Quando uma área de floresta é substituída por um monocultivo de eucalipto, uma barragem ou um projeto de mineração, a destruição é algo bem visível. No entanto, o que muitas vezes é invisível para quem olha de fora – e, por isso, pouco compreendido – é o conjunto de impactos profundos que essa destruição causa na vida da comunidade que vive há muitas gerações naquele lugar, bem como na própria floresta, com as incontáveis interconexões entre os seres vivos que fazem parte dessa floresta, incluindo a própria comunidade. Com a floresta, a comunidade gerou um conjunto de conhecimentos e sabedoria que a ajudou a garantir seu bem-estar e sua saúde física, mental e spiritual, sua cultura, sua identidade e sua autoestima. Por isso, ações que visam recuperar e revalorizar a sabedoria, a saúde e o bem-estar de comunidades afetadas por projetos destrutivos, de forma ampla e integral, são fundamentais para fortalecer as lutas de resistência dessas comunidades e para quando elas buscam reverter o processo de destruição, ganhando e dando mais força e sentido à luta pela reconquista do seu território.
Várias vezes denunciamos no boletim do WRM os novos mecanismos de “compensação” para conter a crise climática, propostos por “especialistas” de transnacionais, governos e instituições financeiras, e também de grandes ONGs, por serem pouco sábias, por serem falsas soluções para a crise climática e porque o REDD+, por exemplo, valoriza uma floresta apenas a partir do carbono que nela existe. Da mesma forma, o mecanismo de compensação pela destruição de biodiversidade valoriza uma floresta apenas a partir de uma determinada presença de plantas ou animais. Essa visão colide frontalmente com as visões e a sabedoria que comunidades que dependem das florestas têm construído ao longo do tempo. Elas sempre consideram esse lugar como algo único – para elas, não existem dois lugares iguais. É no lugar onde vivem que comunidades têm criado seus laços, suas histórias contadas e recontadas, seus conhecimentos, sua coletividade, sua identidade e sua cultura. É nesse lugar, também, que elas encontram as condições para viver bem através dos alimentos e da nutrição que a floresta fornece, além de plantas, fontes de água e animais, para ajudar a tratar e, sobretudo, prevenir doenças físicas e mentais.
Este boletim busca refletir sobre essa dimensão mais ampla que um lugar tem para as comunidades que nele vivem, sem que elas recorram à valoração de certas categorias pré-estabelecidas, como o carbono. Mais do que isso, na sua sabedoria, as comunidades se sentem parte da floresta. Isso é radicalmente diferente para aquelas que elaboram as políticas hoje impostas a essas comunidades, com a promessa de “salvar” as florestas. Enquanto uma comunidade fala de seu lugar com carinho e respeito, as políticas oficiais falam sobre o mesmo lugar em termos de “categorias” como, por exemplo, a presença ou não de “florestas de alto valor de conservação” ou “florestas com alto valor de carbono”. Nessa lógica, uma floresta de “alto valor”, por exemplo, pode ser substituída por outra com características parecidas em termos de determinadas espécies de plantas, enquanto o restante da floresta não tem valor, ou seja, pode ser destruído por não caber dentro da “categoria”. Enquanto comunidades falam de lugares para se referir a um conjunto de seres e significados, inclusive a elas mesmas, os “especialistas” que elaboram cada vez mais mecanismos para “solucionar” as crises de desmatamento e do clima falam hoje, por exemplo, de “paisagens”, ou seja, algo que eles observam e usam à distância, conforme seus interesses, e do qual não se sentem parte.
Aqui, nossa intenção não é de romantizar a relação que as comunidades têm mantido com seu lugar, com a floresta. O que queremos é chamar atenção ao fato de que os grandes projetos destruidores não destroem apenas florestas; essas invasões de terra também colocam em risco e tendem a destruir sabedorias e um conjunto de costumes, histórias, relações, tradições e práticas que determinam o vínculo entre comunidades e seu lugar, que dão forma a sua identidade e garantem seu bem-estar. Destruindo a floresta, acabam destruindo conhecimentos imprescindíveis para o entendimento e a conservação dessas florestas. Para além do projeto específico que vem invadindo e destruindo seu território, as comunidades precisam lidar também com outros “ataques” a seu bem estar, mais voltados à esfera do seu imaginário enquanto camponeses ou camponesas, indígenas, ou ribeirinhas ou ribeirinhos. Por exemplo, as mensagens constantes que propagam uma “monocultura” de um determinado padrão de consumo, muitas vezes com uma face urbana e dominada por grandes empresas transnacionais. A propaganda delas busca, através do processo de globalização, transformar qualquer habitante do mundo em “consumidor” dos seus produtos – na maioria das vezes, muito prejudiciais para a saúde desse mesmo consumidor.
Tudo isso contribui para romper o vínculo entre as comunidades e seu lugar, e destruir sua sabedoria, sua identidade, sua cultura. Dessa forma, fica muito difícil resistir e lutar. Nos casos em que uma comunidade reconquista seu território arrasado pela monocultura, pela mina ou de outra forma, ela costuma ficar sem referência, já que não pode simplesmente retomar seu modo de vida porque as condições para isso não existem mais. O resultado é uma crise profunda na comunidade, que se expressa de diferentes formas, sendo uma das expressões mais fortes o fenômeno de suicídios entre jovens indígenas em vários países.
Buscando aprofundar esses desafios mais intrínsecos com os quais comunidades se veem confrontadas quando assistem à invasão e à destruição do seu território e da floresta, produzimos esta edição do nosso boletim. Não queremos apenas mostrar e refletir sobre essa realidade mais complexa vivida por comunidades que dependem da floresta com o objetivo de que ela seja mais bem compreendida; também buscamos contar algumas histórias inspiradoras e animadoras vindas dos continentes da América Latina, da África e da Ásia, sobre como comunidades resistem e lutam para manter e reencontrar o sentido de viver e a sua saúde, mesmo em situações sumamente adversas.