A concentração ou usurpação de terras se caracteriza pela aquisição de amplas áreas em países da África, da América Latina e da Ásia, para uma série de usos diferentes, incluindo plantações de monoculturas em larga escala, mineração, turismo, usinas hidrelétricas e produção de alimentos para exportação, entre outros, por empresas, fundos de investimento e mercados financeiros em geral (ver o Boletim 177 do WRM). Esse processo tem amplas implicações para as comunidades e suas florestas, seus meios de subsistência, conhecimentos tradicionais e, na verdade, para seu presente e seu futuro.
Um dos impactos diretos do assalto das grandes empresas à vida e a natureza é o preço pago em mortes de pessoas que estão resistindo a ele. Um novo relatório da Global Witness aponta a intensificação da violência contra ativistas da luta pela terra, pelas florestas e contra a mineração em todo o mundo. Foi publicado recentemente o importante relatório “A Hidden Crisis? Increase in killings as tensions rise over land and forests” (Uma crise oculta? O aumento dos assassinatos diante do crescimento das tensões relacionadas à terra e às florestas), que destaca a crescente violência e as violações de direitos humanos que acompanham a disputa cada vez maior por esses recursos.
A seguir, um trecho editado do relatório, disponível emhttp://www.globalwitness.org/sites/default/files/library/A_hidden_crisis-FINAL%20190612%20v2.pdf
A Global Witness contou o número de pessoas mortas durante a última década (de 2002 até 2011) defendendo seus direitos humanos ou os direitos humanos de outras, relacionados ao meio ambiente, especificamente a terras e florestas. Entre esses direitos, estão: desfrutar de um ambiente saudável, bem como os direitos dos povos indígenas a suas terras e seus recursos, incluindo florestas, o direito à vida, à subsistência e à liberdade de expressão.
Em todo o mundo, a pesquisa da Global Witness encontrou 711 pessoas cujo assassinato foi relatado na última década – uma média de mais de uma morte por semana. Destas, 106 foram mortas em 2011 – quase o dobro da cifra de 2009. Esse número inclui os mortos em ataques planejados e em confrontos violentos, como resultado de protestos, investigações ou queixas contra operações de mineração, exploração de madeira, agricultura intensiva, incluindo pecuária, plantações de árvores, barragens hidrelétricas, urbanização e caça ilegal.
Os assassinatos assumiram diversas formas, incluindo confrontos entre comunidades e forças de segurança do Estado, desaparecimentos seguidos de mortes confirmadas, mortes sob custódia ou assassinatos planejados, sejam isolados ou múltiplos.
O relatório mostra que há uma alarmante falta de informações sistematizadas sobre os assassinatos em muitos países e nenhum acompanhamento especializado em nível internacional. Portanto, é provável que esses números subestimem grosseiramente o número e a extensão das mortes. A investigação também revela que os países onde há mais relatos de assassinatos são Brasil, Peru, Colômbia e Filipinas. Nesses e em outros países (por exemplo, Camboja, República Democrática do Congo e Indonésia) há preocupações permanentes com o envolvimento do setor privado nacional e estrangeiro nesses assassinatos.
A pesquisa não encontrou grandes quantidades de assassinatos na África. A interpretação é de que a causa disso pode ser uma menor consciência dos direitos e menos informações sobre atividades em áreas rurais do continente. Também é provável que seja devido a fatores como níveis elevados de propriedade estatal de terras e florestas. Por exemplo, na África, a área de floresta administrada por governos é de 98% do total, comparados com 66% na Ásia e 33% na América Latina. O relatório da Global Witness concluiu que a predominância da propriedade estatal de terras e florestas na África pode ter contribuído para desempoderar os pobres, populações rurais que, por isso, têm menos propensão a ir em busca de suas reivindicações. Outra tendência identificada é que uma cultura de impunidade, especialmente forte em muitos países, contribui para os baixos níveis de condenações.
Estas tendências são sintomas da disputa cada vez mais acirrada por recursos e da brutalidade e da injustiça que a acompanham. A pressão sobre os recursos finitos de terras e florestas já cobrou seu preço: apenas 20% das florestas originais do mundo permanecem intactos e 25% da terra vêm se degradando cada vez mais nos últimos 20 anos. Mesmo assim, a previsão é de que aumente a demanda global por terras e florestas (para alimentos, combustíveis, fibras e outros recursos), fazendo com que as fronteiras de investimento avancem sobre áreas com gestão, direitos de posse e estado de direito inadequados. À medida que essa competição se intensifica, são as locais populações e os ativistas rurais que se encontram na linha de fogo.
Em nível global, é sabido que a principal força motriz da demanda por terra é o agronegócio, e a demanda global está aumentando exponencialmente, com o Banco Mundial informando que os investimentos globais de grande escala em terras agrícolas quadruplicaram entre 2001 e 2009. A África recebeu a maior parte desse investimento (62% de projetos que abrangem um total de 56,2 milhões de hectares), seguida por 17,1 milhões de hectares na Ásia e 7 milhões de hectares na América Latina.
Do Camboja ao Peru, as comunidades rurais enfrentam intimidação, violência, despejos forçados e assassinatos em nível mais extremo. Há muitos acordos sigilosos entre representantes de governos, elites e o setor privado, enquanto as comunidades locais que vivem diretamente da terra ou da floresta e, muitas vezes, são suas verdadeiras donas, não têm quaisquer direitos nem voz ativa no tema. Muitas vezes, essas comunidades têm pouco ou nada a ganhar com o investimento.
Relatos de assassinatos realizados por homens fardados, agindo em nome dos interesses do setor privado e/ou de governos, são mais comuns no Brasil, no Camboja, na Colômbia, na Indonésia, no Peru e nas Filipinas. Neste último país, onde o “desaparecimento involuntário” só recentemente se tornou crime, ocorreram 50 mortes na última década, mas nem um único caso gerou acusação.
O professor Bill Kovarik, da Universidade de Radford, que realizou pesquisa sobre assassinatos na Ásia e na América Latina, comentou: “Não há dúvida de que estamos assistindo a um aumento estatisticamente significativo no número de assassinatos relacionados ao meio ambiente que são relatados nos meios de comunicação locais da Ásia e da América Latina. É difícil saber se isso se deve a um aumento nos assassinatos ou se ficou mais difícil ignorar essas coisas. Só pode descobrir isso com mais pesquisa. Mas, de qualquer forma, somos obrigados a considerar essas violações dos direitos humanos como parte de um padrão emergente e, agora, visível.”
O relatório apresenta descrições mais detalhadas sobre os assassinatos de Chut Wutty, no Camboja, Frédéric Moloma Tuka, na República Democrática do Congo, Nísio Gomes, no Brasil, e Eliezer “Boy” Billanes, nas Filipinas. Um artigo no The Guardian (http://www.guardian.co.uk/environment/2012/jun/19/environment-activist-deaths) conta a história de José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, assassinados por sua luta contra as atividades de exploração madeireira e agronegócio no Brasil.
Todos eles já não são simples números; eles se tornaram os rostos dos muitos líderes comunitários, povos indígenas e ativistas que serão lembrados não apenas por suas mortes, mas também e, principalmente, por suas vidas.
(Foto: Global Witness)