Os povos indígenas de Camarões não apenas veem suas terras ameaçadas, sob forte pressão de investidores estatais e empresariais, mas também enfrentam um sistema judicial discriminatório, que tende a culpabilizá-los e criminalizá-los.
Elemento fundamental do estado de direito, consagrado em textos internacionais, o acesso à justiça ocupa um lugar central no Estado moderno. Permite a gestão de conflitos entre os administrados e o Estado, e entre os próprios administrados, e se baseia no princípio de que toda pessoa tem direito a ter sua causa ouvida de maneira equitativa e pública, por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei. Sendo assim, entende-se o acesso à justiça como a garantia reconhecida de que um indivíduo possa recorrer a uma autoridade judicial ou outros recursos previstos em lei, com todas as garantias que o protegem (prazo razoável, direito a recurso, juiz independente e imparcial, etc.), caso se considere vítima de uma violação de seus direitos. Esse princípio é igualmente válido no que diz respeito à gestão de terras.
A terra ocupa um lugar central na estratégia de “desenvolvimento” de Camarões, sendo um dos pilares de seu surgimento. Assim, são muitos os investimentos em terras feitos por autoridades públicas ou de indivíduos em todo o país. Nesse contexto de forte pressão territorial, os conflitos pela terra são inevitáveis. O controle e o acesso a ela são causas de inúmeras disputas, e a solução desses conflitos é uma garantia importante para a estabilidade e a paz social. Nesse sentido, o Estado deve garantir a possibilidade de que os denunciantes tenham acesso, por meio de órgãos judiciais e administrativos imparciais e competentes, a meios rápidos, eficazes e acessíveis para solução de conflitos relacionados a direitos territoriais. (1) Embora a lei deva se basear no princípio da igualdade, os mecanismos de solução de conflitos em Camarões oferecem menos garantias aos povos indígenas cujos territórios são os mais demandados nesta corrida pelas terras.
De como as leis de terras em Camarões abriram caminho para que os povos indígenas desconheçam seus direitos territoriais
Todo litígio é baseado na perda ou na violação de um direito. No entanto, como demandantes, os povos indígenas de Camarões têm direitos muito precários sobre a terra. Seu modo de vida e, acima de tudo, sua ligação com a terra, não foram reconhecidos pela grande reforma agrária de 1974. Naqueles textos, o desenvolvimento foi estabelecido como prova fundamental da propriedade da terra, e o sistema de posse foi construído com base nos direitos individuais através de registro.
Portanto, as Portarias de 1974 resultaram em uma apropriação legal das terras onde vivem os povos indígenas, essencialmente por meio da negação de seus direitos consuetudinários à terra, já que a forma como eles usam os espaços não é aceita como prova de desenvolvimento. Essa reforma levou a uma série de despejos de povos indígenas que deram lugar a grandes investimentos (áreas protegidas, agronegócio, madeireiras, mineração, etc.). Os povos desalojados foram obrigados a se assentar nas terras dos grupos dominantes (bantus), onde vivem em situação de constante insegurança. Para se adaptar a essas novas condições, eles modificaram seu modo de vida com grande dificuldade, e os mais aventureiros se lançaram a atividades agrícolas, com maior ou menor sucesso. Sendo ocupantes ilegais, têm problemas constantes com seus vizinhos bantu, que não hesitam em se apropriar de suas roças e outros investimentos feitos nessas terras. Em princípio, essa dupla injustiça deveria ser resolvida por meio dos mecanismos territoriais de solução de conflitos.
Mecanismos discriminatórios para a solução de conflitos de terra
O direito a um tribunal é entendido como concreto e efetivo (2), mas não é o caso dos povos indígenas de Camarões. Na verdade, para esses povos, os mecanismos existentes são discriminatórios, tanto no seu procedimento quanto na composição do tribunal. O direito de todas as pessoas ao devido processo legal inclui, entre outras coisas, o direito de se encaminhar aos tribunais competentes de um país por qualquer ato que viole direitos fundamentais reconhecidos e garantidos por convenções internacionais, leis, regulamentações e costumes em vigor (3). Este artigo destaca a necessidade de se respeitar os direitos consuetudinários de qualquer pessoa à terra, perante os tribunais, desde que reconhecidos pelas convenções e costumes internacionais. No contexto camaronês, o fato de os mecanismos de recurso existentes não reconhecerem disputas que impliquem violações dos direitos consuetudinários constitui um obstáculo básico ao acesso à justiça. Na verdade, tanto esse direito de acesso à justiça quanto o reconhecimento e a proteção aos direitos territoriais consuetudinários (4) são obrigações internacionais do Estado, que deve tomar todas as medidas necessárias para implementá-los.
Além disso, o acesso equitativo à justiça exige que sejam respeitados certos princípios, como a igualdade perante o juiz e a língua em que o processo corre. Os tribunais responsáveis por resolver conflitos de terra devem ser imparciais para garantir que a justiça prevaleça. (5) Em Camarões, a composição de alguns órgãos responsáveis pela solução de conflitos territoriais gera suspeitas de parcialidade.
Assim, por exemplo, a comissão consultiva encarregada de resolver os conflitos relacionados às terras de domínio nacional (6) (terras não registradas) não oferece nenhuma garantia de imparcialidade aos povos indígenas. Ela é composta pelo subprefeito, representantes de determinadas administrações locais, além do chefe e dois notáveis da aldeia ou comunidade onde estiver localizada a terra em disputa. (7) A natureza dessa composição, portanto, não tranquiliza os demandantes indígenas. Na verdade, o modo de vida desses povos e a complexidade de seus costumes tornam problemática a exigência de representação. Na maioria das aldeias onde esses conflitos acontecem, as pessoas convocadas para a comissão não são chefes, muito menos notáveis. Dessa forma, esses povos são discriminados, pois é quase impossível para eles integrar a comissão consultiva.
A Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas especifica (8) que, em qualquer decisão judicial, os costumes, tradições, normas e sistemas jurídicos dos povos envolvidos e as normas internacionais de direitos humanos serão devidamente levados em consideração. No entanto, em relação à composição das comissões em Camarões, é difícil ver como o costume desses povos pode servir de base legal em uma organização cujos membros não a reconhecem.
Além do procedimento, que é complexo, a língua do processo também é crucial, pois todo demandante tem direito de ser assistido por um intérprete em todos os passos do processo. (9) As línguas usadas nos órgãos responsáveis pela solução dos conflitos territoriais são o inglês e o francês e, em alguns casos, a língua dominante na localidade onde o tribunal está localizado. Portanto, muitas vezes, os povos indígenas deixam de recorrer a essas organizações.
Um mau relacionamento com a justiça
Os povos indígenas têm um mau relacionamento com a administração e, em particular, com a justiça. As muitas violações que sofreram – tanto das autoridades administrativas quanto dos grupos dominantes – fizeram com que se sentissem intimidados para reivindicar seus direitos. Além disso, durante anos, algumas autoridades administrativas levaram a cabo detenções arbitrárias de membros desses povos, que nunca tinham razão diante dos bantu, considerados seus “donos”. Esses dois fatores criaram a ideia de que o tribunal é um caminho direto para a prisão.
Ao longo dos anos, os povos indígenas foram considerados como presumíveis culpados pois, sendo incapazes de provar sua inocência na maioria dos casos em que estavam envolvidos, eram sempre decladados culpados e mandados à prisão. Esse sentimento fez com que aumentassem entre eles o medo e a desconfiança perante as autoridades administrativas e judiciais e, acima de tudo, as forças da ordem (guarda e polícia). Isso facilita a impunidade de inúmeras violações dos direitos territoriais das comunidades indígenas, já que elas não são denunciadas.
A necessidade de uma reforma territorial includente
A perda de confiança no sistema judicial é resultado do desequilíbrio de poder entre os mais ricos e os mais pobres. O sistema tende a privilegiar investidores e outros operadores econômicos em detrimento das comunidades indígenas. A marginalização dos povos indígenas tende a ser um problema estrutural, que se deve principalmente à ausência de um arcabouço jurídico que os proteja, ao desconhecimento em relação a seus próprios direitos territoriais e à sua fraca representação nos círculos de decisão. Deve-se insistir no reconhecimento de seus direitos territoriais consuetudinários através de uma reforma includente. Direitos territoriais fortes e reconhecidos implicarão diretamente na modificação de mecanismos de resolução de conflitos territoriais. Esses mecanismos devem ser locais e levar em consideração os direitos dos povos indígenas, tanto em sua composição quanto em seus procedimentos.
NGONO OTONGO Martin Romuald
Jurista do Centro para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CED – Centre pour l’Environnement et le Développement); trabalha na proteção e na promoção dos direitos territoriais dos povos indígenas no âmbito do Projeto Landcam.
(1) Diretivas voluntárias para a governança responsável da posse de terra, da pesca e das florestas, no contexto da segurança alimentar nacional.
(2) Caso Airey c. Irlanda, Tribunal Europeu de Direitos Humanos (ECHR), Tribunal (Câmara), 9 de outubro de 1979, nº 6289/73.
(3) Artigo 7 da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.
(4) Existe uma interdependência entre o direito à terra e o exercício de outros direitos fundamentais, por exemplo, à administração, à saúde, a um ambiente saudável. Ver 1) Lorenzo Cotula et al, Le droit à l’alimentation et l’accès aux ressources naturelles : utilisation des arguments et des mécanismes des droits de l’homme pour améliorer l’accès aux ressources des populations rurales pauvres, FAO, 2009.
(5) Artigo 7 da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.
(6) Lei nº 19, de 26 de novembro de 1983, que altera o disposto no artigo 5º da Portaria nº 74-1, de 6 de julho de 1974, que estabelece o regime territorial.
(7) Artigo 12 do Decreto 76-166, de 27 de abril de 1976, que estabelece as modalidades de gestão do domínio nacional.
(8) Artigo 40.
(9) TEDH, Caso Luedicke, Belkacem e Koç, República Federal da Alemanha, nº 6210/73; 6877/75; 7132/75