Áreas Protegidas na Bacia do Congo: fracassando na proteção das pessoas e da biodiversidade

A criação de “áreas protegidas” em todo o mundo é baseada principalmente em uma filosofia originada nos Estados Unidos no final do século XIX, que deu origem a um movimento de estabelecimento de parques nacionais com o propósito de preservar áreas de beleza cênica e maravilhas naturais livres da intervenção humana. Essa visão norte-americana sobre “áreas selvagens” – que muitas vezes ignorou o papel fundamental dos povos indígenas na gestão da paisagem e que tem bases racistas – vem sendo aplicada em várias partes do mundo, muitas vezes com efeitos devastadores sobre as populações locais que vivem dentro das florestas. Apesar dessas realidades locais, a proteção da vida selvagem feita de cima para baixo, com “armas e guardas”, continua a ser a norma, na qual grandes áreas são reservadas e populações locais são proibidas de acessar e/ou usar os recursos naturais dos quais elas há muito dependem. O planejamento da conservação continua a ser dominado por cientistas naturais e ONGs internacionais de conservação, muitas vezes ignorando completamente histórias, conhecimentos, meios de subsistência locais, e direitos territoriais e de usufruto. Há inúmeros relatos vindos do mundo todo sobre abordagens intolerantes e coercitivas de gestores de parques com relação a povos indígenas que vivem dentro das áreas desses parques.

Áreas protegidas na Bacia do Congo

A região com status de Área Protegida na Bacia do Congo aumentou consideravelmente na última década e deve continuar aumentando, enquanto os governos se esforçam para cumprir as metas estabelecidas internacionalmente. O Gabão e a RDC, por exemplo, integraram essas metas às políticas nacionais e, em Camarões, na República Centro-Africana (CAR) e na República Democrática do Congo (RDC), a área de floresta tropical sob proteção já excede a meta internacional de 17%. No entanto, reservar essas enormes áreas para a conservação, na realidade, constitui uma ameaça direta aos territórios tradicionais de comunidades indígenas e outras dependentes das florestas e, portanto, também aos seus principais meios de subsistência.

Nenhum desses países reconhece efetivamente os direitos de propriedade sobre terras comunitárias (embora todos reconheçam algum tipo de direito de uso, mas o apliquem mal na prática). A propriedade da maioria das áreas protegidas na Bacia do Congo é formalmente do Estado, mesmo que sua gestão seja quase que inteiramente dependente das comunidades locais e suas práticas tradicionais. Designar espaços para a conservação implica efetivamente algum tipo de destituição para as pessoas que dependem dessas florestas, sendo que os mais comuns são deslocá-las ou simplesmente despejá-las, bem como impor restrições à subsistência e a atividades culturais.

Do ponto de vista político, a criação de áreas protegidas tem sido um instrumento de controle territorial que começou nos tempos coloniais, quando foram criadas áreas de caça para o benefício das elites. As populações locais foram expulsas ou o uso que podiam fazer dessas terras foi muito restringido. Essa tendência continuou com os governos nacionais após a independência, quando várias dessas áreas de caça foram reconhecidas oficialmente como áreas protegidas. Muitas delas são designadas atualmente como parques nacionais, impondo restrições em termos de acesso e uso de recursos, embora um número extremamente baixo seja de reservas comunitárias ou áreas de conservação indígenas e comunitárias.

Colonialismo, doadores e ONGs de conservação

As agências governamentais encarregadas de Áreas Protegidas dependem muito de doadores internacionais e grandes organizações de conservação para orientação estratégica e contribuições técnicas, para não falar de financiamento. Dois exemplos da RDC ilustram bem essa questão: primeiro, Virunga, o mais antigo parque nacional da África, que foi criado pelo rei da Bélgica em 1925, “em grande parte como resultado do lobby incansável de um biólogo norte-americano”, de acordo com o site oficial do parque; e segundo, a proposta do Parque Nacional Lomami, uma área que está atualmente em processo de classificação, também como resultado do lobby bem sucedido de cientistas norte-americanos. O exemplo recente do Lomami, que é semelhante à maneira como foi designada mais recentemente a maioria das áreas protegidas na região, mostra a continuidade dessa configuração básica: conservacionistas “ocidentais” com um papel extremamente influente na criação de Áreas Protegidas.

Embora os Estados Unidos e a União Europeia sejam os mais importantes doadores para a conservação na Bacia do Congo, há outros atores muito relevantes, incluindo a proposta do governo da Noruega para a Iniciativa Internacional Climática e Florestal (International Climate and Forest Initiative, NICFI), que está pressionando pela implementação de programas de REDD+ na região, os governos alemão e francês, bem como o Banco Mundial. As ONGs internacionais de conservação são importantes beneficiárias desses fundos (para além do financiamento que adquirem por outros meios, como o patrocínio individual e empresarial). O World Wildlife Fund (WWF) e a Wildlife Conservation Society (WCS) são, de longe, as duas organizações com presença mais forte na região, embora não sejam as únicas. Essas ONGs têm enorme controle sobre os fluxos de informação e conseguem influenciar estratégias de conservação nacionais e regionais mais amplas. Apesar das centenas de milhões de dólares norte-americanos destinados a projetos de conservação na região na última década, ainda há poucas evidências de conquistas tangíveis. As Áreas Protegidas não estão conseguindo atingir seus próprios objetivos de conservação, o que levanta questões sobre a sustentabilidade do atual modelo de conservação na região.

Governos nacionais e organizações não governamentais locais tiveram uma participação limitada na elaboração e na operação de projetos de conservação controlados por grandes ONGs conservacionistas estrangeiras. Assim, o envolvimento de comunidades locais tem sido ainda mais limitado. As comunidades locais em torno dessas áreas estão cientes de sua influência, e sua relação com esses agentes costuma ser caracterizada por desconfiança e conflito. De acordo com o testemunho de um indígena no sul de Camarões: O pessoal da “Dobi-dobi” [WWF] tem mais dinheiro do que qualquer um aqui. Eles trabalham com todos os grandões locais, os évolués [elites/ricos], indústrias extrativas, safáris e até com ministros em Yaoundé. E os brancos estão por trás deles, até o príncipe da Inglaterra (sic) e o Banco Mundial”.

Áreas protegidas e indústrias extrativas

O modelo de conservação coexiste com um modelo de desenvolvimento baseado na extração de recursos com impactos devastadores visíveis. Os programas de conservação muitas vezes têm sido concebidos explicitamente para não contestar essas atividades extrativas – extração de madeira, concessões para mineração e petróleo, e agroindústria, com extensões de floresta cada vez maiores sendo convertidas em plantações de dendê e seringueira.

O estudo “Protected Areas in the Congo Basin: Failing both people and biodiversity?”, publicado recentemente pela Rainforest Foundation do Reino Unido, mostra como mais da metade das 34 Áreas Protegidas examinadas na região tem concessões de mineração, cerca de metade têm concessões de petróleo, e uma reserva tem três concessões madeireiras dentro de seus limites.

As abordagens atuais mostram deficiências significativas no enfrentamento dos impactos diretos e indiretos de atividades extrativas nos limites de áreas protegidas. Por exemplo, os trabalhadores migrantes costumam ser identificados com o aumento significativo da pressão da caça e da pesca, e a construção de estradas, com o aumento da extração ilegal de madeira. Ainda assim, as ONGs internacionais mais importantes defendem publicamente suas parcerias com, por exemplo, empresas madeireiras e, em vez de enxergar isso como uma contradição (como reconhecem amplamente seus impactos), elas o retratam como um meio para alcançar seus próprios objetivos. WWF e WCS, por exemplo, estabeleceram “parcerias” com algumas das maiores empresas madeireiras na região.

Quais são os principais problemas que os povos e as comunidades que dependem da floresta enfrentam quando se criam Áreas Protegidas em seus territórios?

• As Áreas Protegidas ameaçam a subsistência e o bem-estar locais: Sem exceção, todas as comunidades onde houve pesquisa de campo para o estudo da Rainforest Foundation UK associam áreas protegidas com dificuldades crescentes. O menor acesso a alimentos (em casos graves, levando até à desnutrição) e a produtos florestais está afetando diretamente o bem-estar das populações locais. Em nenhum caso foi dada (ou relatada) indenização por deslocamentos ou perda de meios de subsistência.
• Os direitos humanos desrespeitados em iniciativas de conservação: Há uma enorme distância entre obrigações, princípios e compromissos de direitos humanos de governos nacionais, doadores e ONGs, e o que está acontecendo concretamente. Há negligência permanente e, em alguns casos, violação absoluta dos instrumentos que garantem os direitos das comunidades locais e indígenas a terras, meios de subsistência, participação e consulta.
• Os conflitos e as violações dos direitos humanos em torno de áreas protegidas são comuns: Comunidades em torno de diversas áreas protegidas em toda a região relatam o abuso e outras violações dos direitos humanos, principalmente nas mãos dos guardas florestais ou “ecoguardas”, além da influência de uma tendência global de militarização da região. Os abusos geralmente são associados ao combate agressivo à caça ilegal, em que as comunidades locais são visadas por caças, embora o impacto da caça de subsistência seja insignificante em comparação àquela que visa atender a centros urbanos domésticos ou mercados internacionais. As relações conflituosas com os ecoguardas não estão relacionadas apenas às restrições que eles impõem, mas a seu comportamento muitas vezes brutal para com as comunidades locais, incluindo tortura, punições cruéis, detenção arbitrária e confisco de propriedade, invasão, intimidação e estupro. Relatos de abuso, incluindo violência física e destruição de propriedades, também têm sido práticas comuns em relação aos despejos que ocorrem quando os parques são criados.
• Enquanto as comunidades locais enfrentam severas restrições à sua subsistência, indústrias extrativas são toleradas: Enquanto os representantes das ONGs conservacionistas tendem a perceber as populações locais como a maior ameaça imediata às Áreas Protegidas, grande indústrias extrativas, muito mais prejudiciais, são amplamente toleradas pelos governos nacionais.
• Os povos indígenas sofrem desproporcionalmente: Os povos indígenas parecem ter sido os que mais sofreram, provavelmente devido à sua dependência da caça e à extensão de seus territórios. Muitas vezes, as áreas habitadas por esses povos são justamente aquelas hoje entendidas pelos conservacionistas estrangeiros como as que têm maior “valor de biodiversidade”. Essa posição de vulnerabilidade significa que eles são também particularmente expostos aos impactos do modelo de conservação. A maioria dos casos de deslocamento encontrados para o estudo envolveu povos indígenas.
• A participação e a consulta às comunidades locais são quase inexistentes: Apenas em cerca de um terço das Áreas Protegidas analisadas no estudo as comunidades locais foram consultadas, e só um pequeno grupo foi envolvido nas decisões de gestão. Na maior parte, a abordagem tem sido predominantemente a de impor restrições rigorosas de cima para baixo, em termos de acesso e uso dos recursos florestais, sem integrar práticas de conservação ou conhecimentos tradicionais. Grandes projetos de REDD+ estão sendo planejados na República do Congo e na República Democrática do Congo, que cobrem pelo menos parcialmente o Parque Nacional Odzala-Kokoua e a reserva Tumba Lediima, respectivamente. No entanto, em ambos os casos, têm se levantado graves preocupações de que esses planos avançam sem qualquer coisa semelhante a consultas adequadas às comunidades locais, e ambos aparentemente contêm disposições que podem realmente acabar agravando a situação desses povos ainda mais.

Conclusões

Os esforços de conservação na Bacia do Congo, na sua maioria, estão fracassando na proteção das florestas e da biodiversidade, com graves impactos negativos sobre as populações locais, e estão, portanto, muito distantes do que poderia ser considerado justo ou sustentável. É necessária uma mudança fundamental na maneira pela qual a conservação é concebida e praticada na Bacia do Congo. Um envolvimento forte com os povos locais para garantir sua própria capacidade de conservar a natureza deve ser uma prioridade. As comunidades locais e indígenas da Bacia do Congo têm conhecimento ecológico detalhado e práticas tradicionais de conservação, e fortes ligações com a floresta tropical. As instituições de governança local devem ser reconhecidas como cruciais e os múltiplos laços que ligam essas instituições (isto é, os meios de vida, cultura, espiritualidade, identidade) aos seus ambientes devem ser alimentados, e não descartados.

Simon Counsell, simonc@rainforestuk.org e Aili Pyhälä, aili.pyhala@helsinki.fi
Rainforest Foundation UK, http://www.rainforestfoundationuk.org

Este artigo é baseado no relatório “Protected Areas in the Congo Basin: Failing both people and biodiversity?”, publicado pela Rainforest Foundation do Reino Unido, que apresenta um estudo de 34 áreas protegidas em Camarões, República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Gabão e República do Congo, avaliando seus impactos sobre as pessoas e a biodiversidade. Veja o relatório completo em: http://www.mappingforrights.org/files/37804-RFUK-World-Park-Online%20%281%29.pdf