Em um mundo caracterizado por crescimento lento, a África costuma se apresentar como o continente do futuro, com um crescimento médio próximo dos 5% e que permaneceu constante, inclusive durante a crise financeira mundial. Com efeito, o continente tem alto potencial, com recursos naturais diversificados e pouco explorados: recursos extrativos, madeira para construção, terras cultiváveis, etc. Contudo, é necessário desenvolver infraestruturas para que se possam esperar atrair investidores para o continente. Inspirando-se no exemplo do dinamismo econômico dos novos países industrializados da Ásia, da América do Sul e inclusive da África, vários países do continente aspiram a se converter em economias emergentes no prazo de una geração. Com a assistência de organismos financiadores ou de investidores privados, esses países embarcaram em amplos programas de construção de infraestrutura nos setores de telecomunicações, energia e transporte. A título de exemplo, em um relatório intitulado Infraestrutura na África, tempo de transformação (Africa infrastructure: a time for transformation, 2010), o Banco Mundial fez um diagnóstico da situação no continente. Entre outras coisas, o relatório constatava que mais da metade do aumento do crescimento da África podia ser atribuído às infraestruturas, e que essa percentagem aumentaria nos anos seguintes. Também calculava que, para dotar-se das infraestruturas de que necessitaria, o continente deveria realizar um investimento de USD 93.000 milhões de dólares por ano, um terço dos quais seria dedicado a manutenção.
Os impactos dessa estratégia sobre o meio ambiente e sobre os direitos das populações mais pobres do continente, as quais dependem com muita frequência dos recursos naturais para subsistir, nem sempre são levados em conta adequadamente, e é possível que as comunidades rurais terminem pagando um preço muito alto pelo desenvolvimento de infraestruturas. O objetivo deste artigo é ilustrar, a partir de dois projetos de infraestrutura localizados em Camarões, algumas de suas implicações tentaculares e os riscos associados a elas.
O oleoduto Chade-Camarões (1)
Construído a partir do ano 2000 para transportar o petróleo bruto produzido no Sul do Chade (bacia de Doba) até Kribi, na costa atlântica de Camarões, o oleoduto de mais de 1.000 km era o projeto de infraestrutura mais importante executado até então na África Subsaariana. Os países que recebiam esse investimento, Camarões e Chade, não tinham nenhuma experiência na realização e no monitoramento de estudos de impacto ambiental e social para projetos dessa envergadura. Devido à participação do Banco Mundial e seu braço privado a Corporação Financeira Internacional, sócios financeiros do projeto, os critérios aplicados ao estudo de impacto, ao regime de indenização da população autóctone, aos mecanismos de recurso, etc., tinham sido os do Grupo Banco Mundial. E apesar da atenção especial que a opinião pública internacional prestou ao projeto devido às polêmicas que cercaram as etapas de preparação e aprovação, foi possível constatar que as medidas de mitigação social e ambiental não haviam funcionado como previsto, e que essas falhas haviam ocasionado impactos negativos, às vezes não previstos, mas desde então irreversíveis. Como exemplo, podemos mencionar o que aconteceu à pequena comunidade de pescadores de Ebomé, aldeia do distrito de Kribi, onde se encontra o ponto de saída do oleoduto até o Oceano Atlântico. Tendo sido próspera em outros tempos, a comunidade viu sua economia totalmente arruinada quando se dinamitou um recife rico em peixes, situado a dois quilômetros da costa. Aparentemente, o recife não havia sido identificado durante o estudo de impacto do projeto, e sua destruição não resultou em indenização imediata, apesar dos protestos dos pescadores. Cinco anos mais tarde, criou-se um recife artificial nesse lugar, mas os peixes não voltaram. Deve-se acrescentar que, para a comunidade de Ebomé, o recife também era um local sagrado, residência dos “mami wata” ou espíritos da água, encarregados, entre outras coisas, de atrair os peixes e os colocar à disposição da aldeia. A destruição do recife teria provocado a cólera e a partida dos espíritos... Não se trata de um caso isolado e, mais de dez anos depois de festejar o primeiro barril de petróleo, continuam aparecendo muitos problemas não resolvidos devidos à construção do oleoduto. Após duas queixas apresentadas ao Painel de Inspeção do Banco Mundial (2), outras duas estão atualmente pendentes perante o Conselheiro-mediador da Corporação Financeira Internacional, o que demonstra que persistem os problemas ambientais e sociais (3).
Apesar de ser, ele próprio, um enorme projeto de infraestrutura, o oleoduto Chade-Camarões é só a coluna vertebral de uma vasta rede de oleodutos que serão construídos progressivamente em torno do lago Chade para levar o petróleo do interior do país até o Oceano Atlântico. Nenhuma das jazidas seria economicamente viável se exigisse um oleoduto individual para transportar o petróleo bruto da zona petrolífera até o oceano. Assim, a viabilidade econômica só se consegue compartilhando uma parte do custo de construção da infraestrutura de transporte. Essa é a razão pela qual o oleoduto entre Chade e Camarões é de grande interesse estratégico: ele permite fomentar a busca e a exploração de petróleo em todas as regiões situadas a una distância razoável de seu percurso. Sem dúvida, é por isso que o Banco Mundial deu uma ajuda decisiva à construção do oleoduto, concedendo financiamento, mas também o indispensável seguro contra o risco político, sem o qual o projeto dificilmente teria podido acontecer, em função da instabilidade política que reinava no Chade. Quase todas as novas licenças petrolíferas estão situadas em zonas vulneráveis: no interior do lago Chade, dentro do Parque Nacional de Waza, na planície inundável de Waza-Logone, em ambos os lados da fronteira entre Chade e a República Centro-Africana, etc. Esses projetos, assim como outro que está muito mais adiantado, situado ao sudeste do Níger (ver mapa), não foram objeto de estudos de impacto ambiental e social sob os critérios do Banco Mundial. Mesmo assim, já se chegou a um acordo entre o governo do Níger e o COTCO, um consórcio dirigido pela EXXON, encarregado da gestão do oleoduto. A execução desses projetos multiplicará os impactos ambientais e sociais, muito mais que o projeto inicial. Porém, no momento da construção do oleoduto, alguns dos acontecimentos que hoje se prevêem já estavam previstos, mas não haviam sido levados em conta nos estudos de impacto. Com efeito, as ONGs que realizavam o acompanhamento do projeto haviam observado que o oleoduto estava superdimensionado com relação ao volume das reservas existentes na bacia de Doba. Portanto, parece evidente que, desde o início, estava previsto que esse oleoduto serviria para transportar petróleo proveniente de outras jazidas, além da de Doba. Conscientes disso, e para evitar que o oleoduto facilitasse a realização de atividades petrolíferas perto da costa, onde seriam especialmente poluidoras, algumas ONG haviam exigido que se incluísse no contrato entre o Grupo Banco Mundial e os outros sócios (os Estados de Camarões e Chade e o consórcio dirigido pela EXXON) uma cláusula que lhes exigisse aceitar unicamente petróleo cuja produção respondesse às mesmas exigências sociais e ambientais do projeto inicial. O artigo 4.05 do acordo de empréstimo de 29 de março de 2001, entre a República de Camarões e o Banco Mundial, está redigido como segue: “O tomador do empréstimo deve garantir que todo o petróleo desenvolvido fora dos Campos de Petróleo da Bacia de Doba, o qual se propõe que seja transportado através de qualquer parte do Sistema de Transporte em Camarões, seja desenvolvido de acordo com os princípios estabelecidos no Plano de Manejo Ambiental no que diz respeito a análise e proteção ambiental, consulta, divulgação de informações, reassentamento e compensação, e com os processos jurídicos e administrativos equivalentes especificados neles e aplicados em relação ao petróleo desenvolvido nos Campos de Petróleo da Bacia de Doba”.
Em 30 de outubro de 2013, os governos de Níger e Camarões assinaram um acordo para transportar os 324 milhões de petróleo bruto da jazida de Agadem, no Níger, pelo oleoduto entre Chade e Camarões. O governo do Níger construirá um oleoduto de 600 km desde a jazida petrolífera até o ponto de ligação com o oleoduto existente (4). Esta situação dá a infeliz impressão de que os promotores do oleoduto fizeram promessas que não tinham intenção de cumprir, só para conseguir que se construísse a infraestrutura principal, a partir da qual se poderiam realizar as outras sem necessidade de obter novos financiamentos restritivos de agências públicas internacionais.
A ferrovia Congo Norte-Kribi e o porto de águas profundas de Kribi
Embora se trate de duas infraestruturas distintas, é possível considerar que fazem parte de um complexo integrado, construído por entidades diferentes, mas que apontam a um mesmo fim: conectar com o Oceano Atlântico às profundidades da floresta equatorial e suas ricas jazidas.
A ferrovia para um trem de alta velocidade faz parte do projeto de exploração das jazidas de ferro de Mbalam (Camarões) e Nabeba (Congo) (5) no coração da selva equatorial e do TRIDOM, maciço florestal localizado entre Camarões, Gabão e a República do Congo. Essas concessões mineradoras afetarão espaços florestais, alguns dos quais abrigam uma biodiversidade excepcional e fornecem habitat e sustento a numerosas comunidades, enquanto outras estão destinados à exploração florestal em grande escala. Essa ferrovia de pouco mais de 500 km se dedicará a transportar o minério de ferro das duas concessões de exploração até o porto de Kribi. Como se vê no mapa, a parte meridional de Camarões e o norte do Congo e do Gabão têm abundantes jazidas de ferro e outros minérios, cuja exploração seria facilitada pela presença da ferrovia. Também aqui, como no caso do oleoduto, a partir de uma infraestrutura básica, será desenvolvida uma rede de vias secundárias para unir varias concessões dispersas à via principal que vai do Congo ao oceano e facilitar a exploração de recursos minerais da zona florestal em torno ao equador. Também aqui, os estudos de impacto se limitaram a analisar a zona de mineração e a ferrovia principal, sem levar em conta todas as outras infraestruturas que se somarão inevitavelmente às já realizadas.
O que esses dois exemplos nos ensinam?
Os ensinamentos podem ser vários, mas nos limitaremos a mencionar alguns.
1. As infraestruturas planejadas são muitas, mas nem todas têm a mesma importância: algumas acarretam mais destruição do meio ambiente e violações de direitos do que outras; do mesmo modo, algumas são mais estratégicas, ou seja, servirão de base ao desenvolvimento de muitas outras.
2. Embora tenha melhorado desde a construção do oleoduto, a regulamentação sobre estudos de impacto ambiental e social continua sem se adaptar à complexidade cada vez maior dos projetos, sobretudo os relacionados à construção de grandes instalações e à exploração de recursos naturais – que implicam a organização de uma coabitação de duração muito longa com as comunidades, e põem em perigo as bases de sua existência e seus direitos culturais.
3. Produz-se una fragmentação do estudo dos impactos ambientais e sociais que não permite medir os verdadeiros impactos cumulativos dessas infraestruturas. A fragmentação relativiza as repercussões desses investimentos sobre as comunidades e o meio ambiente, tornando-as mais aceitáveis.
4. O Estado participa do funcionamento dessas infraestruturas para garantir a competitividade, vantagem indispensável para atrair investimentos. Para consegui-lo, endivida-se, e quem ganha são as multinacionais, porque veem facilitadas suas atividades de exploração dos recursos naturais. O pagamento da dívida ficará para a cidadania. Porém, as empresas levam a maior parte das receitas geradas pela exploração de recursos. E a parte correspondente ao Estado se divide de maneira desigual, contra os mais pobres, que são justamente quem mais sofre as consequências da construção de infraestruturas. No caso de Camarões, por exemplo, vemos um re-endividamento massivo com essa finalidade, principalmente diante da China. É mais do que provável que se lance mão dos recursos naturais para pagar essa dívida.
5. Esses empreendimentos têm um custo especialmente alto para o clima: além das emissões de gases de efeito estufa diretamente associadas à construção de infraestruturas, devem-se considerar as que proveem da exploração de recursos e, no caso do petróleo, de sua utilização.
6. Na falta de um planejamento adequado, esses empreendimentos de infraestrutura imporão limitações aos futuros esforços de ordenação territorial. Eles acabam não sendo rentáveis para todos, e ainda menos para os mais pobres. Além disso, são particularmente nefastos para o meio ambiente e, embora feitos em função do “desenvolvimento”, cabe pensar que, no longo prazo, trarão mais problemas do que soluções.
Samuel Nguiffo, CED em Camarões,
snguiffo@cedcameroun.org; snguiffo@yahoo.fr
(*) Este artigo foi publicado originalmente no boletim 203 do WRM, de junho de 2014.
(1) Para informações referentes ao projeto, ver o site http://ewebapps.worldbank.org/apps/ip/Pages/AllPanelCases.aspx.
(2) O Painel de Inspeção é um mecanismo de recurso independente, aberto a comunidades e indivíduos afetados negativamente (ou que possam chegar a sê-lo) por projetos financiados pelo Banco Mundial. http://ewebapps.worldbank.org/apps/ip/Pages/Home.aspx. Para informações acerca dos dois casos apresentados ao Painel de Inspeção sobre o projeto petrolífero e o oleoduto Chade-Camarões, ver http://ewebapps.worldbank.org/apps/ip/Pages/ViewCase.aspx?CaseId=52 e http://ewebapps.worldbank.org/apps/ip/Pages/ViewCase.aspx?CaseId=59.
(3) Para informação referente aos casos em análise perante o conselheiro mediador da Corporação Financeira Internacional, ver: http://www.cao-ombudsman.org/cases/case_detail.aspx?id=168, http://www.cao-ombudsman.org/cases/document-links/links-168.aspx, http://www.cao-ombudsman.org/cases/case_detail.aspx?id=179, http://www.cao-ombudsman.org/cases/document-links/links-179.aspx.
(4) http://economie.jeuneafrique.com/regions/afrique-subsaharienne/20378-le-brut-nigerien-transitera-par-le-pipeline-tChade-cameroun.html.
(5) Sobre este projeto, ver https://sundanceresources.com.au/IRM/Company/ShowPage.aspx/PDFs/2783-99911791/PresentationCameroonTradeandInvestmentForum