As áreas rurais, historicamente, têm sido ocupadas de duas formas diferentes no Brasil. Uma delas é a forma empresarial, capitalista e colonialista, que não é uma forma nova, mas tem adquirido novo impulso e novos métodos recentemente. A outra forma de ocupação do espaço agrário, anterior ao modo de produção capitalista, tem sido a agricultura camponesa, que se baseia no modo de vida dos povos originários e populações tradicionais.
A empresa capitalista enxerga a propriedade da terra como um meio de produção para a reprodução e acumulação de capital, ou seja, tem sua centralidade no lucro, e por isso, desenvolve atividades produtivas que mais geram renda. Esse modelo tem sido fortemente amparado pelos Estados, através de programas públicos de compra da produção, seguros, garantia de preços, créditos, infraestrutura, etc. Para usufruir dessas políticas de Estado, às vezes, somente a propriedade da terra já garante lucros, ou seja, nem é necessário colocá-la para produzir.
Já na agricultura camponesa, os povos originários e comunidades tradicionais têm a centralidade da produção na reprodução social da comunidade. O trabalho é desenvolvido pelos próprios membros da família, buscando o máximo de diversidade possível de alimentos e desenvolvendo uma agricultura que se integra ao meio ambiente local. Nesse modelo de produção, que não tem apoio dos Estados, as comunidades vivem em condições precárias e não têm acesso a serviços básicos, enfrentando inúmeras dificuldades. Apesar disso, é esse modelo de produção que segue alimentando o mundo e representa hoje cerca de 3 bilhões de pessoas.
Até recentemente, os grandes grupos econômicos internacionais, as multinacionais e transnacionais buscavam estabelecer o controle das cadeias de produção através de insumos, como sementes, agrotóxicos, adubos, e pelo beneficiamento da produção e comercialização. Todo esse processo foi fortemente incentivado pelo aparato estatal, por meio das universidades, centros de pesquisa, empresas estatais de assistência técnica, subsídios, incentivos fiscais, etc, demonstrando que o Estado trabalha para esses grandes grupos econômicos. Porém, a saturação dos mercados de capitais nos países chamados “de centro” e a iminência de uma crise pelo caráter especulativo desses capitais têm levado a novos investimentos maciços no espaço agrário, sobretudo dos países chamados “periféricos”.
As empresas vêm comprar terras, investir na produção de commodities, acumular lucros e retornam o capital investido e os lucros gerados a seus países de origem. É um novo processo de colonização e pilhagem dos países do chamado Terceiro Mundo, mas o discurso usado pelas empresas é o de “produção sustentável”. Trata-se da última fronteira de avanço do modo de produção capitalista, pela economia verde e investimentos na produção de energia para os países industrializados através da biomassa, cana, eucalipto, soja, palma africana, etc.. O intuito é de acumular lucros ao continuar alimentar um padrão de consumo insustentável. O que espanta é que essas empresas são recebidas com alegria, entusiasmo pelo Estado, que, no caso do Brasil, faz até um segundo plano de continuidade do chamado Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, com uma previsão de investimentos de R$ 955 bilhões (cerca de US$ 530 bilhões), incluindo R$ 465 bilhões para produção de energia (são 104 projetos) e 104,5 bilhões de reais em transportes (3.157 km de ferrovias, portos e aeroportos), sendo investimentos voltados para melhorar a infraestrutura para a produção dessas empresas.
Ainda no bojo do aparato estatal a serviço desse modelo de produção e desenvolvimento, estão em marcha, no Congresso Nacional brasileiro, com a omissão e ou conivência do executivo, a reforma do código florestal, que tem como pano de fundo anistiar crimes ambientais e expandir a fronteira agrícola. Está também em processo acelerado a flexibilização das leis trabalhistas no campo enquanto o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) que determina a imediata desapropriação de fazendas que tenham trabalho escravo há 10 anos, não é votado no congresso.
Também avança no Congresso Nacional o PEC-215 que retira do executivo a atribuição de demarcar áreas de povos indígenas e comunidades quilombolas, uma população tradicional de raiz africana, passando esses atos ao legislativo. A aprovação significaria um enorme retrocesso para a demarcação das terras indígenas e quilombolas, considerando o caráter conservador do congresso onde a maioria dos parlamentares ou são latifundiários ou tem relação direta com eles. E por último, as comunidades quilombolas, com direitos territoriais asseguradas na Constituição, lutam contra uma ação no corte supremo do país que pretende anular o decreto de 4.887/2003, que regulamenta o processo de demarcação dos seus territórios.
A nova fase do processo de concentração de terras tem impactos diretos em toda a humanidade, mas as consequências desse processo sobre as camponesas e camponeses, comunidades tradicionais e povos originários são brutais, pois a expansão está se dando sobre seus territórios. O encarecimento do preço da terra impede, por um lado, que as famílias camponesas possam adquirir terras e, por outro lado, incentiva que elas vendam suas áreas, expulsando-as do campo, seja por obras de infraestrutura, seja pela expansão da empresa capitalista.
O crescimento da produção de commodities, de agrocombustíveis, de uso de agrotóxicos, ameaça gravemente a soberania alimentar e a saúde da população. Além disso, aplicam-se agrotóxicos em detrimento da produção de alimentos saudáveis, com agricultura de base agroecológica. E vale ressaltar que atualmente cerca de 1 bilhão de pessoas têm fome crônica, 800 milhões vivem em situação de insegurança alimentar e a cada 5 minutos morre uma criança por desnutrição. Quem irá produzir alimentos para todas essas pessoas se a empresa capitalista continuar avançando sobre as terras dos camponeses? O resultado lógico é a diminuição da produção de alimentos, resultando em aumento de preços e aumento da fome.
Outro grave risco que temos de uma agricultura de larga escala e especializada é a redução e concentração da alimentação humana em poucos produtos: “... na atualidade, das 50 mil plantas com utilidade como alimento mundialmente, se utilizam de forma importante 200, se comercializam 100, no entanto 80% dos alimentos provêm de 20 cultivos, e desses o trigo, o arroz, o milho e a soja representam mais de 85% do consumo de grãos; (Guterres, 2006)”. Quais as consequências dessa alimentação concentrada para a saúde humana?
E, por último, produções em larga escala em países tropicais, que têm alta diversidade, implicam disfunções no ambiente convertendo simples insetos em potentes pragas, criando fungos e bactérias que provocam doenças graves. A solução usada é o intenso uso de agrotóxicos que tem provocado desastres ambientais, contaminação dos alimentos e gerado uma série de doenças neurológicas, câncer, má formação de fetos, etc.
A sociedade precisa se posicionar antes que seja tarde. As comunidades rurais que são guardiãs da vida estão sendo ameaçadas, têm feito lutas de resistência, de enfretamento. Em cada ponto de avanço do capital há resistência, mas o enfrentamento a esse modelo de produção precisa adquirir caráter global. Essa é uma luta de todos, não é só das populações que vivem no campo. Contamos com todos e todas na luta e na construção de outro mundo possível.
Globalizemos a luta, globalizemos a esperança!!!
Por: Raul Krauser, Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), membro da Via Campesina Brasil
Guterres, Ivani, “Agroecologia militante: contribuições de Enio Guterres”, Ivani Guterres, 1. Ed – São Paulo: Expressão popular 2006.
Participa na ação contra a aprovação da PEC215, citado neste artigo, através da petição on-line http://www.peticaopublica.com.br/PeticaoVer.aspx?pi=P2012N22454 e outra petição on-line contra a revogação do decreto que regulamenta a demarcação das terras quilombolas, http://www.peticaopublica.com.br/?pi=P2012N23370