República Democrática do Congo: os batwas e o retorno a suas terras ancestrais no Parque Nacional de Kahuzi Biega

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Aldeia Kakerekendje, Katasomwa no território Kalehe, RDC. Foto: CAMV - RD. Congo

Um grupo de ribeirinhos batwa, exasperados pela pobreza extrema que resultou de seu despejo para estabelecer o Parque Nacional de Kahuzi Biega, decidiu voltar às suas florestas ancestrais. Desde então, enfrentam regularmente os “ecoguardas”, às vezes com a perda de vidas humanas.

Mais de quatro décadas depois de serem expulsos de suas florestas ancestrais, no que hoje é o Parque Nacional de Kahuzi Biega (PNKB), um grupo de membros do povo batwa, exasperado pela pobreza extrema e pelas promessas não cumpridas do governo, decidiu voltar, apesar das restrições legais na República Democrática do Congo. Desde então, esses ribeirinhos autóctones têm enfrentado regularmente os “ecoguardas”, algumas vezes resultando na perda de vidas humanas.

A criação do Parque Nacional de Kahuzi Biega (PNKB), no leste da República Democrática do Congo (RDC), em 1971, deixou milhares de batwas em uma situação muito precária. Os batwas foram culturalmente destruídos pela perda de suas florestas, mas, mesmo assim, o parque foi declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco. A usurpação de suas terras ancestrais sem medidas compensatórias teve e continua tendo efeitos especialmente devastadores sobre as mulheres daquele povo, cujas principais tarefas são alimentar e cuidar de suas famílias. Desde então, elas perderam seus meios de subsistência e foram confinadas a condições de vida muito precárias, ficando expostas à exploração e à violência.

Às vezes, apesar das atuais restrições legais, essa pobreza extrema leva os ribeirinhos autóctones batwas a entrar no Parque para obter recursos vitais para sua subsistência, como mel ou plantas medicinais. Na prática, tem sido a Lei 14/003, de 11 de fevereiro de 2014, relativa à conservação da natureza, que fortaleceu o regime repressivo para garantir a proteção de espécies, ecossistemas e habitats naturais. O Artigo 10 estabelece que “(...) as espécies da fauna e da flora silvestres são protegidas em todas as fases de seu ciclo biológico”. Contudo, essa mesma lei permite certas exceções às medidas de conservação, principalmente no interesse da saúde e da segurança públicas, bem como da segurança alimentar das populações ribeirinhas em áreas protegidas. Infelizmente, essas exceções são difíceis de implementar, já que não há medidas que garantam isso.

Os despejos dentro do PNKB ocorreram ao longo de duas décadas: 1960 e 1970. Cerca de 6.000 batwas foram expulsos à força de suas terras ancestrais. Entre 1970 e 1985, esse povo foi expulso das colinas de Chatondo, Katasomwa, Munango, Kabona, Kakumbukumbu e Bukulula, espaços que estão em uma parte de elevada altitude do Parque Nacional de Kahuzi-Biega. Essas colinas estão localizadas entre os territórios de Kabare, Kalehe e Shabunda, na província de Sud-Kivu, no leste da RDC.

De acordo com o censo realizado em 2017 pelo Instituto Nacional de Estatística e pela associação sem fins lucrativos Centro de Acompanhamento de Autóctones Pigmeus e Minorias Vulneráveis ​​(Centre d’accompagnement des Autochtones pygmées et Minoritaires Vulnérables, CAMV) em Sud-Kivu, aproximadamente 9.608 autóctones batwas ocupam 101 aldeias na fronteira com a parte de altitude mais elevada do PNKB, precisamente nos territórios de Kabare e Kalehe, na província de Sud Kivu.

Em 2014, com o apoio da ONG Forest Peoples Programme, o CAMV iniciou um diálogo com o Instituto Congolês de Conservação da Natureza (ICCN), no âmbito do Mecanismo Whakatane. (1) Esse diálogo visava fazer com que o ICCN/PNKB reconhecesse a contribuição dos batwas para a conservação, e que eles não fossem considerados concorrentes da Área Protegida, e sim aliados na gestão sustentável do parque. O compromisso do CAMV visa conciliar os imperativos da conservação da biodiversidade com as necessidades das comunidades ribeirinhas batwas.

Entre 2014 e 2019, houve muitas outras tentativas de solução dos conflitos entre o PNKB e os batwas. (2) O Diálogo de Whakatane, em 2014, e o Diálogo Miti-Centre, em 2018, buscaram uma solução duradoura para o problema da falta de terras. Infelizmente, todas essas iniciativas ficaram sem efeito na ausência de uma comissão de monitoramento para a implementação eficaz das recomendações. Os autóctones batwas denunciam a indiferença do governo congolês às suas demandas. O maior doador do parque é o Banco de Desenvolvimento alemão KfW, que, só em 2016, forneceu cerca de 2 milhões de dólares. (3)

O regresso dos batwas ao PNKB

Contra todas as expectativas, em outubro de 2018, cerca de 40 famílias batwas da aldeia de Buhobera, no território de Kalehe, decidiram retornar ao PNKB e, aos poucos, muitos outros batwas de Kabare e Bunyakiri foram se juntando a elas. Eles usavam os bantos como mão de obra para produzir carvão e serrar tábuas. Na situação atual, dada a extrema pobreza dos batwas e sua eterna busca pela sobrevivência, esses abusos não surpreendem. “Voltar ao parque pode ter parecido uma oportunidade momentânea, que era preciso aproveitar ao máximo”, disse um líder autônomo twa, de Kabare.

Desde a ocupação do Parque Nacional de Kahuzi Biega pelos autóctones batwas, seus violentos – e, às vezes, mortais – conflitos com os guardas florestais aumentaram. Muitas medidas foram tomadas para acalmar essa crise. Em várias ocasiões, o PNKB tentou usar a força (incêndio de casas, uso de armas de fogo, prisões, ameaças) para dissuadi-los de permanecer no Parque, mas sem sucesso. Pelo contrário, essas tentativas de dissuasão, na maioria das vezes, levam a confrontos que costumam ser mortais.

Até o momento, houve cerca de 10 mortes e muitos feridos, tanto do lado dos batwas quanto dos guardas florestais. Alguns líderes batwas estão na prisão e outros tiveram a prisão decretada. Deve-se destacar o caso do chefe twa Kasula, da aldeia de Muyange, na agrupação de Miti em Sud-Kivu. Em 24 de fevereiro, ele e sete outros batwas, incluindo duas mulheres, foram condenados a penas severas, que variam entre um e 15 anos de prisão, além de multas. O tribunal militar da guarnição de Bukavu os condenou por porte ilegal de armas e por destruir a flora do Parque Nacional de Kahuzi Biega, seu território ancestral. Muitos observadores afirmaram que esse processo não foi justo: os juízes instruíram os oito casos e proferiram as sentenças em um único dia. Mais do que isso, como os batwas não puderam escolher seus advogados, o tribunal nomeou um defensor público, um dia antes do julgamento. Nessas condições, o advogado não teve tempo suficiente para preparar a defesa. (4)

Algumas organizações locais que acompanham os batwas também são acusadas de convencê-los a ficar permanentemente no parque, o que resultou em ameaças de forças de segurança.

É claro que, se esse retorno tivesse sido autorizado e planejado (regulamentado) de acordo com o resultado do diálogo para solucionar os conflitos de 2014 (que previa o estabelecimento de zonas-piloto dentro do parque, nas quais os batwas poderiam manejar a biodiversidade de maneira sustentável), teria sido possível garantir os direitos das comunidades e a proteção da biodiversidade.

Os frequentes enfrentamentos entre guardas florestais e os batwas, que aumentaram desde o retorno destes ao PNKB, representam dificuldades para todas as partes do conflito, em níveis nacional e internacional. É preciso tomar medidas urgentes para desencorajar aqueles que destroem esse patrimônio mundial que é o PNKB e, acima de tudo, para que não se repitam os casos de violência que testemunhamos atualmente. Também devem ser implementados mecanismos adequados e sustentáveis​​ para proteger e promover os direitos dos batwas, e também para proteger a biodiversidade da PNKB.

Pacifique Mukumba, mukumbapaci@yahoo.ca
Diretor executivo da associação sem fins lucrativos Centro de Acompanhamento dos Autóctones Pigmeus e Minorias Vulneráveis (CAMV - Centre d’Accompagnement des autochtones Pygmées et Minoritaires Vulnérables), RD. Congo
Doutorando da Universidade do Burundi, centro de pesquisa Sociedade, Poderes, Espaços e Meio Ambiente (Pouvoirs, Espaces et Environnement, SPEE)

(1) O objetivo do Mecanismo Whakatane é avaliar a situação em diferentes áreas protegidas do mundo e, onde houver povos afetados negativamente, propor e implementar soluções. Além disso, defende e apoia as alianças frutíferas entre povos e áreas protegidas.
(2) 2014: Recomendações do diálogo realizado em Sud-Kivu entre os pigmeus ribeirinhos do PNKB e o Parque Nacional de Kahuzi Biega, de 25 de setembro a 4 de outubro de 2014;
2018: Conclusões da reunião de intercâmbio realizada em Miti-centre (território de Kabare, na província de Sud-Kivu) em 2 de fevereiro de 2018, sobre as tensões intercomunitárias enfrentadas pelas comunidades Shi e Twa (pigmeus), bem como a administração do Parque Nacional de Kahuzi-Biega, no eixo Miti-Katana, no território de Kabare, província de Sud-Kivu;
2019: Declaração de Bukavu, resultante do diálogo de alto nível sobre o processo de proteção duradoura do Parque Nacional de Kahuzi-Biega e a coabitação pacífica entre o Parque, os povos autóctones e outras comunidades ribeirinhas.
(3) Conservation Watch, Fortress Conservation in Kahuzi-Biéga National Park: Evictions and extrajudicial killings, setembro de 2018
(4) FPP, The Kizula trial : punishment without justice, fevereiro de 2020; FPP, atualização: Batwa communities and Kahuzi-Biega National Park, fevereiro de 2020; Taz, Der Feind in Grun (apenas em alemão), março de 2020

Referências:
- Barume. A.K. (2003). En voie de disparition? Moreton-in-Marsh, Reino Unido, 143 p.
- Couillard.  V, Gilbert. J, Kenrick. J, Kidd. J. (2009). Les droits fonciers et les peuples des forêts d’Afrique. Perspectives historiques, juridiques et anthropologiques. Aperçu général: analyse et contexte. Programa para los Pueblos de los Bosques, Reino Unido.
- ERND. (2017).  L’expulsion des populations Pygmées du Parc National de Kahuzi-Biega: faits, conséquences et perspectives. Relatório do estudo.
- Nelson, J. & Hossack, L., Eds. (2003). From Principles to Practice: Indigenous Peoples and Protected Areas in Africa. Moreton-in-Marsh: Programa para los Pueblos de los Bosques
- Mecanismo de Whakatane (2018); em espanhol.