Somos considerados a periferia da periferia
Antes de entrarmos no debate acerca das profundas mudanças que estão ocorrendo na Amazônia nos últimos anos, principalmente após a retomada dos grandes projetos públicos e privados de infraestrutura logística (rodovias, portos, aeroportos, sistemas de comunicação, hidrovias, ferrovias, hidrelétricas, gasodutos, oleodutos e outros) é interessante levantarmos uma questão relevante sobre a região, mas nem sempre refletida: a Amazônia é periferia em todos os países onde se encontra. Se olharmos atentamente o mapa veremos que na Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname, Guiana Francesa e Brasil a Amazônia é a periferia da periferia. Nela não se encontra a capital de nenhum dos países citados, bem como da colônia francesa. É normalmente a área mais bem conservada, porém é também a mais carente de políticas públicas que beneficiem a população. É considerado um território despovoado, atrasado economicamente, carente de empreendedores e que, por isso mesmo, deve ser ocupado, conquistado, dominado, controlado e integrado à globalização capitalista a fim de que os recursos naturais nela existentes sejam explorados e exportados, beneficiando fundamentalmente grandes grupos políticos e econômicos do Brasil e do exterior.
Se o Brasil é definido por muitos como a periferia capitalista, o que dizer da Amazônia? De acordo com a ótica dos dominadores à Amazônia não resta alternativa a não ser permanecer enquanto a periferia da periferia para onde são deslocadas as atividades econômicas intensivas na utilização de recursos naturais (terra, água, floresta, solo e subsolo), que promovem a degradação ambiental (mineração, agropecuária, produção de energia e exploração madeireira, entre outras), voltadas essencialmente à exportação, altamente subsidiadas pelo governo brasileiro (isenções fiscais e tributárias) e financiadas a juros baixíssimos. As indústrias poluidoras que não interessam ao Japão, Europa e Estados Unidos estão se transferindo para cá, como também aquelas que requerem grande quantidade de energia para a produção de mercadorias – as empresas de alumínio, por exemplo; ou ainda que exigem volume expressivo de água – como a produção de dendê, soja e a extração mineral –, ou outras cujos recursos naturais estão se esgotando nas áreas onde atuam – as madeireiras asiáticas.
A disputa pelos territórios e seus recursos
Os grandes projetos de infraestrutura na Amazônia atendem a diferentes objetivos. Em primeiro lugar, rodovias, hidrelétricas portos e outros empreendimentos visam garantir a poderosos grupos econômicos nacionais e estrangeiros o acesso, uso e controle de vastas extensões territoriais e dos recursos naturais neles existentes. A infraestrutura que está sendo instalada na região vem para permitir o saque generalizado. Ocorre, porém, que esses territórios não são vazios demográficos. Neles há diversos povos indígenas, ribeirinhos, extrativistas, remanescentes de quilombos e outros. Portanto, são territórios ocupados, em alguns casos ancestralmente ocupados, cujos habitantes mantêm relações com a natureza qualitativamente distintas das nossas, pois não veem a natureza como mera mercadoria. Ao abrir essas áreas à exploração predatória a fim de atender as demandas externas, governos, empresas e aliados estão na verdade disseminando o conflito na Amazônia, pois as comunidades tradicionais, camponeses e povos indígenas não permitirão que suas áreas sejam destruídas sem reagir de alguma forma.
Em segundo lugar, ao Brasil interessa a integração da infraestrutura sul-americana pois ela barateará a exportação de soja, minério, madeira, carne e outros produtos aos mercados dos diferentes continentes. Além disso, esse processo tem permitido às empresas brasileiras entrar e controlar os mercados dos países vizinhos, contando para isso com o total apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), de outras instituições financeiras públicas e privadas, dos diferentes ministérios, do parlamento etc. Isto sem falar na intenção dos segmentos sociais que controlam o Estado de tornar o Brasil a potência hegemônica na América do Sul.
Em terceiro lugar, os projetos de infraestrutura são importantes para os três países que disputam atualmente a hegemonia na América do Sul, em particular na Pan-Amazônia: Brasil, China e Estados Unidos. A todos eles interessa que os empreendimentos previstos sejam efetivamente executados. A China, por exemplo, precisa de grande quantidade de minério e de produtos alimentícios e a Amazônia se tornou um de seus principais fornecedores. Além da questão econômica os Estados Unidos querem consolidar sua presença militar nesta parcela do continente americano. Nesse sentido, a Colômbia permanece como a maior “cabeça de ponte” dos interesses estadunidenses na nossa região. Se de um lado a conexão territorial a partir dos projetos de infraestrutura agrada aos estados e empresas transnacionais do Brasil, China e Estados Unidos, por outro, tende a acirrar os conflitos entre os três, pois suas perspectivas geopolíticas e estratégicas se confrontam em diversos pontos. Como esses conflitos se desdobrarão? Eis a questão!
Em quarto lugar, os movimentos sociais, ONGs, pastorais e outros segmentos sociais que se opõem a essa lógica de desenvolvimento econômico fundado na exploração intensiva e extensiva dos recursos naturais amazônicos não lutam contra uma ou outra empresa, um ou outro governo: a luta é contra um bloco de poder profundamente articulado desde o plano local até o internacional. Esse bloco de poder agrega governos, empresas (ALCOA, VALE, Suez, Odebrecht, Camargo Corrêa), parlamentos, judiciário, oligopólios de comunicação (TVs, rádios, internet, agências de notícias, jornais, revistas etc.), bancos (Santander, Itaú, Bradesco, BNDES, Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Fundo Monetário Internacional (FMI) e outros mais), agências multilaterais – a Organização Mundial do Comércio (OMC), em especial –, entidades empresariais (1) e mesmo parcela dos movimentos sociais e ONGs. Todos eles estão associados para garantir o apoio da opinião pública à execução dos projetos de infraestrutura – que reconhecidamente impactam o meio ambiente, povos indígenas, comunidades tradicionais e populações urbanas de modo irreversível –; realizar as reformas nas leis que flexibilizem a legislação ambiental e outras mais a fim de facilitar o acesso das grandes empresas às terras indígenas e de remanescentes de quilombos, áreas de preservação (florestas nacionais, parques, reservas extrativistas etc.), definir as medidas mitigadoras e/ou compensatórias para viabilizar a retirada de milhares de pessoas das áreas que interessam ao grande capital. Além disso, não podemos nos esquecer das medidas voltadas a combater todos os setores que se contrapõem a essa estratégia das forças hegemônicas, como a criminalização de lideranças e de suas organizações, perseguição política, estrangulamento financeiro das entidades e mesmo o uso da violência física.
Em quinto lugar a execução dos grandes projetos de infraestrutura está associada à estratégia do bloco de poder citado acima de tornar todos os elementos da natureza em ativos ambientais. Ou seja, entramos numa fase do capitalismo em que a natureza está sendo precificada. Agora o debate se dá em torno de quanto vale a tonelada do carbono, o trabalho de polinização realizado pelas abelhas, a floresta em pé, as potencialidades dos rios gerarem energia, a capacidade das algas de capturar resíduos poluentes etc.
Em sexto lugar a construção de todos os empreendimentos de infraestrutura que interessam ao grande capital também contribui à manutenção dos mecanismos de dominação nas mãos daquele bloco de poder. Portos, aeroportos, rodovias, hidrelétricas e outros são utilizados para financiar campanhas eleitorais tanto de membros dos executivos quanto dos legislativos, por exemplo. Da mesma maneira, ao garantir o acesso, uso e controle de vastas extensões territoriais e dos recursos naturais neles existentes a poderosos grupos empresariais os projetos de infraestrutura contribuem para que o sistema capitalista encontre novos meios de se alimentar e se reproduzir indefinidamente.
Em sétimo lugar os grandes projetos de infraestrutura são justificados a partir de ideias-chave que exercem profunda influência no imaginário popular. Entre essas ideias podemos citar as noções de progresso e de desenvolvimento. O poder político e ideológico dessas ideias-chave é muito forte. Por conta disso, enfrentamos dificuldades para nos contrapor ao discurso dominante já que de alguma forma nos encontramos presos aos esquemas de pensamento hegemônicos na sociedade. Daí ser necessário nos abrirmos a outras possibilidades, como o debate sobre o BuenVivir lançado a partir das experiências dos povos indígenas andinos, ou ainda a reflexão crítica sobre o neoextrativismo (2). O fato é que precisamos romper as amarras que nos são impostas por ideias como progresso e desenvolvimento. Isto é tão importante quanto realizarmos manifestações para barrar a construção de uma hidrelétrica ou para não permitir a instalação de uma empresa de mineração.
Notas:
(1) Associação Brasileira de Alumínio (ABAL), Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (ABDIB), Associação Brasileira das Concessionárias de Energia Elétrica (ABCE), Confederação Nacional da Indústria (CNI), Conselho Empresarial Brasil-Estados Unidos, para citar apenas alguns exemplos.
(2) Em síntese, denominamos neoextrativismo ou neoextrativista o modelo de desenvolvimento fundado na exploração intensiva de recursos naturais (mineração, hidrocarburos e outras), controladas por grandes grupos econômicos nacionais e transnacionais e com capacidade de provocar profundos danos socioambientais.
Por Guilherme Carvalho (FASE Amazônia – Brasil)
Email: gcarvalho@fase-pa.org.br