Documentário: NÃO ao REDD e aos mercados de carbono
Madagascar: Comunidade de Sainte Luce diz NÃO à destruição causada pela mineração
Sainte Luce é uma vila de pescadores com uma população de 2.500 habitantes, localizada no Distrito de Fort Dauphin, Comuna de Mahatalaky, no sudeste de Madagascar. A pesca é fundamental para a subsistência das famílias em Sainte Luce; florestas e pântanos próximos também proporcionam medicamentos, materiais e soberania alimentar. O acesso a serviços públicos como educação e saúde é muito limitado, e as escolas e postos de saúde mais próximos ficam a cerca de 15 quilômetros da comunidade.
Sainte Luce teme que a mineração de ilmenita pela QIT-Madagascar Minerals (QMM), subsidiária da Rio Tinto, destrua suas pescarias, suas terras e seus meios de subsistência. Embora nenhuma data tenha sido comunicada para a expansão da mineração, a comunidade teme que essa expansão possa acontecer a qualquer momento. Para proteger sua sobrevivência como comunidade, eles dizem NÃO a esse projeto de mineração, que, se prosseguisse, destruiria a terra de seus ancestrais.
“Declaramos nossa oposição ao projeto de mineração”
Em dezembro de 2023, a comunidade de Sainte Luce entregou uma carta e depoimentos em vídeo à QMM e às autoridades de Madagascar, nos quais davam a conhecer sua oposição à destruição de suas terras e pescarias para extrair ilmenita, um mineral usado em tinta branca e plásticos, entre outros produtos. (1)
A comunidade de Sainte Luce tem todos os motivos para acreditar que a expansão da mina da QMM significaria destruição, com base no histórico da empresa até agora. Em 2005, em meio a muitas polêmicas, a grande mineradora anglo-australiana Rio Tinto recebeu do governo de Madagascar uma concessão de longo prazo para mineração. A concessão entregou quase 6 mil hectares de terra à QMM – uma joint venture entre a Rio Tinto e o Estado de Madagascar – para extrair ilmenita em três áreas perto da cidade de Fort Dauphin, no sudeste do país. Essas três áreas eram Mandena, Petriky e Sainte Luce. Até agora, a empresa só tem operações em uma dessas áreas: Mandena. A ilmenita extraída pela QMM é enviada a uma planta de processamento da Rio Tinto no Canadá e vendida como óxido de titânio, que é usado em tinta branca e plásticos, entre outras aplicações. Uma tonelada de óxido de titânio custava cerca de 290 dólares em agosto de 2024.
A mineração na área de concessão de 2 mil hectares em Mandena, nos arredores de Fort Dauphin, começou em 2008. Logo após a QMM receber a concessão, famílias que viviam perto de várias instalações relacionadas ao projeto foram forçadas a abrir mão de suas terras, incluindo as que estão perto do novo porto de mineração, das áreas de conservação privadas e de Mandena. Quinze anos depois, ainda há disputas sobre a indenização prometida pela QMM pelos meios de subsistência perdidos, pois as famílias afetadas pela mineração em Mandena alegam que o processo de indenização as deixou em desvantagem. Em maio de 2024, a QMM concordou em reavaliar os pagamentos.
Apesar da enorme destruição causada pelo projeto, a Rio Tinto alega que ajudou a proteger da destruição as florestas ao redor do porto, declarando-as como áreas protegidas. Ao fazer isso, a empresa alega ter “compensado” a destruição das florestas e da diversidade biológica nas áreas de mineração. (2)
Em junho de 2023, antes das eleições nacionais que ocorreriam naquele ano, a Rio Tinto e o governo de Madagascar anunciaram que estava sendo criado um comitê interministerial para facilitar “a obtenção de diferentes autorizações” necessárias para avançar com os preparativos para a mineração nas áreas restantes, Petriky e Sainte Luce. (3)
A Rio Tinto lucra, as comunidades de Madagascar pagam
Segundo um comunicado de imprensa de 22 de agosto de 2023, a multinacional de mineração Rio Tinto detém 85% da QMM, enquanto o governo de Madagascar detém os 15% restantes. Nesse comunicado, a empresa anunciou que o processo de renegociação dos acordos financeiros havia sido concluído, e essa renegociação foi planejada e incluída no contrato de concessão inicial. (4) Tanto no acordo original quanto no renegociado, a maioria dos lucros vai para a Rio Tinto, enquanto as comunidades e o estado de Madagascar ficam com os conflitos e os vários prejuízos deixados pelas operações da mineradora. A Rio Tinto paga meros 2,5% de royalties sobre os minerais brutos extraídos, que exporta para sua própria fábrica no Canadá. O acordo financeiro renegociado também reduz a participação do Estado na QMM para 15% (antes eram 20%), em troca do cancelamento da dívida de 77 milhões de dólares que a empresa adiantou ao Governo de Madagascar “para financiar seus aportes à QMM”. Além disso, o primeiro dividendo que a Rio Tinto concordou em pagar ao governo vem com condições: o Estado deve gastar 12 milhões de dólares para reformar 110 km da Estrada Nacional 13, uma importante via da região.
Comunidades enfrentam destruição e poluição da água pela mineração em Mandena
Em Mandena, a mineração da QMM na última década atingiu três aldeias de forma especialmente dura, principalmente os pescadores. Cerca de 15 mil pessoas vivem nas três aldeias lindeiras à mina. Muitas famílias perderam seus meios de subsistência quando as operações da QMM começaram a destruir as florestas e as pescarias próximas. As famílias viram o rendimento da pesca cair em quase 50% e foram forçadas a deixar suas terras, e muitas nunca receberam a compensação prometida. (5)
Outros grandes impactos da mineração da QMM incluem poluição da água e altas concentrações de chumbo. (6) No início de 2022, os moradores protestaram dizendo que estavam aparecendo peixes mortos nos cursos d’água nos arredores de Fort Dauphin. Pouco antes do início do aparecimento dos peixes mortos, a empresa realizou “uma liberação controlada de água” para evitar (mais um) rompimento dos diques de areia que ela usa para manter a água poluída na área de mineração. Essa não foi a primeira vez que a empresa fez uma liberação emergencial de água tóxica. Em 2010 e 2018, ela também derramou grandes quantidades de resíduos de mineração poluídos em cursos d’água ao redor da mina, a fim de evitar que o sistema de contenção entrasse em colapso. Em 2018, após a liberação da água residual, começaram a aparecer peixes mortos nos lagos. (7)
Pouco depois do aparecimento dos peixes, no início de 2022, o governo impôs uma proibição que fez com que os pescadores perdessem sua renda por meses. Enquanto isso, a QMM fez o que as grandes mineradoras costumam fazer nesses casos: negou qualquer conexão entre a liberação da água poluída e a mortandade dos peixes. (8) Em uma declaração ao site The Intercept, a empresa alega que a análise encomendada por ela de uma amostra de água não mostrou “nenhuma ligação conclusiva entre nossas atividades na mina e os peixes mortos observados por membros da comunidade”. (9)
Têm havido protestos regulares contra as operações de mineração da QMM, por uma infinidade de razões: há reivindicações de indenização não resolvidas; lagos e lagoas foram poluídos por mais de uma década pelo sistema de águas residuais da mina, que a QMM não se dá ao trabalho de consertar; comunidades perderam a renda que costumavam obter com a pesca e a colheita de produtos florestais, como mahampy, um junco usado para produzir as esteiras tradicionais que são comuns na região; comunidades perderam terras onde cultivam alimentos; as promessas de emprego não foram cumpridas; e comunidades enfrentam grandes riscos à saúde devido aos níveis elevados de urânio e chumbo no entorno da mina. Também aqui, a subsidiária da Rio Tinto fez o que as mineradoras costumam fazer em resposta a protestos contra suas atividades destrutivas: ignorou a causa do protesto e pediu às autoridades que mandassem a polícia.
Um relatório divulgado em março de 2022 pela rede Publish What You Pay afirma que “houve protestos contra a QMM desde que a operação começou, em 2009. Centenas de malgaxes ergueram barricadas/bloqueios de estradas e foram às ruas fazer greve contra o deslocamento e a realocação involuntária, a perda de terras e o acesso às suas florestas locais, a destruição de áreas florestais sagradas, a compensação inadequada por terras e meios de subsistência, a remoção de túmulos ancestrais e a desigualdade percebida sobre as práticas de emprego da QMM que favoreceram trabalhadores de outros países ou regiões em vez de treinar e contratar moradores locais”. (10) Muitos desses protestos foram recebidos com repressão policial pesada a líderes sindicais e moradores, que exigem que a empresa pare de infringir a lei, poluir a água e destruir seus meios de subsistência. (11)
Diante da repressão, da prisão de manifestantes e da recusa da mineradora a atender às reivindicações, os moradores que vivem perto das operações da QMM em Mandena iniciaram ações judiciais no Reino Unido em abril de 2024. Eles acusam a Rio Tinto de poluir os lagos dos quais dependem para suas necessidades domésticas com níveis de urânio e chumbo que representam um grave risco à sua saúde. (12)
Quinze anos de mineração da QMM em Mandena resultaram em destruição, poluição, conflitos, repressão violenta de protestos e perseguição do Estado e da QMM a cidadãos que exigiam o respeito aos seus direitos. É nesse contexto que a comunidade de Sainte Luce declara sua oposição à expansão da mineração de ilmenita proposta pela QMM em seu território.
Sainte Luce diz NÃO à destruição de seu modo de vida
Sainte Luce é a capital da lagosta do sul de Madagascar. Os peixes, caranguejos e principalmente lagostas pescados lá são procurados por chefs de restaurantes de lugares tão distantes quanto a capital de Madagascar, Antananarivo. A pesca de frutos do mar e o processamento de produtos florestais, como amboza e mahampy – fibras naturais que as mulheres usam para fazer esteiras e artesanatos – sustentam a comunidade há gerações.
Alarmados pela destruição e a poluição perigosa causadas pela mina da QMM e pela redução drástica de peixes na vizinha Mandena, os moradores de Sainte Luce juraram proteger seus modos de vida e a terra de seus ancestrais.
Em março de 2023, a comunidade informou a QMM e as autoridades malgaxes sobre sua decisão de se opor à mina de ilmenita em Sainte Luce e à destruição que ela traria. “Declaramos nossa oposição ao projeto de mineração”, disse a comunidade em uma carta à QMM e às autoridades. Em dezembro de 2023, representantes da comunidade entregaram cópias de um vídeo às autoridades malgaxes e à empresa. No vídeo, os moradores explicam sua decisão de se opor à mineração da QMM em seu território. Eles dizem que a comunidade decidiu preparar um vídeo como prova de que a decisão foi coletiva. (13)
“Não queremos esse projeto que destruirá nossas fontes sustentáveis de renda.”
A QMM já restringe o acesso da comunidade de Sainte Luce às suas florestas
Em dezembro de 2023, entre a entrega do vídeo da comunidade às autoridades malgaxes e à QMM em Fort Dauphin, os membros da comunidade de Sainte Luce estiveram envolvidos em um processo judicial. Em questão estava o direito da comunidade às suas terras ancestrais, as florestas que a QMM chama de S8, S9 e S17. A empresa declarou essas florestas como áreas protegidas e alega que, ao fazer isso, salvou-as da destruição. Essas florestas agora são administradas por um grupo chamado FIMPIA (Fikambanana Mpiaro ny Ambatoatsinana), apoiado e financiado pela QMM. A FIMPIA acusa a comunidade de entrar ilegalmente em suas próprias terras ancestrais que a QMM declarou “área protegida”.
Em 2009, a empresa lançou um kit de imprensa sobre a mina, intitulado “Uma mina no resgate da biodiversidade única da zona litorânea de Fort Dauphin”. (14) A publicação fez parte da iniciativa da Rio Tinto para conquistar, ou talvez comprar, ONGs conservacionistas. Algumas dessas organizações se opuseram inicialmente à mina da Rio Tinto porque ela destruiria 1.600 hectares de florestas costeiras. Para conter a oposição dessa ONG aos seus planos de mineração, a Rio Tinto concordou em “compensar” as florestas biologicamente diversas que sua mina iria destruir.
Porém, ao abandonar sua oposição à mina da QMM, as ONGs conservacionistas ignoraram uma questão muito importante: como alguém pode compensar a destruição de uma floresta única, que é o lar não apenas de muitas espécies raras e endêmicas de plantas e animais, mas também das comunidades de Sainte Luce e Mandena, sua cultura e suas conexões ancestrais? As supostas compensações de biodiversidade envolvem proibir a comunidade de usar várias florestas, tanto imediatamente ao redor da mina, quanto em Antsotso, cerca de 60 km ao norte das operações de mineração.
A floresta comunitária nos arredores de Manafiafy – que é o nome de Sainte Luce em idioma malgaxe – é um desses locais que a Rio Tinto declarou área protegida, como parte do programa de “compensação de biodiversidade” da empresa. A QMM se refere à floresta como “Zona S9, S8, S17”, onde “S” significa Sainte Luce. Assim como em Antsotso, a floresta comunitária fora de Manafiafy se tornou uma área de biodiversidade prioritária para a Rio Tinto. A operação de mineração da QMM envolve, em essência, uma dupla apropriação de terras: primeiro, das áreas de mineração e, segundo, das áreas de compensação de biodiversidade (S9, S8, S17 e as florestas de Tsitongambarika em Antsotso) onde as florestas comunitárias foram declaradas áreas protegidas a pedido da Rio Tinto. (2)
“Declaramos a nossa oposição ao projeto de mineração”
A comunidade de Sainte Luce deixou claro que protegerá a capital da lagosta da região sul de Madagascar contra a destruição, a violência e os conflitos que a mina da QMM traria. Os moradores informaram à empresa que, para eles, sua comunidade, seus meios de subsistência, seus modos de vida e o lar de seus ancestrais vêm antes da promessa de lucro no curto prazo. Eles apelam às indústrias do turismo e da lagosta para que apoiem seus esforços de proteger Sainte Luce contra a mineração destrutiva, e às autoridades de Madagascar para que não sacrifiquem sua comunidade por dinheiro rápido e ganhos pessoais. A QMM já deixou um rastro de conflito, violência, poluição e ameaças à saúde dos moradores (em função dos níveis elevados de urânio e chumbo em Mandena e Fort Dauphin). Nessa luta de Davi contra Golias, nós nos solidarizamos com a vila de Sainte Luce, cujos moradores juraram proteger a terra de seus ancestrais e o futuro de sua comunidade.
Associação Finoana e Secretariado do WRM
(1) Sainte Luce diz NÃO à destruição de suas florestas e meios de subsistência para mineração. Testemunhos em vídeo.
(2) Your mine. Vídeo de 17 minutos.
(3) 23 de junho de 2023. L’Etat entend faciliter l’extension du projet QMM à Petriky et Sainte-Luce. 2424MG.
(4) Declaração da Rio Tinto sobre a renegociação dos aspectos financeiros da concessão com o governo de Madagascar.
Veja (7) para saber como a Rio Tinto usa anos eleitorais para fechar acordos com governos.
(5) Villagers demand Rio Tinto compensation. Yvone Orengo. The Ecologist. Dezembro de 2022. Orengo também observa que, apesar das “afirmações da QMM de que pagou quase 4 milhões de dólares em indenização a pessoas impactadas negativamente pela mina de Mandena, até dezembro de 2009 havia 563 reclamações pendentes sobre indenização apresentadas à QMM”.
(6) Rural villagers living near mine in Madagascar take legal action against mining giant Rio Tinto after tests show dangerous levels of lead in their bodies, Leighday, abril de 2024.
(7) Rio Tinto’s Madagascar mine promised prosperity. It tainted a community. Neha Wadekar. The Intercept. 3 de abril de 2024.
(8) Seção do site da Rio Tinto sobre suas operações QMM em Madagascar.
(9) Veja a nota 7.
(10) Large-scale mining’s impacts: a case study of Rio Tinto/QMM mine in Madagascar. Publish What You Pay Network. Março de 2022.
(11) Comunicado coletivo TANY & CRAAD-OI sobre os protestos de 2018.
(12) Veja a nota 7.
(13) Veja a nota 1.
(14) A mine at the rescue of the unique biodiversity of the littoral zone of Fort-Dauphin. QIT Madagascar Minerals SA Press kit. 2009.
Fundos milionários para a biodiversidade: uma proposta perigosa
Enquanto acontecia em Cali, na Colômbia, a 16ª Conferência das Partes (COP16) da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), a organização equatoriana Acción Ecológica publicou uma conversa com Andre Standing, membro da Coalizão por Acordos Justos de Pesca (CFFA, na sigla em inglês), uma plataforma de organizações europeias e africanas em defesa das comunidades pesqueiras artesanais da África.
Standing faz uma análise crítica de uma das ideias dominantes nas reuniões da CDB, segundo a qual, para combater a perda de biodiversidade, é necessário investir 700 milhões de dólares por ano, principalmente nos países do Sul global.
A COP16 terminou no dia 1º de novembro, sem um acordo sobre a criação de um fundo mundial para cobrir esse déficit, mas a proposta se mantém nos documentos que norteiam a agenda da CDB, da qual participam 196 países.
Compartilhamos aqui a entrevista completa, publicada em 28 de outubro de 2024.
Falar em déficit de 700 bilhões de dólares para financiar a biodiversidade é uma proposta perigosa para as pessoas e para a natureza.
Entre 21 de outubro e 1º de novembro, será realizada em Cali, na Colômbia, a 16ª Conferência das Partes (COP 16) da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) (1). O documento de base para as negociações é o Marco Global para a Biodiversidade de Kunming-Montreal (GBF, na sigla em inglês), adotado durante a COP15 da CDB, em 2022.
Entre os objetivos para 2050 em nível mundial, o Marco Global para a Biodiversidade estabelece a meta de alcançar recursos financeiros suficientes para fechar gradualmente a lacuna de financiamento da biodiversidade, de 700 bilhões de dólares anuais. Por essa razão, uma das questões fundamentais a ser discutidas em Cali, na COP16, são os mecanismos financeiros necessários para fechar esse déficit.
No entanto, como acontece com o financiamento da luta contra as mudanças climáticas, que afirma que seriam necessários pelo menos 100 bilhões de dólares por ano para combatê-las, essas cifras vêm de cálculos especulativos, mas visam claramente tentar salvar o capitalismo da sua atual crise de acumulação.
Um dos principais relatórios para a CDB atingir esse valor de 700 bilhões no Marco Global para a Biodiversidade de Kunming-Montreal é o documento Financiar a natureza: fechando a lacuna financeira global da biodiversidade (3). Não é a primeira vez que renomados documentos elaborados por consultores servem de base para debates internacionais sobre o clima e a biodiversidade. O mesmo aconteceu com o histórico documento Relatório Stern: A economia da mudança climática (4), encomendado pelo governo britânico e publicado em outubro de 2006 (Nicholas Stern era economista do Banco Mundial) ou o relatório provisório sobre A economia dos ecossistemas e da Biodiversidade (TEEB, na sigla em inglês) (5) em 2008, encomendado pela Comissão Europeia, tendo como responsável Pavan Sukhdev, então chefe da divisão de mercados internacionais do Deutsche Bank.
O documento Financiando a Natureza foi elaborado por três organizações: o Instituto Paulson, fundado por Henry Paulson, ex-Secretário do Tesouro dos Estados Unidos e ex-executivo sênior da Goldman Sachs, a The Nature Conservancy, a maior transnacional de conservação do mundo e hoje parceira do sistema financeiro internacional, e o Centro Cornell Atkinson para Sustentabilidade, um think tank americano criado por David Atkinson, ex-vice-presidente do JP Morgan, um dos maiores conglomerados financeiros do mundo. O prólogo da publicação inclui diretores do Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Banco Central Europeu, além de Michael Bloomberg, fundador da empresa de informação financeira Bloomberg, entre outros.
Não é surpreendente que esses relatórios, como o Financiar a natureza: Fechando a lacuna financeira global da biodiversidade, sejam liderados por funcionários de bancos, uma vez que não são propostas voltadas a abordar as causas subjacentes da perda de biodiversidade ou as mudanças climáticas, e sim a aprofundar a financeirização da natureza com o objetivo de tirar partido das crises ambientais e favorecer o setor empresarial privado, com a ajuda do sistema financeiro global.
Na entrevista a seguir com Andre Standing, da Coalizão para Acordos Justos de Pesca (CFFA), aprenderemos mais sobre o relatório Financiar a natureza e os perigos de precificar a biodiversidade.
Acción Ecológica: Andre, você acaba de publicar um longo artigo (6) sobre o documento Financiar a natureza: fechando a lacuna financeira global da biodiversidade, que se tornou um dos relatórios mais citados sobre conservação da biodiversidade. Ele também é citado no objetivo D do Marco para a Biodiversidade de Kunming-Montreal e foi usado para estabelecer metas precisas para a mobilização de recursos pelas Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) da ONU. Assim, o que se argumenta na COP16 é que existe um enorme déficit ou lacuna de financiamento, de pelo menos 700 bilhões de dólares por ano.
Diga, por que se fala tanto sobre a lacuna no financiamento da biodiversidade? A que se referem quando falam de déficit no dinheiro que deveria ser investido?
Andre Standing: Financiar a natureza é um relatório incrivelmente influente. Muitas organizações aceitam cegamente a lacuna de financiamento de 700 bilhões de dólares e, claro, isso também inclui os arquitetos do Marco Global para a Biodiversidade de Kunming-Montreal. Há algo de muito atrativo em ver a crise da biodiversidade como um problema que exige muito dinheiro para ser resolvido. Mas eu acho que é essencial que as pessoas percebam que essa cifra é absurda, baseada em cálculos muito duvidosos. Eu também acho que a ideia de uma lacuna de financiamento é uma forma perigosa de abordar debates sobre o que é necessário para transformar as sociedades a fim de melhorar a conservação da natureza. Mas é um enfoque que convém a muitas organizações.
Os relatórios sobre déficit de financiamento ganharam muita popularidade na última década. Todos seguem a mesma fórmula e mostram sistematicamente que a lacuna é tão grande que o financiamento público não consegue fechá-la, razão pela qual o financiamento privado precisa socorrer. Suas recomendações incluem sempre estratégias como “misturar” dinheiro público com investimento privado. (7). Sendo assim, o importante é considerar que esses relatórios sobre déficit de financiamento, incluindo Financiando a natureza, têm motivação ideológica. Ninguém deveria aceitar essas cifras, a menos que esteja disposto a apoiar a opinião de que salvar a biodiversidade depende de uma imensa transferência de poder ao setor financeiro privado.
Acción Ecológica: No seu artigo, você descreve por que a cifra de 700 bilhões não é confiável. Você pode explicar quais são os problemas com essa cifra?
Andre Standing: Eu acho que o problema é que muitas pessoas que usam essa cifra provavelmente não leram o relatório na íntegra.
Os relatórios sobre o déficit de financiamento começam estabelecendo uma base do que é gasto atualmente. Assim, o documento Financiar a natureza tenta contabilizar todo o dinheiro que se gasta no mundo e que teria um impacto positivo na conservação da biodiversidade. E me parece estranho imaginar que alguém possa fazer isso. Mas o que os autores desse relatório fizeram foi somar todo o dinheiro que os governos gastam em biodiversidade com todo o dinheiro que se gasta através da ajuda ao desenvolvimento, além do dinheiro gasto com financiamento privado e sistemas baseados no mercado, tais como como esquemas de rotulagem ecológica, compensações de biodiversidade e títulos verdes. O resultado, segundo os autores, é que o mundo gasta cerca de 140 bilhões de dólares por ano para salvar a biodiversidade.
Conforme eu descrevo no meu artigo, há muitos problemas com os dados que estão por trás disso. Parte do problema é que esse método contabiliza iniciativas que sabemos ser ineficazes. Financiar a natureza, por exemplo, pressupõe que, quando o Banco Mundial informa que gastou milhões em um projeto destinado a reformas da silvicultura ou da pesca, esse dinheiro teve um bom resultado. Também se presume que os bilhões gastos em compensações de biodiversidade geram um benefício líquido para a natureza. Grande parte dos fundos contabilizados nesse mesmo relatório também vem de falsos títulos verdes e do valor global do Conselho de Manejo Florestal (Forest Stewardship Council, FSC) – o organismo de certificação para plantações florestais – ou “óleo de dendê sustentável”.
Porém, também há questões mais fundamentais. O relatório aceita uma relação direta entre dinheiro e conservação da biodiversidade. Mais dinheiro equivale a mais sucesso. Mas não faz sentido comparar as despesas de uma empresa dos Estados Unidos, que paga para compensar a perda de biodiversidade, com as de uma organização comunitária que trabalha em um projeto de permacultura em um país do Sul. O que também é especialmente problemático no relatório Financiar a natureza é que não se tenta incluir os esforços e despesas de milhões de indígenas e pequenos agricultores ou pescadores que atuam como guardiões de vastas áreas do planeta. Eles não são incluídos de forma alguma, enquanto alguns milhões de dólares arrecadados em títulos verdes estão lá. Igualmente, o valor de um produto com o rótulo ecológico de uma empresa é adicionado ao gasto total com a biodiversidade, mas algo produzido por um pequeno agricultor ou pescador sem rótulo não é contabilizado, mesmo sabendo que este respeita o meio ambiente muito mais do que aquela.
Assim, a cifra de referência do que se gasta não apenas é falsa, mas também se baseia em uma perspectiva errada. E não há reflexão crítica sobre os resultados do dinheiro destinado a salvar a natureza, uma vez que parte dele representa lavagem verde das empresas, o que, na realidade, tem impacto negativo sobre a biodiversidade.
Acción Ecológica: Então, se o relatório Financiar a natureza inventou uma cifra sobre o que se gasta, como é que chega a uma cifra para o que se necessita?
André Standing: Bom, a resposta resumida é que eles inventam essa cifra com base em alguns relatórios polêmicos. Não é muito provável que os autores do relatório saibam quanto dinheiro é necessário para resolver a crise da biodiversidade.
É claro que o problema de calcular quanto dinheiro é necessário para salvar a natureza depende da abordagem adotada. Um bom exemplo é o objetivo 30×30. Financiar a natureza se baseia em uma cifra elaborada por outro relatório que estimou quanto custaria declarar 30% do planeta como reserva natural estrita. De acordo com esse relatório, os custos operacionais anuais das áreas protegidas chegariam a cerca de 190 bilhões de dólares. Muitas coisas poderiam ser ditas sobre a precisão dessa cifra, mas o mais grave é que os 190 bilhões partem de um tipo específico de regime de gestão, baseado, em grande parte, no policiamento e no ecoturismo. Alguém teria uma perspectiva completamente diferente sobre os custos se acreditasse em áreas protegidas manejadas por comunidades locais, nas quais muitas funções de gestão têm por base o voluntariado e a ajuda mútua.
Estou particularmente interessado na pesca marítima, e Financiar a natureza pressupôs que o mundo precisa gastar entre 23 e 47 bilhões de dólares na gestão pesqueira para garantir a sustentabilidade das pescarias e a recuperação das populações de peixes. Essa é uma cifra ridícula, baseada em um obscuro artigo acadêmico de biólogos marinhos dos Estados Unidos, que projetava os custos globais da gestão da pesca se todos os países gerissem as suas pescarias como fazem os Estados Unidos: através de quotas de captura individuais. Qualquer pessoa familiarizada com a pesca sabe que esse modelo é totalmente inaceitável para muitos países do Sul, pois colocaria em perigo a subsistência de milhões de pessoas. Além disso, há muita literatura sobre gestão da pesca mostrando que o que os governos gastam nisso não é um bom indicador da qualidade dessa gestão. Os especialistas discordam sobre quais são os ingredientes do sucesso, mas muitos apontam para a importância da governança democrática, da capacidade de resistir aos grupos de pressão empresariais e à corrupção, e de sistemas de posse que favoreçam métodos de pesca artesanal de baixo impacto. O dinheiro, ou a falta dele, não é o maior problema.
Portanto, se perguntarmos como é que os autores de Financiar a natureza chegaram a uma estimativa do que temos que gastar, fica bastante claro que essas cifras vêm de alguns trabalhos de pesquisa muito duvidosos, que ninguém deveria levar a sério.
Acción Ecológica: Seu artigo descreve Financiar a natureza como uma fantasia neoliberal. Isso se deve à forma como se prevê fechar o déficit de financiamento. Você pode explicar?
André Standing: Financiar a natureza é um relatório longo. Tem mais de 230 páginas, cerca de metade dedicada a descrever como fechar o déficit de financiamento imaginado. O que se descreve nessa parte do relatório é que o enorme déficit de financiamento é grande demais para os governos, de forma que a maior parte do dinheiro necessário deve vir de financiamento privado e de empresas. É feita uma proposta bastante detalhada sobre a origem do dinheiro. Espera-se que os governos elevem os gastos com a biodiversidade em apenas 50% e que a ajuda ao desenvolvimento aumente em 100%. São partes bastante pequenas da proposta. Em comparação, elementos como compensações por perda de biodiversidade, títulos verdes e rótulos ecológicos têm que crescer mais de 20 vezes, o que significa que se tornam a principal fonte de financiamento para a conservação da biodiversidade.
Eu acho que essa proposta não é surpreendente, já que Financiar a natureza foi escrito por três organizações dos Estados Unidos estreitamente ligadas ao setor bancário. Mas é preciso reconhecer o quanto essa visão é radical. O que o relatório também diz é que, para desbloquear todo esse fluxo de financiamento privado, Estados e comunidades têm que se enquadrar, para que possam garantir circunstâncias propícias para os investidores privados. Acho que precisamos nos perguntar o que isso significa na prática. Essencialmente, significa que a gestão dos recursos naturais tem que ser privatizada e administrada com fins lucrativos, e que os escassos fundos estatais devem ser usados para garantias de crédito, por exemplo.
O que fica evidente ao se ler Financiar a natureza é que tudo isso é uma fantasia. O relatório não é uma publicação séria sobre soluções para a crise da biodiversidade, e sim uma elaborada ferramenta de marketing escrita por organizações que querem vender a conservação aos investidores. A pergunta que devemos nos fazer é como esse relatório foi levado tão a sério e como foi incluído no texto do Marco Global para a Biodiversidade de Kunming-Montreal. Infelizmente, muitas organizações aliadas também se referem ao déficit de financiamento de 700 bilhões de dólares como se ele fosse real.
Acción Ecológica: Concordamos que esse é um problema que testemunhamos em muitas reuniões internacionais. Por exemplo, em setembro deste ano, um mês antes da COP16, foi realizada na Colômbia a Cúpula sobre Financiamento da Biodiversidade (8), organizada pelo governo daquele país. Nessa cúpula, que contou com a participação do Banco Mundial, do BID, de associações de bancos privados, de instituições como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), do Instituto de Recursos Mundiais (WRI, na sigla em inglês) e de grandes ONGs como o WWF e outras, ficou claro para onde vai esse financiamento. Significa abrir enormes fluxos de dinheiro do setor público para o setor privado e os bancos, desencadear um endividamento devastador e perigoso de pequenos e médios empresários colombianos mediante o acesso a créditos verdes ou azuis e buscar novos negócios com menor risco para os investidores através de garantias e seguros e, ao mesmo tempo, recorrer a fundos filantrópicos para o meio ambiente, que se sabe que chegam a bilhões de dólares provenientes de doadores privados. Isso para mencionar apenas alguns dos interesses daqueles que pretendem lucrar com a crise da perda de biodiversidade e não parecem verdadeiramente preocupados em enfrentar as causas dessa crise.
A mesma lógica está agora sendo aplicada à reunião da COP16. Então, por que a ideia do déficit de financiamento tem apoio tão generalizado?
André Standing: Eu acho que expor os defeitos da ideia do déficit de financiamento de 700 bilhões levanta uma série de questões difíceis. É claro que muitas organizações que trabalham com a conservação buscam mais dinheiro, e essas enormes cifras do déficit são visivelmente úteis. Também é verdade que os países do Norte têm uma dívida ecológica com os do Sul, e eu acho que algumas organizações interpretam mal essas cifras como sendo uma espécie de objetivo de reparação dessa dívida.
Mas eu acho que nós precisamos refletir mais seriamente sobre o papel do dinheiro na conservação e, em particular, sobre as ameaças de rumarmos a um modelo de pagamento da conservação através de financiamento privado. A questão central do relatório Financiar a natureza é como a sociedade gere os recursos compartilhados. A forma como o dinheiro é gerado e distribuído é de vital importância, mas a ideia de que sistemas sustentáveis e equitativos de gestão de recursos dependem de enormes quantidades de investimento externo parece equivocada e contradiz muito do que defendem os movimentos sociais no Sul, como reviver e cuidar dos bens comuns e avançar rumo à soberania alimentar.
Como você disse, a via do financiamento privado aumentará o fluxo de dinheiro aos países do Sul, mas grande parte dele assumirá a forma de dívida. Esse dinheiro terá que ser reembolsado. Portanto, se a lacuna de financiamento for fechada, acabará representando uma enorme transferência de riqueza do Sul para o Norte. Provavelmente também envolverá uma continuação da transferência de controle sobre o uso dos recursos naturais a organizações mais bem posicionadas para acessar o capital financeiro. Eu acho óbvio que o déficit de financiamento de 700 bilhões de dólares não deva ser associado ao pagamento de uma dívida ecológica.
Ao denunciar a meta de 700 bilhões de dólares como um absurdo perigoso, não devemos ignorar que existem necessidades genuínas de redistribuição do dinheiro, incluindo o apoio a entidades governamentais e organizações da sociedade civil ou comunitárias com poucos recursos. Mas a questão que deveria ser o foco da COP16 é como esse dinheiro pode ser gerado de forma sustentável, equitativa e justa, ao mesmo tempo que se complementa um sistema que não esteja casado com um crescimento econômico sem fim. Infelizmente, graças a relatórios como Financiar a natureza, parece que estamos caminhando na direção errada.
Acción Ecológica: Como você explica bem, o documento Financiar a natureza teve um impacto profundo nos debates globais sobre a conservação da biodiversidade e é usado para um dos quatro objetivos do Marco Global para a Biodiversidade de Kunming-Montreal. Isso está se vendo nas negociações sobre biodiversidade da COP16. Em Cali, aprofunda-se a ideia de que precificar e financeirizar a natureza pode servir para salvar o planeta.
Não devemos nos esquecer de que a proposta de “fechar as lacunas de financiamento” não surge com a questão do financiamento do clima ou da biodiversidade. Essa tem sido uma obsessão dos capitalistas há séculos. Ela já aconteceu, por exemplo, para acelerar a saída de mercadorias e a necessidade de ferrovias ou estradas, de subsídios estatais ou sobretudo para enfrentar a resistência – a resistência da natureza e a resistência dos povos.
O foco no aumento do financiamento relacionado às mudanças climáticas ou à biodiversidade é uma distração em relação aos debates urgentes sobre as causas profundas da perda de biodiversidade ou do aquecimento global, tais como a necessidade de deixar o petróleo e o gás no solo, de produzir e transportar menos produtos industriais e de o Norte global consumir menos e respeitar os direitos coletivos das pessoas e da natureza.
(1) Décima-sexta reunião da Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP16)
(2) Decisão adotada pela Conferência das Partes na Convenção sobre Diversidade Biológica, dezembro de 2022
(3) O relatório Financiar a natureza completo está disponível aqui.
(4) Governo do Reino Unido. TEEB.
Resumo em inglês.
(5) A economía de los ecosistemas y la biodiversidad, Comunidades Europeas, 2008
(6) CFFA, Why the $700 billion funding gap for biodiversity is dangerous nonsense: Implications for the oceans and small-scale fisheries, outubro de 2024
(7) Veja UNCTAD (2023) “SDG investment is growing, but too slowly: The investment gap is now $4 trillion, up from $2.5 in 2015”, disponível aqui.
(8) Cúpula sobre financiamento para a biodiversidade, Rumo à COP16, 20 de setembro de 2024