Há muito tempo, os limites entre o “legítimo” e o “criminoso” são tênues. Na verdade, é possível dizer que o empreendimento capitalista convencional só prospera porque suas formas específicas de pilhagem, roubo, fraude e trapaça foram abençoadas com a água benta da “legalidade”, enquanto outras formas, semelhantes em essência, foram consideradas “ilegais”.
A criminalidade costuma ser apresentada como o aspecto negativo da sociedade – um submundo povoado por aqueles que vivem para desrespeitar as regras. Como narrativa, apela claramente aos que têm interesse em que os setores dominantes sejam vistos como “acima de qualquer suspeita”, “legítimos” e “decentes”. Na realidade, porém, as linhas divisórias entre “os cidadãos de bem e a penitenciária” (como disse a revolucionária alemã Rosa Luxemburgo) (1) são, há muito tempo, tênues. Na verdade, é provável que o empreendimento capitalista convencional só prospere porque suas formas específicas de pilhagem, roubo, fraude e trapaça foram abençoadas com a água benta da “legalidade”, enquanto outras formas, semelhantes na essência, foram consideradas “ilegais”.
A corrupção é um bom exemplo.
Alguns tipos de corrupção foram criminalizados. Hoje em dia, o suborno de funcionários públicos é proibido em todos os lugares, mesmo em países como a Alemanha, onde, até vinte anos atrás, era legal subornar funcionários estrangeiros, mas não os alemães. Os subornos também não são mais dedutíveis de impostos na Bélgica, Dinamarca, França, Japão, Canadá, Luxemburgo, Holanda, Áustria, Suíça, Reino Unido e Estados Unidos – prática que também era legal até meados da década de 1990. Fraude, extorsão e lavagem de dinheiro são ilegais em todas as jurisdições, embora nem um único banco dos Estados Unidos tenha sido processado por crimes de lavagem de dinheiro.
Mas a corrupção não se resume a suborno, lavagem de dinheiro e fraude. Na verdade, o foco nesses crimes (que é vital para investigá-los e processá-los) esconde muitas práticas perfeitamente legais que o público em geral costuma considerar como corruptas. Os exemplos incluem acordos entre “amigos” que permitem que as empresas paguem impostos mínimos, clientelismo, “aceitação” da apropriação de terras praticada ainda na época colonial, mas sendo um pilar fundamental sobre a qual muitas das grandes empresas que atualmente operam nas florestas conseguiram construir seus impérios, uso de forças militares para “proteger” os investimentos privados enquanto violam as vidas e o sustento dos cidadãos, imunidades concedidas a empresas que, na prática, são “grandes demais para ser condenadas”, tolerância oficial a conflitos de interesse, exploração deliberada de brechas na legislação, por parte de advogados de empresas, para contornar regras e regulamentações, e privatização dos processos de formulação de políticas através de lobby com interesses específicos, e doações para políticos.
Observe o fluxo constante de dirigentes da indústria, ex-ministros e funcionários de governos que vão e vêm (de maneira bastante legal) pelas portas giratórias que separam a política dos negócios. Observe os comitês reguladores do sistema financeiro, compostos (de maneira bastante legal) pelos chefes dos próprios bancos que deveriam regular. Observe a formulação de políticas baseada no interesse próprio que, por meio de privatização, terceirização e parcerias público-privadas, transformou a prestação de serviços públicos em esquemas de enriquecimento rápido com garantia do Estado, que canalizam bilhões de dólares de dinheiro público para as mãos de investidores e financiadores do setor privado. Observe as instituições de desenvolvimento e os bancos do Norte global, que usam suas ajudas financeiras como elemento de pressão para que governos do Sul global estabeleçam as políticas neoliberais que beneficiarão as empresas dos países do Norte.
Muitas dessas práticas perfeitamente legais, mas, ainda assim, corruptas, são comuns nos governos e nas empresas; pior ainda, costumam passar por “boa governança”. Algumas podem até ser consideradas deveres do cargo, e muitas – a privatização, por exemplo – constituem missão declarada dos órgãos públicos. Essa normalização da corrupção não é nova, mas está difundida o suficiente para que Bruce Buchan, destacado estudioso da corrupção, chame a nossa era atual de “Época de Ouro da Corrupção”. (2)
Não é apenas o fato de a lei, para usar a metáfora do satirista anglo-irlandês do século XVIII, Jonathan Swift, ter sido criada como uma teia de aranha que apanha “pequenas moscas, mas deixa passar vespas e abelhas”, embora isso certamente seja verdade. Nem que a lei seja aplicada de forma desigual, embora isso também seja indubitavelmente verdadeiro, pois basta cometer alguma infração e a pessoa vai para a cadeia se for pobre e negro, mas nunca será presa se for banqueiro. A decadência é mais profunda: as próprias políticas e leis que oficialmente combatem a corrupção agora servem de escudo para os corruptos.
Considere a definição de corrupção empregada pelo Banco Mundial – “abuso de cargos públicos para obter ganhos privados” – que serviu de modelo para inúmeras leis e regulamentações “anticorrupção”. Essa definição considera a corrupção uma patologia exclusiva do setor público, enquanto exclui convenientemente a corrupção privada das sanções legais, e torna “incorrupta” (e legal) um conjunto de formas corruptas de transacionar com o poder – desde contribuições políticas recebidas de empresas até a influência que elas exercem por meio das muitas articulações de elites, que ligam conselhos corporativos a governos.
O foco no “ganho privado” individual obtido por “detentores de cargos” também oculta as formas institucionalizadas de corrupção que promovem os interesses de grupos ou classes sem recompensar direta ou indiretamente nenhum “detentor de cargo” em particular. Um funcionário que fica com uma parte de um contrato do setor público se enquadra na definição, mas isso não se aplica a um político que usa pagamentos ilegais de governos estrangeiros para financiar uma campanha eleitoral, sem obter ganho financeiro pessoal.
A fetichização da corrupção no setor público tem outras utilidades estratégicas. Ignorando convenientemente os conluios entre “público” e “privado” que tornam possível a maior parte da corrupção, ela define o “público” (interpretado como “o Estado” ou “burocracia inchada” ou “reguladores”) como uma mão que está sempre apertando, e o “privado” (interpretado como “o setor privado”) como sua vítima, contaminada apenas por ser forçada a pagar subornos para conseguir trabalhar (nenhuma menção ao papel do setor privado, principalmente ocidental e multinacional, na facilitação da lavagem do dinheiro da corrupção).
Assim sendo, as políticas anticorrupção podem ser, e são, prontamente recrutadas para a causa do desmantelamento do Estado, privatizando os ativos públicos e dando mais voz ao setor privado nas decisões, supostamente para proteger os interesses privados de gananciosos funcionários públicos em busca de lucros que, de outra forma, colocariam obstáculos burocráticos no caminho dos negócios. O resultado não é banir a corrupção, mas sim fazer com que certos interesses corruptos sejam considerados aceitáveis e normais na esfera dos processos de decisão dos governos.
Isso não deveria surpreender, pois, apesar da retórica que diz que “público” e “privado” são esferas separadas – e que assim devem permanecer – as interconexões entre as duas tornam essa separação impossível. Na verdade, uma separação completa, como aponta o estudioso Peter Bratsis, tornaria “impossível ... a política como a conhecemos”.
A questão é quem decide, e como, que tipo de mistura funciona ou não para o bem comum, e qual é o processo pelo qual a sociedade plural (com todos os seus diversos grupos – e não apenas o Banco) pode deliberar o que realmente constitui o bem comum. Mas é precisamente esse processo que foi corroído pela corrupção, para não falar do amplo leque de outras formas de opressão enraizadas em uma história de colonialismo, racismo e patriarcado que exclui muitos grupos sociais desses debates, pois o que permeia todas as formas de corrupção – do suborno às “portas giratórias” – é a disposição de controlar ou driblar as formas democráticas de deliberação.
Essa captura não é um efeito colateral indesejado do capitalismo; ela é fundamental para seu funcionamento. Na verdade, as interconexões entre a corrupção e o capital são tais que questionar a corrupção significa questionar o capitalismo moderno. Reconhecer isso e levar a sério suas implicações certamente será essencial se surgirem estratégias e alianças que permitam determinar os usos futuros da floresta por meio de políticas democráticas formuladas de baixo para cima, enraizadas no respeito pelos bens comuns, e não apenas no estreito interesse político ou no ganho financeiro.
Nick Hildyard
The Corner House, Reino Unido
(1) Rosa Luxemburg, The Russian Revolution, Capítulo 7, The Struggle Against Corruption
(2) Buchan, B. (2016) ‘Our Golden Age of Corruption’. Arena.
(3) Swift, J. (1707) A Tritical Essay upon the Faculties of the Mind.
(4) World Bank (1997) Helping Countries Combat Corruption: The Role of the World Bank. World Bank: Washington DC.