de camponeses envolvidos em uma disputa de terras com a unidade militar, na província de Preah Vihear.
De acordo com a organização de direitos humanos, a nova “onda” de conflitos veio depois da portaria do governo que suspendeu novas concessões econômicas de terras, em maio de 2012, e ordenou uma revisão sistemática das concessões existentes. A portaria foi seguida, no final de 2012 e início de 2013, por um programa de títulos de terra para grandes extensões, incluindo terras comunais. No entanto, uma brecha permitiu que concessões de terra que “já estavam em andamento” fossem liberadas após a portaria e, nos sete meses que se seguiram ao anúncio da moratória, um total de 208.805 hectares de terra foi entregue a concessionárias (6). O programa de titulação de terras parece ser um completo fracasso. Como diz a LICADHO, “uma parte do país onde o governo afirma ter realocado terra de uma concessão e concedido títulos aos moradores é a área na província de Preah Vihear na qual indígenas kuoys continuam a lutar para salvar suas florestas” (7).
O governo deve divulgar todas as suas transações de terras para o público. No entanto, até à data, o Ministério da Agricultura, Florestas e Pesca publicou uma lista simplificada e incompleta das empresas; o Ministério do Meio Ambiente fez ainda menos, simplesmente divulgando o número total de empresas envolvidas e a área de terra arrendada. Nenhum ministério revelou a localização exata dos mais de 2,1 milhões de hectares de terras no Camboja cobertos por concessões de terras já existentes.
REDD no Camboja
O “Projeto de REDD Florestal Comunitário Oddar Meanchey”, criado em 2008, é gerido pela filial cambojana de uma ONG chamada PACT, com sede nos Estados Unidos, e a Administração Florestal do Camboja. A PACT Camboja trouxe a Terra Global Capital, uma empresa de comércio de carbono sediada nos Estados Unidos, embora nenhum crédito tenha sido emitido até agora. O projeto afirma que o objetivo é proteger 13 florestas comunitárias geridas por 58 aldeias. As florestas comunitárias variam em tamanho, de 400 hectares a mais de 18.000 hectares, e abrangem cerca de 65 mil hectares.
Em novembro de 2011, uma agência do governo dos Estados Unidos, a Overseas Private Investment Corporation (OPIC), forneceu 900 mil dólares em seguro de risco político à Terra Global Capital, o investidor privado do projeto. O seguro protege investidores norte-americanos contra várias possibilidades, incluindo guerra, conflitos civis, golpes de estado, terrorismo e outras formas de violência politicamente motivada, bem como interferências do governo local, como expropriação, entre outras coisas. O apoio da OPIC à Terra Global Capital é o primeiro seguro de risco político do mundo dado a um projeto de REDD (8).
Apesar de o Ministério da Agricultura, Florestas e Pesca ser encarregado de estabelecer as florestas comunitárias, os militares cambojanos vêm cortando matas na área da fronteira com a Tailândia, incluindo áreas florestais do projeto de REDD comunitário, há vários anos. Em 2012, os militares disseram ao chefe da rede florestal comunitária, Sar Thlai, que assumiriam o controle de mais de 2.500 hectares em duas das florestas comunitárias. Sar Thlai disse ao Cambodia Daily que os militares tinham estabelecido bases em pelo menos seis das 13 florestas comunitárias nos últimos anos (9). Além disso, em abril de 2013, dois soldados armados pararam patrulheiros florestais comunitários e os forçaram a entregar duas motosserras e 100 pranchas de madeira de lei que eles tinham apreendido de madeireiros ilegais. Os soldados disseram que o corte era para a construção de um novo prédio para sua guarnição (10).
O desmatamento continua dentro e em torno das florestas comunitárias na província de Oddar Meanchey, e o REDD não está fazendo nada para impedir isso. As ameaças incluem empresas e forças armadas que entram na área, e grandes concessões econômicas de terras. Em 2014, oCambodia Daily informou que os moradores do distrito de Banteay Ampil encontraram cinco soldados cambojanos armados derrubando sua floresta comunitária. A floresta faz parte do projeto de REDD Oddar Meanchey (11) e o Ministério de Agricultura, Florestas e Pesca não está fazendo nada para impedir isso.
As grandes concessões têm um histórico de destruir os meios de subsistência e as florestas. O principal ativista da luta contra madeireiras ilegais e a concentração de terras no Camboja, Chut Wutty, foi morto a tiros por policiais militares em 2012, enquanto levava dois jornalistas do Cambodia Daily para investigar a exploração madeireira ilegal nas Montanhas Cardamomo, na província de Koh Kong (12). “Os cambojanos têm o direito e a necessidade de saber quem ocupa as áreas próximas às suas casas”, disse a Diretora da LICADHO, Naly Pilorge. É necessária uma ação urgente para apoiar as comunidades que lutam para evitar que essa pilhagem continue.
- http://www.licadho-cambodia.org/pressrelease.php?perm=374
- http://www.licadho-cambodia.org/land_concessions/
- http://www.licadho-cambodia.org/press/files/LICADHO-ConflictsData2014-English.pdf
- Ver nota (1)
- http://www.licadho-cambodia.org/pressrelease.php?perm=342
- https://www.globalwitness.org/campaigns/land-deals/rubberbarons/
- Ver nota (5)
- http://climatemarkets.org/topics/public-sector-ifis-and-leveraging-private-finance/fact-sheet-about-the-module-topic#sdendnote3anc
- http://www.redd-monitor.org/2014/06/13/military-clearing-of-community-forests-in-oddar-meanchey-cambodia-photos/
- http://www.redd-monitor.org/2013/06/21/oddar-meanchey-redd-project-runs-into-problems-selling-carbon-credits-as-the-cambodian-government-misses-deal-signing-deadline/
- https://www.cambodiadaily.com/archives/military-continues-to-cut-down-forest-and-carbon-credits-50964/
- http://www.redd-monitor.org/2012/04/27/environmental-activist-chut-wutty-shot-dead-in-cambodia/