Salvaguardar é um termo cujo significado depende de quem usa e do contexto. Pode resultar em uma ação positiva em termos de direitos ou do meio ambiente, ou simplesmente em uma mera retórica para não perder investimentos e lucros. Hoje em dia, fala-se muito em todo o mundo sobre as salvaguardas para a implementação do chamado REDD+ ou “Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação ambiental, conservação, gestão florestal sustentável e aumento de reservas florestais de carbono” (1).
As salvaguardas têm origem na economia. Com o nascimento da Organização Mundial do Comércio, em 1995, já se falava em salvaguardas comerciais. A ideia era proteger ou cuidar dos interesses nacionais frente aos problemas suscitados pelos intercâmbios comerciais. Contudo, gerou-se uma infinidade de controvérsias, declarando-se a totalidade das salvaguardas como ilegal. Isso demonstra que, quando os interesses mercantis são contrapostos a qualquer outro, os primeiros sempre vencem. Com esse antecedente, não poderíamos esperar outra coisa das salvaguardas, no caso do REDD+.
O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial (BM) também estabeleceram suas próprias salvaguardas e padrões sociais e ambientais para seus projetos. No entanto, sabemos que, em lugar de proteger os povos ou a natureza, o que buscam é a proteção de seus projetos ou dos “ativos dos recursos naturais envolvidos na execução de um projeto” (1). Na verdade, o BM se encontra em um processo de revisão de suas políticas de salvaguardas e padrões, para pior, pois busca inclusive uma maior flexibilização dos “requisitos” ambientais e sociais para seus projetos. Isso tem graves consequências, pois o BM influi e orienta as normas de muitas instâncias públicas e privadas, internacionais e nacionais, com relação a políticas socioambientais. Esta revisão não é fortuita, e se dá no marco do novo cenário internacional da aplicação do mecanismo de REDD+.
As sete salvaguardas para o REDD+ apareceram nos documentos das negociações da ONU sobre o clima em 2010 (2): complementaridade e compatibilidade com os sistemas florestais nacionais e de conservação de florestas naturais, transparência e eficácia, participação, respeito ao conhecimento e respeito a povos indígenas, e outras duas “salvaguardas” claramente mercantis diante da reversão e do deslocamento das emissões.
As salvaguardas nos projetos de REDD+ aparecem como um mero requisito, quase em forma dechecklist – não para respeitar os direitos das populações locais, mas sim como uma maneira de tentar que, com um investimento mínimo, possam ser evitados conflitos sociais, enquanto se garante que o mercado de carbono funcione. As salvaguardas estariam, na verdade, buscando a efetiva implementação do REDD+, minimizando – sem evitar – os riscos socioambientais inerentes às atividades de REDD (3).
Como em todo processo dessa natureza, para avaliar as salvaguardas em nível nacional, o programa de REDD+ da ONU (ONU-REDD) abriu falsos processos para a participação dos diferentes atores envolvidos e de consultas para chegar a um “consenso” sobre quais deveriam ser as salvaguardas para o sucesso do REDD+ (4). E, como se fosse pouco, além das salvaguardas, existe uma série de ferramentas, “diretrizes”, “princípios”, sistemas de “participação”, “atribuição justa de valores” e outros, que, com seus próprios jargões, encobrem meros interesses mercantis.
A inclusão dos povos indígenas nessas salvaguardas é evidente porque eles são os proprietários da maior parte das últimas florestas naturais que ainda existem no mundo. Não tardaram em incluir às mulheres como componentes dos programas nacionais de REDD+. Essa decisão faz parte do apaziguamento social diante dos crescentes conflitos e da rejeição – sobretudo por parte das mulheres das comunidades – aos projetos e políticas públicas de corte extrativista e de outra índole. Para dourar a pílula do desenvolvimento, povos indígenas e mulheres foram incorporados como “componentes” de qualquer projeto de investimento, incluindo o REDD+.
Nenhuma “salvaguarda” libertará as mulheres
Como parte do processo ONU-REDD, o conceito de igualdade de gênero foi integrado para tornar o “REDD+ mais eficiente, efetivo e sustentável” (5). Sobre isso, já surgiram várias críticas, como a apontada pela Aliança Global de Povos Indígenas e comunidades locais sobre mudança climática e frente ao REDD+, que diz que “está claro que o REDD+ constitui uma nova forma de violência contra as mulheres, porque limita ou proíbe o acesso delas à terra onde cultivam, colhem alimentos ou obtêm água para suas famílias” (6), atividades que estão 90% nas mãos das mulheres nas comunidades rurais do mundo. Além disso, as mulheres possuem menos, herdam menos e, em general, têm menos acesso aos bens da comunidade.
Também se deve acrescentar que, sob mecanismos de pagamento por serviços ambientais – como os créditos de carbono negociados através do REDD+ – são os homens das comunidades que costumam receber os benefícios através dos convênios assinados com as associações ou diretorias das organizações – em sua maior parte, homens. E, em caso de as mulheres receberem o dinheiro, em sua maioria através da entrega de incentivos para instalar plantações florestais, pode aumentar a violência doméstica, já que os homens buscam ter acesso a esses recursos. Pior do que isso, recai sobre elas a tarefa de evitar o corte de florestas (7), quando elas não são as responsáveis pelo problema. Dessa maneira, as mulheres entram no contingente de “mão de obra” barata em nível global que vigia a mercadoria (carbono, água, biodiversidade ou qualquer serviço ambiental criado) com a qual o capital possa lucrar. Elas têm que se deslocar por horas para receber o pagamento e devem ser não apenas guardas de suas florestas, mas também policiais de suas próprias comunidades, e se converteram em sujeitos-trabalhadoras exploradas (8) com uma remuneração mínima.
Em um cenário de crise econômica como a que estamos vivendo devido à sobreprodução e sobreacumulação, resultando em empobrecimento, endividamento, desemprego, etc., e de crise ambiental, com graves efeitos como a mudança climática, o desmatamento, a perda da biodiversidade, a poluição, etc. – sempre agudizam as desigualdades, afetando principalmente as mulheres e os povos indígenas. Na verdade, isso é redundante, já que, no capitalismo – e nas crises que ele desencadeia – os mais frágeis são evidentemente os mais vulneráveis. Aqui se aplica a tese da dupla exposição. As mulheres se expõem à exploração do capitalismo e em seguida à opressão das crises geradas por ele próprio.
De acordo com a feminista Silvia Federici (9), a ONU conseguiu redefinir a agenda feminista. A tentativa de incorporar o componente de gênero a instrumentos como o REDD+ é um exemplo disso, mas pode resultar em uma armadilha, na prática. Segundo a autora, as mulheres, ao receber remuneração por seu trabalho, em realidade não estão conquistando autonomia nem libertação. Não se trata de dizer não aos subsídios diferenciados para as mulheres, mas o capitalismo desvaloriza o trabalho de cuidado – e as mulheres cuidam de suas famílias, da propriedade rural, da floresta – e isso significa que se desvalorizam as vidas das mulheres para continuar desvalorizando os trabalhadores. Com o REDD+, o capitalismo está extraindo o trabalho de milhões de mulheres indígenas, é como uma mercantilização das emoções e das necessidades particulares das mulheres. É por isso que nenhuma “salvaguarda” poderá libertá-las.
Esta última tese é fundamental para entender por que devemos nos opor aos serviços ambientais e seus mercados. Uma mulher, ou uma comunidade, que recebe um subsídio por cuidar da floresta através do REDD+ está indiretamente permitindo que o capitalismo se reproduza e se fortaleça pela exploração dos trabalhadores que produzem mercadorias, extraem petróleo, trabalham em minas, etc. Com o pagamento desse subsídio, os Estados, os bancos, as empresas estão adquirindo direitos de seguir sobreproduzindo e sobreacumulando através da exploração dos trabalhadores e da natureza.
É um assunto fundamental que não está sendo levado em conta no debate sobre o REDD+, mas que é fundamental em uma agenda de defesa dos direitos das mulheres, de mudança climática, de florestas e de serviços ambientais.
Ivonne Yanez, Ação Ecológica, Equador
Email: ivonne@accionecologica.org
(1) BANCO MUNDIAL. Taller de Salvaguardas Sociales y Ambientales. Julio 14, 2012.http://www.bancomundial.org/es/news/feature/2012/07/14/taller-de-salvaguardas-sociales-y-ambientales-bolivia
(2) http://unfccc.int/resource/docs/2010/cop16/spa/07a01s.pdf
(3) Programa ONU-REDD 2014. El sendero hacia REDD+: El apoyo del Programa ONU-REDD a la preparación para REDD+, 2008-2013. Ginebra: El Programa ONU-REDD.
Ver, REDD: Una colección de conflictos, contradicciones y mentiras, WRM, 2014,http://wrm.org.uy/es/libros-e-informes/redd-una-coleccion-de-conflictos-contradicciones-y-mentiras/
(4) Salvaguardas Socioambientales de REDD+: una guía para procesos de construcción colectiva. Talía
(5) UN-PROGRAMME. Gender Equality & Women’s Empowerment: Women in REDD+.
(6) http://www.ienearth.org/global-alliance-of-indigenous-peoples-and-local-communities-on-climate-change-against-redd-and-for-life/
(7) http://jus.com.br/artigos/32871/o-programa-bolsa-floresta-e-os-sistemas-de-pagamento-por-servicos-ambientais
(8) Ver. WRM, Boletín 208. Noviembre 2014. “Mujeres y extractivismo”. http://wrm.org.uy/es/articulos-del-boletin-wrm/seccion1/por-que-la-resistencia-de-las-mujeres-frente-al-extractivismo-y-al-cambio-climatico/
(9) La escritora italiana ha señalado que el capitalismo "debe controlar todas las fuentes de la fuerza de trabajo, todas las fuentes que producen los trabajadores, y el cuerpo de la mujer es la primera fuente de esa riqueza". Ver. CALIBÁN Y LA BRUJA. Mujeres cuerpo y acumulación originaria.http://bibliotecalibre.org/bitstream/001/299/4/978-84-96453-51-7.pdf