Madagascar é mundialmente conhecido como um dos países com maior riqueza ecológica do mundo, lar de espécies vegetais e animais únicas. Porém, já na época da colonização francesa, foi introduzido no país o modelo de produção voltado para a exportação. Foram derrubadas florestas tropicais primárias, para a construção de estradas e a exportação de madeira, e desmatadas importantes áreas florestais nas regiões mais férteis, para o plantio de culturas comerciais, afundando, assim, em privações e esfomeação uma sociedade que praticava basicamente uma agricultura de subsistência (veja o boletim 66 do WRM).
Hoje, Madagascar está entre os países mais pobres. Mas seria sábio que a linguagem refletisse a verdade: o povo malgaxe não é pobre; ele foi empobrecido, da mesma forma que a maior parte dos países do Sul.
Atualmente, não existem países estrangeiros que tomem abertamente as rédeas do governo, mas o colonialismo ainda tem suas garras fincadas bem fundo na economia do país. Os piratas da modernidade chegaram para "salvar" o país: o FMI preparou o terreno (exigindo a liberalização, condição sine qua non para outorgar créditos) para que a gigante anglo-canadense da mineração Rio Tinto implementasse um projeto na ilha (veja os boletins 22, 54 e 55 do WRM).
A QIT Madagascar Minerals S.A. (QMM), uma empresa malgaxe - 80% da Rio Tinto e 20% do Estado - começou a fazer um estudo de viabilidade, sendo que, em novembro de 2001, o projeto teve a licença ambiental conferida. O projeto requer a dragagem de bilhões de toneladas métricas de terra, numa área de mais de 6 mil hectares, para a extração de ilmenita, mineral geralmente tratado com ácido sulfúrico, para a obtenção de bióxido de titânio, utilizado na produção de pigmento que, por sua vez, é amplamente usado no fabrico de tinta e plástico. Isso implicará a criação de um lago artificial no que restar da floresta, movimentando-o aproximadamente um metro por dia, enquanto uma máquina suga a terra e uma outra peneira a ilmenita. A atividade mineira poderia ter uma duração de sessenta anos.
No marco da nova iniciativa das transnacionais para a criação de uma imagem verde e ecologista, a Rio Tinto está empenhada em demonstrar o impossível: que a mineração é uma atividade sustentável para o meio ambiente e os seres humanos! Porém, todo mundo sabe (ou deveria saber) qual é a intenção real de toda empresa comercial: gerar lucro. Segundo o Manual para a Ação Corporativa (Handbook for Corporate Action), esse projeto "é um elemento essencial para manter a futura participação da Rio Tinto no fornecimento de bióxido de titânio como matéria-prima".
O governo de Madagascar deu luz verde e a empresa já gastou 41 milhões de dólares nos preparativos das obras que começarão no ano 2005. O resultado eleitoral do ano passado levou para o palácio presidencial Marc Ravalomanana, um jovem magnata que saiu vitorioso pelo próprio esforço e que promete progresso. Preferido do Ocidente, o novo presidente é a favor da mina de ilmenita da Rio Tinto, pois espera que o projeto gere emprego e verba para a fazenda pública. No último mês de maio, Marc Ravalomanana reuniu-se nos Estados Unidos com o secretário de estado desse país, Colin Powell, quem afirmou que Washington apoiaria o presidente Ravalomanana em seus "esforços por introduzir reformas políticas e econômicas". Um mês depois a notícia era que o Banco Mundial outorgaria um crédito de 32 milhões de dólares da Associação Internacional para o Desenvolvimento (AID), para "ajudar Madagascar a administrar seus recursos minerais de forma mais efetiva".
Em entrevista a um jornalista do The Guardian, Serge Lachapelle, diretor executivo da QIT, anunciou o seguinte: "Vamos persistir, apesar de tudo". A advertência foi feita num momento em que o projeto recebia fortes críticas por parte de organizações ambientalistas, como a Amigos da Terra, a Conservation International e o Fundo Mundial para a Natureza (WWF).
O "programa sustentável" da empresa consiste em que cada um dos três locais propostos para a mineração deixaria intocada uma área de conservação, totalizando 10% da área onde seria feita a extração do mineral. Além disso, a empresa restauraria mais 10% de floresta, sendo que, na área restante, plantaria árvores de rápido crescimento, como o eucalipto, para fornecer carvão e madeira à população local. A Rio Tinto espera que isso "ajude a criar ecossistemas do zero". Aquilo que a natureza levou milênios para fazer poderia ser restaurado com uma receita: poupar o solo superficial da dragagem, plantar 50% com as supostas árvores pioneiras que gostam do sol, seguido, depois, de 40% com aquelas que gostam de sol e de sombra, e, por último, 10% com as que somente gostam de sombra. Eles fazem com que pareça que é fácil brincar de Deus!
A Amigos da Terra já fez um relatório em que conclui que o projeto de mineração não seria compatível com um autêntico desenvolvimento sustentável, nem no sudeste de Madagascar nem no país todo. Em uma década e meia de preparativos e estudos intensivos, esse projeto, aparentemente "verde" e apoiado por um impressionante número de especialistas do mundo todo, não conseguiu evitar a crescente degradação ambiental que, segundo declara a empresa, será tratada e mitigada de forma radical pela mina. Isso é propositado? Será que a QMM/Rio Tinto está adiando intencionalmente o início das medidas de conservação e restauração, para impor melhor a idéia de que o projeto da mina é imprescindível para alcançar esse objetivo?, é o que questiona a organização Amigos da Terra.
No fim do ano, o WWF também porá em circulação um relatório sobre a mina. Um integrante da organização que mora em Fort Dauphin, um povoado que será atingido pelo projeto de mineração, afirmou que os centros de pesquisa mostrados ao jornal The Guardian não passavam de uma farsa. As áreas de conservação estavam fragmentadas demais como para ser viáveis, e exerceriam pressão sobre determinadas espécies. Por outro lado, a empresa também não pensou no conflito potencialmente explosivo que criaria ao estabelecer, no mínimo, 800 trabalhadores estrangeiros num povoado pequeno com 3 mil jovens desempregados.
Uma visita aos povoados dos arredores revelou a existência de opiniões desencontradas: a maior parte dos moradores, descalços e vestindo farrapos, sabia que estava sendo planejada uma mina, mas não sabia exatamente onde e quando, como também não os impactos que ela poderia provocar. "Acabará com a agricultura tradicional, sem dúvida", disse Karae, chefe do povoado de Houtotmotre. E após ter consultado outros anciãos, acrescentou: "Mas, por causa da seca, a gente não tem lavoura, ou seja que é possível que, mais uma vez, não tenhamos nada para perder". Albert Mahazoly, 45 anos de idade, foi demitido há pouco de uma plantação de agave, praticamente a única fonte de renda no povoado de Ankitry. Agora, a família dele é uma das que fazem fila para receber sacos de milho do Programa Mundial de Alimentos. Essa é uma humilhação que o Sr. Mahazoly não pretende agüentar muito tempo. "Estou pronto para ir à mina. Vou fazer qualquer coisa que pedirem", afirmou. A possibilidade de o seu trabalho não qualificado não ser necessário significou um rude golpe. "Mas eu vou fazer o que for", disse. É assim que o círculo se fecha: privados de sustento, empobrecidos e saqueados.
Artigo baseado em informação de: "Mining giant threatens to scar island paradise", Rory Carroll, The Guardian, 23 de junho de 2003, http://www.guardian.co.uk/international/story/0,3604,982989,00.html ; "The case against QMM/Rio Tinto in Madagascar", Nostromo Research, Londres, 12 de novembro de 2001, relatório encomendado pela Amigos da Terra, http://www.minesandcommunities.org/Company/foemadagascar2.htm ; QIT Madagascar Minerals Ilmenite Project, http://www.hatch.ca/Sustainable_Development/Projects/madagascar-qit_minerals_ilmenite_project.htm ; "Rio Tinto in Madagascar", sítio Web da Rio Tinto, http://www.riotinto.com/news/showMediaRelease.asp?id=473 ; "Malagasy President Meets with Colin Powell", VOA 27.05.2003, http://www.madagasikara.de/2003/Mai/030527voara8usa.htm ; Madagascar: World Bank credit will help manage country's mineral resources, IRIN, http://www.africahome.com/annews/categories/
economy/EpVFpukAyEkZvQmzvh.shtml#Author