Um novo negócio destrutivo: créditos de carbono provenientes de plantações de árvores

Este editorial faz parte do boletim especial "Plantações de árvores para o mercado de carbono: mais injustiça para as comunidades e seus territórios"
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Há quase 24 anos, o WRM publicou um documento intitulado “O mercado de carbono: semeando mais problemas”. Seu o objetivo era alertar sobre uma nova oportunidade de negócios para a indústria de plantações: a expansão das plantações de árvores para gerar créditos de carbono que possibilitassem às empresas poluidoras afirmar que haviam compensado os danos climáticos causados pela continuidade da queima de combustíveis fósseis. Essa primeira onda de plantações destinadas a gerar créditos de carbono foi desencadeada principalmente pelo Protocolo de Quioto. O acordo da ONU deu origem a mecanismos de compensação de carbono que ajudaram governos e empresas do Norte a se eximir de tomar as medidas necessárias para conter o caos climático: acabar com a extração de petróleo, gás e carvão.

Dentro dos mecanismos do Protocolo de Quioto sobre o comércio de carbono, o comércio de créditos de carbono provenientes de plantações de árvores permaneceu limitado, sobretudo devido ao óbvio absurdo de pagar às empresas de plantações por um negócio já muito lucrativo, que estava causando danos ecológicos e socioeconômicos e abusos dos direitos humanos – enormes e bem documentados.

A indústria das plantações e as ONG conservacionistas também levaram a ideia das “plantações de carbono” para o chamado mercado voluntário. Continuaram promovendo as plantações de árvores como uma “solução” para a crise climática, alegando que, sem o uso de árvores para “remover” carbono da atmosfera, seria impossível atingir o objetivo do Acordo de Paris da ONU, de limitar o aumento da temperatura global a 1,5°C. A promoção contínua dessa falsa afirmação desencadeou uma nova ronda de iniciativas de plantação de árvores para compensação de carbono. Desde a adoção do Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas, em 2015, e principalmente após a conferência da ONU sobre o clima, em novembro de 2021, em Glasgow, na Escócia, as iniciativas de compensação de carbono envolvendo plantações de árvores se multiplicaram. Os compromissos das empresas de se tornarem produtoras com emissão “líquida zero” resultaram na proliferação de projetos de compensação em muitos países do Sul global.

Como resultado, o número de projetos de plantações para mercados voluntários de carbono mais que duplicou nos últimos três anos. Esses projetos aumentaram não só em número, mas também em tamanho. A maioria deles está acontecendo no Sul global, onde as empresas de plantações conseguem obter grandes áreas de terra, as árvores crescem rapidamente e há muitas maneiras de evitar a regulação. Esse tem sido o padrão desde os tempos coloniais: as empresas procuram terras no Sul global para expandir os seus negócios porque é lá que conseguem os maiores lucros explorando a terra e as pessoas.

Apesar da enorme propaganda da indústria das plantações e dos seus aliados para tentar fazer lavagem verde em sua imagem, suas plantações industriais destroem os meios de subsistência locais, apropriam-se de vastas áreas de terra, poluem a água e impõem violência. Também é absurdo acreditar que plantações de árvores possam compensar os danos (climáticos) resultantes da queima de carbono fóssil. As plantações de árvores podem armazenar carbono temporariamente, mas não conseguem garantir o armazenamento durante as centenas de anos em que o carbono liberado pelas jazidas subterrâneas de petróleo, gás e carvão irá interferir no clima. Afirmar que as plantações de árvores podem compensar as emissões resultantes da queima de combustíveis fósseis apenas beneficia as empresas de plantações e o setor extrativo, que pode continuar – e até aumentar – a extração e o uso de carbono fóssil.

Com este boletim, o WRM quer chamar a atenção para essa nova estratégia de negócios que visa fazer com que a expansão das plantações de árvores seja ainda mais lucrativa para a indústria de plantações. Os artigos explicam como e onde essa expansão está ocorrendo e quem está se beneficiando desse mais recente impulso corporativo a mais plantações de árvores destrutivas.

Uma coisa é certa: as comunidades cujos meios de vida dependem dos seus territórios não terão benefícios quando suas terras forem ocupadas por mais plantações de árvores.

 

Iniciativas internacionais, regionais e nacionais estão promovendo plantações de árvores para o negócio do carbono

Este artigo faz parte do boletim especial "Plantações de árvores para o mercado de carbono: mais injustiça para as comunidades e seus territórios"
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No âmbito internacional, lobbies corporativos e grandes ONGs de conservação pressionam os Estados e as negociações internacionais a promover as plantações de árvores como um mecanismo de compensação legítimo para as emissões de carbono.

Iniciativa Africana dos Mercados de Carbono

Um exemplo é a Iniciativa Africana para os Mercados de Carbono (ACMI), lançada em 2022 durante a Cúpula do Clima da ONU. A iniciativa visa acelerar o crescimento dos mercados voluntários de carbono da África, canalizando “bilhões em financiamento climático para a África” e estabelecendo “créditos de carbono como uma das principais commodities de exportação da África”.(1)

Sobre o caminho a ser percorrido, a ACMI aponta as plantações de árvores em terras agrícolas e outros projetos  da categoria “silvicultura e uso da terra” como aqueles com maior potencial para gerar créditos de carbono. Ela também identifica 10 países que seriam os mais relevantes para esse tipo de projeto: República Democrática do Congo, Madagascar, República do Congo, Angola, Zâmbia, Nigéria, Camarões, República Centro-Africana, Moçambique e Sudão. A iniciativa também afirma que há um “potencial significativo para aumentar a geração de créditos de carbono com pequenos agricultores”, que atualmente vivem e trabalham em cerca de 80% das terras agrícolas da África.(2)

A ACMI é patrocinada por várias agências doadoras internacionais e organizações filantrópicas e conta com “ONGs de caráter empresarial”, como a Verra e a Conservation International, em seu Comitê Diretor. Cabe destacar que a iniciativa é sustentada por análises conduzidas pela McKinsey, uma empresa de consultoria sediada nos EUA com interesses na expansão dos mercados voluntários de carbono na África.(3) A empresa também influenciou fortemente a Cúpula do Clima da África, na qual compensação de carbono e financiamento também foram apontados como uma direção importante.(4)

Centenas de organizações da sociedade civil africana têm denunciado os mercados de carbono como a nova disputa pela África, expondo os interesses ocidentais colocados em primeiro plano por essas agendas “positivas para o clima” e pedindo a rejeição dos esquemas poluidores.(5)

Plataforma Africana de Impacto Florestal

O setor financeiro e as empresas de investimento são grandes impulsionadores da atual expansão dos empreendimentos de plantação de árvores no Sul Global para compensar as emissões de carbono do Norte Global. Um exemplo são os US$ 200 milhões prometidos pelo Norfund da Noruega, pelo Finnfund da Finlândia e pelo British International Investment do Reino Unido para a Plataforma Africana de Impacto Florestal (African Forestry Impact Platform – AFIP, que na verdade é um fundo privado e não uma plataforma), seguindo um compromisso assumido durante a COP 26 de expandir o setor de “silvicultura sustentável”.(6)

A AFIP foi lançada pela New Forests (que é diferente da New Forests Company mencionada no artigo Quais são os principais tipos de projetos de plantação de árvores no negócio de carbono? deste boletim). A entidade é a segunda maior gestora e investidora florestal do mundo e pertence aos grupos financeiros japoneses Mitsui e Nomura Holdings, intimamente ligados ao setor de combustíveis fósseis.(7) O plano de “soluções baseadas na natureza” da AFIP é desenvolver plantações industriais de árvores voltadas para os mercados de carbono, garantindo assim grandes quantidades de financiamento de instituições financeiras de “desenvolvimento”. Como resultado, a AFIP comprou recentemente a Green Resources, conforme mencionado no artigo Quais são os principais tipos de projetos de plantação de árvores no negócio de carbono? deste boletim.

Iniciativa Um Trilhão de Árvores

Outro exemplo é a ideia Um Trilhão de Árvores, que foi lançada em 2018. Desde então, ela foi endossada pelas elites econômicas e políticas representadas pelo Fórum Econômico Mundial, pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e pelas principais ONGs de conservação, como WCS, WWF e BirdLife. A iniciativa ingênua e perigosa do plantio maciço de árvores como solução para o caos climático se encaixa muito bem nos interesses de várias das maiores corporações e doadores bilionários do mundo e os inspirou a participar.(8)

 


AS EMPRESAS PETROLÍFERAS AGRADECEM

Distração como o Um Trilhão de Árvores são muito eficazes para desviar a atenção da necessidade de reduzir as emissões de combustíveis fósseis. Vale lembrar que, pouco tempo depois do surgimento da ideia Um Trilhão de Árvores, a Eni e a Shell (as duas maiores compradoras de créditos de carbono na África(9)) anunciaram que estabeleceriam suas próprias plantações de árvores para compensar suas emissões. A empresa colombiana Ecopetrol aderiu à campanha Um Trilhão de Árvores, comprometendo-se a plantar 20 milhões de árvores e compensar 2 milhões de toneladas de carbono entre 2020 e 2030.



A proposta gerou críticas significativas na comunidade científica uma vez que foi lançada para tratar da estratégia de plantar árvores como provavelmente a maneira mais eficaz de limitar o aumento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera, desviando-se da necessidade imperativa de reduzir as emissões de combustíveis fósseis. (10) No entanto, isso é ofuscado pela ampla cobertura da mídia proporcionada pelo apoio financeiro levantado pelos autores (11) da ideia enganosa de que “o florestamento maciço e a indústria madeireira resultante podem criar centenas de milhões de empregos e riqueza no Sul Global”.(12) Com o crescimento dos mercados de carbono, as iniciativas dentro do escopo da ilusão do trilhão de árvores estão cada vez mais associadas à compensação de carbono.(13) Em 2023, mais de um terço das empresas que prometeram plantar árvores no âmbito da campanha 1t.org estavam fazendo isso para compensar as emissões.(14)

Iniciativa 20 x 20

A Iniciativa 20 X 20 está sendo desenvolvida na América Latina e no Caribe. Seu objetivo é proteger e restaurar 20 milhões de hectares. Ela engloba vários projetos de plantação de árvores desenvolvidos para gerar créditos de carbono para o mercado voluntário de carbono. O projeto pede “financiamento para restauração e conservação para gerar emissões líquidas zero de carbono em toda a região”,(15) e conta com o apoio de governos nacionais do Norte Global (doações da Alemanha, Noruega e Luxemburgo), empresas como a Cargill e a Nestlé (por meio da Nespresso), empresas do mercado de carbono como a South Pole e a Ecosecurities, entre outras. Mais uma vez, a ilusão de emissões líquidas zero incentiva um movimento na direção errada, fortalecendo e se beneficiando da ideia enganosa de compensar as emissões de combustíveis fósseis com o plantio de árvores.

Políticas nacionais

Muitos governos e legisladores nacionais têm promovido as plantações de árvores como forma de compensar as emissões de carbono. Os exemplos incluem:

Na Nova Zelândia, o esquema estatal de comércio de emissões recompensa os proprietários de terras que investem em monoculturas de pinus. Essa é uma peça central do roteiro do governo para a redução de emissões. Esse apoio governamental levou a um aumento acentuado dessas monoculturas, o que dissolveu comunidades e causou enormes perdas sociais e culturais.(16)

No Paraguai, o projeto Proeza orienta a política institucional do Estado para o setor florestal e baseia-se na expansão das plantações industriais de eucalipto para atender às Contribuições Nacionalmente Determinadas (CND) do país.(17) Os projetos foram financiados pelo Fundo Verde para o Clima e realizados por meio do Fundo Arbaro, cujas plantações foram expostas por abusos e danos às comunidades nos países sul-americanos e africanos onde opera.(18)

Na Índia, o parlamento aprovou a Lei de Conservação das Florestas em 2023, que reduz as restrições para o estabelecimento de plantações de árvores em determinados tipos de terra. Isso poderia desencadear uma expansão considerável de projetos de florestamento e reflorestamento sob o pretexto de plantar árvores para ajudar o país a atingir sua meta de emissões líquidas zero até 2070. As estimativas indicam que a Índia teria que mudar a forma como quase 60% de suas terras são usadas para atingir essas metas.(19)

Esses são apenas alguns exemplos de iniciativas de governos nacionais que promovem e incentivam as plantações industriais de árvores como forma de atingir suas metas de compensação. À medida que cresce o número de países com iniciativas para regular seus mercados nacionais de carbono, pode-se esperar que o número de políticas nacionais nessa direção continue a aumentar, especialmente no Sul Global.

 

(1) Africa Carbon Markets Initiative, 2022. Roadmap Report by ACMI, pp. 8 and 25.
(2) Idem, p. 37.
(3) Power Shift Africa, 2023. The Africa Carbon Markets Initiative: a wolf in sheep’s clothing.
(4) REDD-Monitor, 2023. Africa Climate Summit: “It looks like a trade conference on carbon credits”.
(5) Real Africa Climate Summit, 2023. Over 500 civil society organisations issue an urgent call to reset the focus of the Africa Climate Summit.
(6) Reuters, 2022. Norfund, BII, Finnfund invest $200m in African forestry fund.
(7) The Oakland Institute, 2023. Green Colonialism 2.0: tree plantations and carbon offsets in Africa.
(8) REDD-Monitor, 2020. One trillion trees. A naive and dangerous distraction from the need to leave fossil fuels in the ground.
(9) Africa Carbon Markets Initiative, 2024. Carbon Markets in Africa (online), section 2.3 “Who are the key players in the VCM”.
(10) Um dos principais artigos científicos que apoiam a ideia (“The global tree restoration potential”, publicado na Science em 2019) nem sequer menciona as emissões de combustíveis fósseis como um problema. Mais tarde, no mesmo ano, a revista publicou quatro comentários técnicos e três cartas com críticas ao artigo, que podem ser acessadas em Science, volume 366, issue 6463, 2019.
(11) REDD-Monitor, 2019. Remember the headlines: Tree planting is our “most effective climate change solution”?
(12) Trillion Tree Declaration, 2018. A trillion trees to fight the Climate Crisis.
(13) Os exemplos incluem a seção de doação de compensação de carbono da Trillion Trees Australia e o compromisso da City Forest Credits.
(14) Financial Times, 2023. The illusion of a trillion trees.
(15) Initiative 20x20, 2024. Members. https://initiative20x20.org/members
(16) The Guardian, 2023. New Zealand falls out of love with sheep farming as lucrative pine forests spread.
(17) Global Forest Coalition, 2023. “The Devil’s Totality”: Paraguay’s Struggle Against Agribusiness and Monoculture.
(18) WRM, 2022. Fundo Arbaro: uma estratégia para expandir as plantações industriais de árvores no Sul global.
(19) Dooley, K., et al., 2022. The Land Gap Report, p. 25. https://landgap.org/

As contradições da conservação: O território do povo Ka’apor, na Amazônia brasileira

A parte oriental da Amazônia no Brasil tem as maiores taxas de desmatamento e degradação florestal do país. Contudo, nesse vasto território ainda existem grandes áreas em boas condições de proteção, que, como confirmam estudos científicos em vários locais do planeta, geralmente correspondem aos territórios de Povos Indígenas e/ou comunidades locais (1). Uma dessas áreas é a Terra Indígena Alto Turiaçu, onde vive o povo Ka’apor, que se estende por 530.524 hectares distribuídos em seis municípios do noroeste do Maranhão. Ali mora uma população de aproximadamente 2.600 pessoas distribuída em 20 comunidades, constituindo o maior território indígena da Amazônia Oriental e também a maior porção de floresta preservada daquela região.

Sobre o cuidado do território: Quem ensina a quem?

O cuidado com a floresta, chamado de conservação pela academia e outros setores sociais, baseia-se, entre outras coisas, em valores e relações profundas com os territórios: valores culturais, de uso, espirituais e políticos. Seus conhecimentos e suas práticas tradicionais lhes permitiram usar e cuidar do território ao mesmo tempo. Esses saberes e conceitos não são estáticos ou imutáveis; pelo contrário, evoluem com as culturas e se adaptam e respondem às necessidades emergentes. Dessa forma, por exemplo, o povo Ka’apor criou estratégias de monitoramento e autovigilância.

Não têm sido poucas as ameaças externas enfrentadas pelos Ka’apor. Ao longo dos anos, as invasões de seu território aumentaram, inclusive com funcionários públicos envolvidos em agressões, arrendamentos e uso de documentos falsos para apropriação indevida de território indígena. Diante disso, em 2012, parte significativa das lideranças das aldeias se uniu e passou a realizar ações de autovigilância. Eles estabeleceram pequenas comunidades nas estradas usadas pelos madeireiros, que mais tarde chamaram de áreas de proteção, ou ka’a usak ha, em seu idioma. Essa foi uma das experiências exitosas que neutralizou a agressão e invasão do território deles.

Em setembro de 2013, os indígenas criaram a primeira área de proteção no município de Centro Novo do Maranhão, onde decidiram, em dezembro daquele mesmo ano, retomar um sistema organizacional denominado Tuxa Ta Pame ou Conselho de Gestão Ka’apor. Trata-se de “uma forma de organização ancestral e coletiva do povo, que remonta e se referem aos antigos Tuxa, ou guerreiros, que deixaram marcas na história por terem lutado, dados a vida, mestres de saberes e cultura, estrategista em defesa do povo e da cultura”, explicaram os membros do Conselho em uma entrevista ao WRM. Nesse sistema não existem mandatários, chefes, caciques ou poder; as decisões não estão centradas em um líder, e sim na comunidade, em grupos e coletivos. “Todos são importantes e possuem um protagonismo na defesa [do território]. Quando tem uma ação de Autodefesa vai o grupo, ninguém diz quem ‘mandou’ comandou, mas todos que se sentiram ameaçados vão para o enfrentamento”, observaram.

Também foi estabelecido o Jupihu Katu Ha, acordo de convivência Ka’apor, criado com o intuito de contribuir para a unidade e exercer uma governança coletiva e responsável. A organização criada em torno do Tuxa Ta Pame se baseia em decisões consensuais, horizontais e participativas.

É necessário destacar a relevância que essas decisões acarretam em termos de autonomia e soberania. As formas próprias e inclusivas de governo e organização, distanciadas de modelos como as democracias representativas, permitem que diferentes setores dos povos indígenas tenham voz e participação. Exemplo disso é a guarda de autodefesa Ka’apor, formada por famílias, mulheres, idosos, crianças e até animais domésticos. Todos têm uma responsabilidade e uma tarefa a cumprir. Ou seja, o território é pensado, vivido, usufruído, apropriado e defendido por todos.

Com o passar do tempo e com o aumento das agressões e ameaças, as ações de defesa territorial se ampliaram. Foram implementadas novas formas de proteção com autovigilância, e foi feito um mapeamento participativo dos ecossistemas bioculturais Ka’apor. Inclusive, foram adotadas e implementadas agroflorestas sintrópicas, um sistema agrícola e produtivo criado há algumas décadas, que imita a floresta em sua organização, principalmente para reduzir insumos externos, acumular e descartar energia. E tudo isso junto com ações solidárias na educação e na saúde.

Porém, à medida que aumentavam as ações de autovigilância, também aumentavam os ataques e assassinatos, nos quais estavam envolvidos madeireiros, fazendeiros, caçadores, comerciantes e políticos locais. Nos últimos dez anos, mais de 50 pessoas foram agredidas, duas comunidades foram invadidas e ocorreram em torno de 15 assassinatos.

Apesar de tudo isso, a floresta pela qual o povo Ka’apor cuida está praticamente intacta. Recentemente, atores estrangeiros que desconhecem esse território chegaram supostamente para ensinar as pessoas a fazer o que elas vêm fazendo há séculos – proteger o seu território –. Esses atores defendem que seja implementado um projeto de REDD. Mas quem deve aprender sobre a relação com a floresta e como cuidar dela? Elas realmente vieram com a intenção de cuidar dela?

A chegada da proposta de REDD e os impactos previstos

No início de 2023, a empresa Wildlife Works e a ONG Forest Trends, ambas dos Estados Unidos, chegaram ao território com a proposta de implementar um projeto de REDD (Redução de Emissões causadas por Desmatamento e Degradação) para gerar e vender créditos de carbono. Elas chegaram sendo introduzidas por indígenas do estado do Pará.

Existe outra organização no território, a Associação Ka’apor Ta Hury do Rio Gurupi, que tem um cacique com quem a empresa e a ONG têm estabelecido maior comunicação. Essa associação, que não representa a totalidade do povo indígena, afirma concordar com o projeto, que supostamente poderia melhorar sua qualidade de vida e proporcionar recursos para complementar as atividades de proteção. Atualmente, há um memorando de entendimento assinado, que é denunciado pelo Tuxa Ta Pame porque nem a empresa nem a ONG os ouviram no processo que levou à assinatura.

Assim como acontece em muitos outros territórios do mundo, onde se concentram as florestas mais bem protegidas e que são objeto de disputa por projetos de créditos de carbono – povos indígenas e comunidades locais sofrem os impactos. Só com o anúncio já são geradas disputas e divisões internas.

Os membros do povo que discordam da proposta se opõem a ela porque o projeto de REDD mercantiliza o modo de vida deles e aumenta os conflitos internos. Eles sabem disso em primeira mão, pois já passaram por experiência semelhante com um projeto de comercialização de madeira seca em seu território entre 2006 e 2013. Naquele caso, sentiram-se enganados pelo próprio Estado, pelo governo federal e até pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Esses atores os envolveram no projeto de comercialização que acabou deixando disputas, morte e sofrimento, uma experiência que eles não querem repetir (2). Infelizmente, a presença de atores externos e sua proposta de projeto já está gerando conflitos e tem aprofundado as divisões entre o povo Ka’apor.

Pelo teor da situação, já foi feita denúncia ao Ministério Público Federal (MPF), segundo o qual qualquer processo que implique consulta prévia exige diálogo com os dois grupos, e o consenso deve refletir um entendimento que seja bom para ambos. (3).

Beto Borges, representante da Forest Trends, quando lhe foi perguntado qual seria a posição da ONG caso não houvesse consenso entre o povo Ka’apor, afirmou que o projeto não deveria continuar, o que reflete a relevância do consenso em uma decisão dessa importância. Mas a resposta do representante da Wildlife Works, Lider Sucre, é bastante diferente, pois não dá importância ao consenso, e sim destaca a decisão coletiva: “Nunca haverá unanimidade absoluta. Num processo comunitário, há sempre diferentes pontos de vista. No final do processo, acataremos a decisão do grupo, seja a favor ou contra” (4). Isso remete imediatamente ao que esse representante entende por decisão coletiva, uma vez que já existe uma decisão de parte do coletivo, que rejeita o projeto.

Como normalmente é o modus operandi de organizações como a Forest Trends e a Wildlife Works, elas começaram a disseminar informações tendenciosas sobre REDD, ao mesmo tempo em que informações muito relevantes não foram socializadas. Por exemplo, as irregularidades, as denúncias e os impactos de outros projetos REDD onde a Wildlife Works está envolvido, no Quênia, República Democrática de Congo e Camboja. (5)

Em novembro de 2023, o jornal The Guardian (6) publicou um relatório baseado na investigação realizada pela Comissão de Direitos Humanos do Quênia e pela ONG SOMO (7), que relata a denúncia contra funcionários de alto escalão da empresa Wildlife Works no projeto Kasigau, naquele país, acusados de abuso e assédio sexual cometidos durante mais de uma década. Homens ligados à empresa usavam sua posição para exigir sexo em troca de promoções e melhores tratamentos. A investigação levada a cabo por um escritório de advogados queniano encontrou provas de “comportamento profundamente inadequado e prejudicial” por parte de duas pessoas.

O próprio presidente da Wildlife Works, Mike Korchinsky, pediu desculpas pelo sofrimento causado e relatou que três pessoas foram suspensas, enfatizando que não se trata de um problema generalizado. A esse respeito, é necessário sublinhar que é muito comum minimizar o significado e dimensão dos abusos deste tipo de projeto (8) e insistir que os incidentes relatados se trata de casos isolados. No entanto, a repetição dos fatos ao longo do tempo sugere um caráter sistémico.

O problema fundamental por trás destas situações gravíssimas é que os projetos de REDD são incentivados e promovidos como uma intervenção exclusivamente positiva para comunidades e territórios, sem mencionar o histórico de impactos negativos. Ou seja, informações essenciais – completas, verdadeiras e imparciais – ficam escondidas das pessoas que se deparam com a tomada de decisão sobre um projeto em seu território.

Qual tem sido a resposta do Tuxa Ta Pame do povo Ka’apor?

Ao identificar a ameaça, o Tuxa Ta Pame determinou que era necessário buscar mais informações que permitissem uma compreensão abrangente do que é o mecanismo de REDD, como funciona, em que se baseia e quais seriam as suas implicações para a população e o território.

Após iniciarem seu próprio processo de investigação, os atores externos chegaram a apresentar uma explicação simplista e tendenciosa sobre o que é o REDD e a geração de créditos de carbono para financiar o projeto, que supostamente começaria a trazer benefícios simplesmente pela assinatura das listas de presença das reuniões. Mas o povo Ka’apor vem investigando, buscando outros pontos de vista e, sobretudo, conhecendo a experiência de outros povos com posição definida sobre o assunto, e assim chegou às suas próprias conclusões.

O conselho Tuxa Ta Pame e as comunidades organizadas em torno dele entendem o REDD como “um mecanismo capitalista de camuflar e manter o mundo poluído, os territórios ameaçados em sua autonomia. Por que transfere responsabilidade do poder público para o poder privado. Porque divide opiniões, monetariza os bens naturais. Sempre defendemos o território por que acreditamos que ele é a nossa vida. Nunca precisamos receber dinheiro para viver e proteger a floresta (9).

A partir dessa compreensão do que é o REDD, eles decidiram levar o tema para seus processos escolares e formativos, que acontecem em três núcleos de formação que orientam cinco centros de cultura e educação comunitária Ka’apor. O tema passou a fazer parte do conteúdo das atividades escolares e formativas, para as quais foram desenvolvidas cartilhas bilíngues de conhecimento. No final de 2023, já fazia sete meses que eles realizavam atividades de formação que deram origem à iniciativa de criar um protocolo comunitário autônomo Ka’apor, atualmente em construção.

O que é necessário, então, para que a floresta continue existindo?

É preciso garantir condições para que o povo Ka’apor permaneça no seu território, de forma segura e adequada, o que implica, entre outras coisas, respeitar suas próprias formas de organização política, de decisão e de gestão de seu território e seus meios de subsistência. Mais uma vez, deve-se ressaltar que projetos do tipo REDD que muitas vezes estão causando conflitos e impactos sem sequer estar aprovado ou em execução, são geralmente estabelecidos em áreas com bom estado de proteção de seus ecossistemas, como é o caso do Alto Turiaçu. Essas condições têm sido garantidas pelo povo Ka’apor, com base em seus conhecimentos, práticas, relacionamento com e de defesa do território, sem a necessidade de projetos externos nem de mecanismos de mercado que condicionem ou ordenem o que deve ser feito, segundo o que indicarem aqueles que promovem esses projetos e mecanismos.

Artigo elaborado pelo Secretariado do WRM, com base em entrevista realizada com membros do Conselho de Gestão Ka’apor Tuxa Ta Pame

 

(1) Porter-Bolland L. et al, 2012. Land use, cover change, deforestation, protected areas, community forestry, tenure rights, tropical forests. Forest ecology and management. Vol 268:6-17
(2) Video: Intercept Brasil, Empresa americana alimenta conflito indígena para lucrar com reparação ambiental, 2023.
(3) Article: Intercept Brasil, Empresa americana alimenta conflito indígena para lucrar com reparação ambiental, 2023.
(4) Idem 3
​(5) REDD-Minus: the rethoric and reality of the Mai-N´dombe  REDD+ Programme, 2020; Fortress conservation in Wildlife Alliance’s Southern Cardamom REDD+ Project: Evictions, violence, and burning people’s homes. “We’re proud of our work. The forest, the wildlife, you come to feel they’re yours”. 2021.
(6) The Guardian, Allegations of extensive sexual abuse at Kenyan offsetting project used by Shell and Netflix, November 2023.
(7) SOMO, Offsetting human rights. Sexual abuse and harassment at the Kasigau Corridor REDD+ Project in Kenya, November 2023.
(8) WRM, 15 anos de REDD: Um esquema corrompido em sua essência, abril de 2022.
(9) Entrevista com membros do Conselho de Gestão Ka’apor Tuxa Ta Pame.