Um século de agrocolonialismo na República Democrática do Congo

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Trabalhadores de plantações segurando frutas de dendê. A foto foi tirada na colônia belga do Congo, provavelmente na década de 1930 ou 1940. Photo: Transnational Architecture Group

Muitas das plantações de dendezeiros agora pertencentes a grandes empresas multinacionais na África Ocidental e Central foram realizadas em terras roubadas de comunidades locais durante as ocupações coloniais. É o caso do que hoje é conhecido como República Democrática do Congo (RDC), onde a multinacional anglo-holandesa de alimentos Unilever começou a construir seu império de óleo de dendê. Hoje, essas plantações são palco de pobreza, conflito e violência permanentes. Não pode haver solução para esses problemas até que as terras sejam devolvidas às comunidades e que se faça justiça pelos danos sofridos.

Em 1911, o rei Leopoldo, da Bélgica, deu ao industrial britânico Lorde Leverhulme concessões sobre imensas áreas onde hoje é a RDC. Duas vezes a área da Bélgica, essas terras florestais estavam cheias de dendezeiros, que os habitantes locais cuidaram e desenvolveram ao longo de gerações, convertendo o que antes era uma savana em uma das florestas tropicais mais importantes do mundo.

Leverhulme queria uma fonte de óleo vegetal barato para a principal marca de detergente de sua empresa, Sunlight, e não foi o único a recorrer ao povo do Congo para isso. O óleo de dendê, que havia muito era uma parte importante dos sistemas alimentares na África Central, era cada vez mais interessante para os comerciantes europeus, principalmente os portugueses, que, na época, visitavam regularmente as comunidades ao longo do rio Congo para comprar dendê. A concorrência fazia com que os preços locais aumentassem, para desgosto de Leverhulme. (1)

As concessões não davam à empresa de Leverhulme, a Huileries du Congo Belge (HCB), direitos sobre os territórios das comunidades locais que vivem nessas áreas, e deveria haver um processo para demarcar as terras dentro das concessões. Mas Leverhulme estava impaciente e pressionou as autoridades belgas a lhe dar o monopólio sobre a compra de dendê na área – dentro dos famigerados “acordos tripartites” entre Leverhulme, a autoridade colonial belga e as comunidades locais que, na realidade, não tinham voz na questão. A partir de então, os moradores locais passaram a ser tratados como ladrões se ousassem fornecer o produto colhido em seus próprios dendezais a qualquer um que não fosse a empresa de Leverhulme – embora o preço de mercado geralmente fosse três a quatro vezes maior do que o pago por ela.

Em 1924, comerciantes portugueses que atuavam na área de Basoko, atual província de Tshopo, enviaram uma carta à autoridade colonial belga, condenando os acordos:

“Esse contrato celebrado no dia 5 de julho passado proíbe a compra de qualquer produto de dendê, seja o fruto, a amêndoa ou o óleo, da forma que for, na concessão dada a essa empresa [HCB]. E o que é ainda mais prejudicial aos nossos interesses, essa medida também abrange os produtos colhidos em terras ocupadas pelos nativos (...) Os nativos têm direitos estritamente definidos sobre campos e plantações, bem como sobre os produtos lá colhidos. Sendo assim, como eles podem ser forçados a entregar seus produtos de dendê a uma só empresa? Essa obrigação não os priva do benefício da concorrência? Quais representantes dos nativos poderiam ter celebrado, em seu próprio nome, um contrato que lhes traz apenas desvantagens? (2)

Leverhulme e os colonizadores belgas justificaram esse monopólio escandaloso com o argumento de que a empresa dele estava fazendo investimentos importantes na área ao construir fábricas de óleo de dendê, e proporcionando empregos, escolas, serviços de saúde e igrejas aos moradores. Eles também inventaram, sem qualquer base científica, um argumento de que os dendezais eram “naturais” e não, como era amplamente sabido entre moradores e forasteiros que passavam algum tempo na região, que eram fruto de gerações de cuidado e trabalho por parte das comunidades locais. Se os dendezais fossem “naturais”, o Estado (ou seja, a autoridade colonial belga) poderia alegar ter direitos de posse sobre eles e justificar mais facilmente a entrega do controle à empresa de Leverhulme.

Nenhum argumento tinha qualquer base. As escolas que a empresa instalou eram de baixa qualidade e, em grande parte, não frequentadas por crianças locais que, de qualquer forma, estavam ocupadas trabalhando para a empresa. Os serviços médicos também não estavam disponíveis aos moradores locais e, como admitiu um administrador colonial: “Mesmo nas circunstâncias mais favoráveis, ainda é discutível se os benefícios da medicina compensam todos os males que a exploração dos dendezais causa à população (...) o trabalho compulsório costuma ser pesado demais (...) O tempo dedicado à coleta e ao transporte dos frutos costuma ser excessivo, e a contribuição de mulheres e crianças geralmente exige esforços maiores do que a sua força física”. A taxa de mortalidade anual no entorno da Huileries du Congo Belge, de Leverhulme, era de 10%, um nível considerado “assassino”. (3)

Além disso, os empregos fornecidos pela empresa eram, na realidade, trabalho forçado. Em uma carta de 1925, um comissário distrital de Basoko escreveu ao governador da província, sobre a situação trabalhista nas empresas de Leverhulme:

“Por muitos anos, o recrutamento de trabalhadores para a HCB foi tão impopular entre os nativos que a pressão moral exercida pelos administradores territoriais tem pouco efeito (...) Todo o distrito de Aruwini é rico, e um trabalhador que colete produtos naturais da floresta (dendê, principalmente) pode ganhar a vida tranquilamente e obter recursos que não lhe estarão disponíveis através do trabalho na indústria ou no comércio (...) A única maneira de efetuar uma transição fácil entre o trabalho [forçado] e o trabalho assalariado livre seria pagar ao trabalhador um salário pelo menos igual ao que ele poderia ganhar sem sair de seu vilarejo nem mudar seus hábitos. A única empresa estabelecida no distrito [a HCB] oferece aos seus trabalhadores um salário que de forma alguma compensa seus sacrifícios.” (4)

No que diz respeito aos dendezais, quem passou um mínimo de tempo na região sabe que eles foram criados por mão de obra e pelos cuidados das comunidades locais. O agrônomo e missionário belga Hyacinthe Vanderyst, que passou anos estudando os dendezais do Congo, publicou um artigo na revista belga Congo em 1925, no qual escreveu:

“Todas as observações, as pesquisas e os estudos que eu mesmo realizei confirmam da maneira mais certa e absoluta o argumento defendido pelos nativos (...) Por outro lado, ninguém até agora tentou provar abertamente que os dendezais são formações naturais. Isso não passa de uma afirmação, totalmente desprovida de argumentos que a embasem (...) Os nativos dizem ser donos dos dendezais e, talvez, das matas secundárias, e isso por vários motivos: por terem sido os ocupantes originais do país em termos de assentamentos estáveis, caça, pesca e coleta de produtos naturais, por serem agricultores que abriram e exploraram as savanas, transformadas em florestas e depois em dendezais, por serem criadores de dendezais graças à sua ação direta e sua intervenção deliberada, que envolveu a introdução do dendê no país. (...) Por que razões o Estado nega esses fundamentos ou se recusa a levá-los em conta?”

A seguir, Vanderyst alertava seu público belga: “A questão dos dendezais, se não for resolvida de acordo com os costumes nativos, permanecerá aberta para sempre, devido à sua grande importância”. (5)

Leverhulme e as autoridades coloniais belgas ignoraram seu conselho. Alguns anos depois, os dois lados avançaram com planos para demarcar mais claramente as terras da HCB e cercar as populações locais em suas aldeias. Um diretor da HCB descreveu o arranjo em uma carta ao governador da Província de Equateur, em 1928, da seguinte forma:

“Eles [os nativos] serão proibidos de fazer com que suas aldeias e seus campos cultivados cresçam além dos limites definidos, e de coletar frutos de dendê em nossas terras sem sofrer as consequências. (...) não lhes permitiremos retirar dendê que cresça em nossas concessões, simplesmente para vendê-lo a outros comerciantes. E se praticarem atos de violência contra nossos trabalhadores ou contra nossos representantes europeus, como já ameaçaram fazer, invocaremos a proteção do Estado garantida pelo artigo 18 de nossa Convenção”. (6)

A “rebelião Pende”, de 1931, em referência ao Povo Pende que vivia no sudoeste do que hoje é a República Democrática do Congo, foi uma das maiores revoltas ocorridas durante a ocupação colonial belga. Começou no distrito de Kwango, predominantemente nos territórios de Kikwit e Kandale, áreas dominadas pelas plantações de óleo de dendê da HCB e de uma outra empresa chamada Compagnie de Kasaí. Uma das principais razões da rebelião, senão a principal, foi a política brutal da administração colonial na área, que, por falta de mão de obra para as atividades do dendê, enviou soldados às aldeias para recrutar trabalhadores usando a violência. A mortalidade foi extremamente elevada: de cada 20 trabalhadores recrutados para recolher dendê em Lusanga e arredores – o centro das plantações da HCB na região – dificilmente dez regressavam às suas aldeias. A crise econômica do início da década de 1930 reduziu ainda mais os salários dos trabalhadores e levou os colonizadores a aumentar os impostos, o que piorou a situação geral. Estima-se que 500 moradores das aldeias tenham sido mortos em confrontos com o exército colonial durante a rebelião e centenas morreram em campos onde foram presos em condições brutais. (7)

Da ocupação colonial ao capitalismo financeiro

A empresa de Leverhulme, que mais tarde se transformaria na gigante multinacional anglo-holandesa de alimentos Unilever, acabou convertendo grandes partes de suas concessões em plantações industriais de dendezeiros e parou de comprar frutos oriundos dos dendezais locais que ainda existiam. Ao longo de centenas de milhares de hectares em várias partes do Congo, a HCB implementou uma ocupação racista e violenta das terras comunitárias, de acordo com o plano descrito por seu diretor-geral em 1928. Para as comunidades afetadas, pouco mudou em termos de condições de trabalho, acesso a terras e florestas, ou qualidade dos serviços médicos, educacionais e de infraestrutura que a empresa deveria prestar em troca dessa ocupação imposta das terras das comunidades.

Infelizmente, as plantações e concessões da Unilever sobreviveram ao fim do domínio colonial belga sobre o Congo em 1960. As promessas vazias de “desenvolvimento” sob a ocupação colonial foram seguidas pelas mesmas promessas vazias na ditadura de Mobutu, no final dos anos 1960 (quando o novo governo da RDC assumiu uma participação minoritária na empresa e a rebatizou de Plantations et Huileries du Congo-PHC). Elas se repetiram quando a empresa canadense Feronia Inc comprou a PHC da Unilever, em 2009, com mais de 150 milhões de dólares de financiamento de bancos de “desenvolvimento” europeus e norte-americanos, e mais recentemente, quando as operações foram entregues a uma empresa de private equity sediada no paraíso fiscal das Ilhas Maurício – dessa vez, com patrocínio de fundos de doações a instituições acadêmicas, gigantes filantrópicos e fundos de pensão. (8)

Em cada um desses ciclos, proprietários e investidores da empresa recorriam a um conjunto de documentos fundiários manipulados para justificar sua ocupação de mais de 100 mil hectares de terras. Ao assumir a PHC entre 2014-2016, o consórcio de bancos de desenvolvimento europeus sabia que os frágeis documentos fundiários da empresa haviam expirado, e a pressionaram para que criasse um novo conjunto manipulado, fragmentando as concessões em centenas de terrenos, sem consultar as comunidades locais e sem sequer passar pelos órgãos decisórios competentes do governo. Os bancos de desenvolvimento, assim como os proprietários que vieram antes deles e que viriam depois, deram as justificativas de sempre para esse roubo de terras comunitárias: escolas, estradas, casas de saúde e bons empregos. Mas hoje, as comunidades e os trabalhadores dentro das concessões da PHC continuam desesperadamente despossuídos e, portanto, pobres, e os novos proprietários da empresa de private equity estão mais uma vez prometendo que, em breve, começarão a seguir as leis trabalhistas do país, que, em breve, começarão a pagar o salário mínimo e que, em breve, fornecerão escolas e serviços de saúde.

As comunidades estão cansadas dessas falsas promessas e querem retomar suas terras para produzir seu próprio óleo de dendê e outros produtos, como costumavam fazer há muitas gerações. Mas a violência mantém a empresa no controle. A PHC proibiu os moinhos artesanais de dendê dentro de suas concessões, e os moradores pegos com dendê são rotineiramente espancados, presos, torturados e até assassinados por seguranças e policiais da empresa, que os acusam de “roubar” dendê das discutíveis concessões. (9) Os que tentam melhorar sua situação enfrentam violência semelhante. No início de janeiro deste ano, a polícia chamada pela PHC abriu fogo contra trabalhadores que protestavam contra salários não pagos em seus escritórios em Boteka, ferindo gravemente dois deles. (10)

A resposta da empresa às demandas da comunidade por suas terras é sempre que, se ela sair, não haverá emprego para os habitantes locais, como se não tivesse havido economia antes de Leverhulme entrar em cena. A ex-proprietária canadense da PHC, a Feronia Inc, chegou a argumentar que não poderia devolver as partes ainda florestadas de suas concessões aos habitantes locais por causa do risco de desmatamento!

Esse arremedo de “desenvolvimento” deveria ter sido descartado há muito tempo. As terras que a PHC e suas antecessoras roubaram e têm ocupado por mais de um século são, como os belgas reconheceram, “ricas”, e a população local sabe, melhor do que ninguém, como cuidar e utilizar essas terras e florestas para seu próprio benefício. É hora de acabar com o modelo colonial de concessões e plantações e sua eterna promessa de “desenvolvimento”. Os legítimos interesses das comunidades só podem ser atendidos com a devolução imediata de suas terras. Enquanto isso, as agências estrangeiras que afirmam estar preocupadas com o “desenvolvimento” devem mudar seu foco para responsabilizar a Unilever e outros aproveitadores estrangeiros por esse século passado de violações trabalhistas, apropriação de terras e outros abusos, e impedir que empresas e investidores de seus países cometam mais abusos.

GRAIN

www.grain.org


(1) As informações que constam deste artigo sobre a exploração colonial de Leverhulme no Congo são derivadas do ótimo livro de Jules Marchal, Lord Leverhulme’s Ghosts, Verso Books, 2008.
(2) Marchal, p. 54
(3) Marchal, p. 60 e p. 89.
(4) Marchal, p. 71
(5) Marchal, p. 58
(6) Marchal, p. 109
(7) Wostyn, W. 2008.  De Opstand in de Districten Lac Léopold II en Sankuru (1931-1932). Een vergelijkende analyse met de Pende opstand (1931).
(8) Veja RIAO-RDC, FIAN Bélgica, Entraide et Fraternité, CCFD-Terre Solidaire, FIAN Alemanha, urgewald, Milieudefensie, The Corner House, Global Justice Now!, World Rainforest Movement e GRAIN, “Development Finance as Agro-Colonialism: European Development Bank funding of Feronia-PHC oil palm plantations in the DR Congo”, janeiro de 2021; Oakland Institute, “Meet the Investors Behind the PHC Oil Palm Plantations in DRC”, fevereiro de 2022.
(9) Vários relatórios e artigos detalhando esses abusos podem ser encontrados no site farmlandgrab.org. Veja aqui.
(10) RIAO-RDC, “Policiers et militaires tirent à balles réelles sur des ouvriers de PHC en grève à la plantation de Boteka,” janeiro de 2022.