É difícil analisar o assunto dos direitos indígenas na África sem envolver-se com a questão da condição do estado, e é impossível abordar essa última sem considerar suas duvidosas origens. A empresa colonial na África, marcada pela dominação e anexação de território, foi guiada por Leopoldo, o monarca belga e Bismarck, o chanceler alemão. Atingiu seu auge na conferência de Berlim de 1884, que foi convocada evidentemente para regular as relações comerciais entre potências européias, mas acabou legislando a partição da África. O resultado foi o desmembramento do continente em 53 estados multiétnicos e ímpares sem qualquer base em racionalidade científica ou social, salvo a de resolver as controvérsias territoriais entre os colonizadores. Isso com certeza da crédito ao movimento em desenvolvimento para a unificação da África.
O colonialismo se baseou na crença etnocêntrica que a moral e os valores do colonizador europeu eram superiores aos do africano colonizado. Envolveu completa discriminação racial vinculada a teorias pseudocientíficas que eram apoiadas pelo entusiasmo religioso cristiano dos séculos 17 e 18.
O estado post colonial na África, emergindo desse artifício colonial, está cheio de debilidades que se têm manifestado em sérios conflitos étnicos, governança pobre, desigualdades injustificadas e pobreza crônica. Os direitos indígenas na África devem ser avaliados e afirmados a partir desse contexto.
Direitos e povos indígenas na África
Apesar de que é inegável que o Ocidente devastou e saqueou o continente todo através de escravidão, colonialismo e neocolonialismo, a desvantagem desproporcionada dispensada por essas forças sobre algumas comunidades na África é veementemente negada. Por que é tão difícil apreciar que os Maasai, que perderam mais de um milhão de acres de terras de pastagem no vasto Vale Rift do Quênia em mãos dos britânicos hoje constituem uma das comunidades mais pobres do país? Exige um bicho-de-sete-cabeças apreciar que a expulsão dos Batwa dos Parques Nacionais de Bwindi e Mgahinga em Uganda para facilitar a proteção do gorila de montanha, uma atração turística chave, tem levado à quase dizimação dessa comunidade de caçadores-coletores? É preciso perguntar o que contribui com a penúria dos Herero na Namíbia, aos que os alemães mataram em massa e usaram como porquinhos da Índia em finais do século 20?
A pior parte do pesadelo é que em vez de facilitar a reconstrução da ordem política e econômica da África, a partida dos colonialistas marcou o começo de um novo conjunto de dominadores que, aproveitando os instrumentos e instituições do estado colonial, procederam a espoliar e saquear o continente de seus recursos e fecharam completamente a porta para uma justiça restituitória.
Os elaboradores de políticas públicas contemporâneos na África ignoram a vergonha do colonialismo e fazem tentativas vigorosas de construir uma realidade baseada no ‘interesse nacional’ em vez de em buscas comunitárias, que consideram provinciais e portanto sectárias.
O fato de que algumas comunidades se tenham negado a alinhar seus interesses com as prioridades do desenvolvimento nacional é percebido como não assumir a responsabilidade e demandas de progresso. Uma análise crítica dos direitos indígenas e beneficiários demonstraria a falácia dessa objeção.
Em primeiro lugar, os direitos indígenas são baseados na noção geral da universalidade de direitos dentro de um contexto multicultural, conforme endossado pela Declaração de Viena em 1993. Essa declaração reafirmou inequivocamente a dignidade inerente e contribuição única dos povos indígenas com o desenvolvimento e pluralidade da sociedade, e exigiu sua inclusão completa na vida do estado.
Em segundo lugar, os direitos indígenas devem ser percebidos como igualdade substantiva facilitadora, espalhando luz assim para um grupo de pessoas não atingidas antes pela premissa transformadora da Declaração Universal de Direitos Humanos. Apesar de que a não discriminação é considerada como um jus cogens (norma imperativa do direito internacional), [3] o fato de que é ainda difícil atingir a igualdade por todos os meios, que os grupos marginalizados, sejam mulheres, crianças, minorias ou povos indígenas, devem perseguir, estratégias que vão além da igualdade formal para atingir a promessa de dignidade para todas as pessoas.
Em terceiro lugar, a concepção coletiva de direitos geralmente parece ser filho de um deus menor dentro de um sistema de direitos humanos que tem historicamente corroído os direitos civis e políticos contra direitos econômicos, sociais e culturais. Os direitos coletivos, que são centrais para a luta dos povos indígenas do mundo inteiro, têm sofrido de ser mal articulados, o que tem feito com que não fossem considerados como a norma. Graças ao artigo 27 da International Covenant on Civil and Political Rights – ICCPR (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos) e à progressiva jurisprudência que tem surgido do Comitê de Direitos Humanos sobre este artigo, muita base tem sido providenciada para a proteção de direitos de grupos à terra e ao desenvolvimento, entre outras coisas. A grande variedade de direitos de solidariedade, estabelecidos de acordo com a African Charter on Human and Peoples’ Rights (Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos) (doravante “carta”), o que se presta à causa dos povos indígenas, se deve a Keba M’Baye, o jurista senegalês. Sua apreciação da dinâmica da sociedade africana inspirou o documento.
O entendimento moderno do termo ‘povos indígenas’ se focaliza na experiência vivida de marginalização, discriminação, diferença cultural e auto-identificação, em linha com a prática emergente da comissão.
A noção de povos indígenas na África também se superpõe com o conceito de direitos das minorias, outro termo problemático mas menos controvertível no continente.
A oposição da África à adoção de mecanismos que estabelecem padrões e normas para os povos indígenas tem sido informada em grande medida por concepções erradas e mitos. Em 2006, uma arremetida sobre o Rascunho de Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, liderada pela Namíbia e Botsuana dentro do grupo africano nas Nações Unidas fez com que a Assembléia Geral adiasse sua decisão sobre a declaração, deixando em suspenso assim o reconhecimento substantivo dos direitos indígenas de acordo com o direito internacional. Quando a assembléia de chefes de estado e governo da União Africana se reuniu em Addis Ababa um ano depois, eles justificaram a posição do grupo africano, baseados em que os direitos indígenas conforme elaborados na declaração afetariam a integridade territorial. A questão que deixa perplexos a muitos é se os Batwa em Uganda, os Endorois no Quênia ou os Bushmen em Botsuana têm intenções de criar seus próprios estados separados. Não é óbvio que o direito à autodeterminação procurado por esses grupos é um que pode empoderá-los e levar a seu reconhecimento e participação melhorada nos assuntos públicos? A comunicação Katanga c/Zaire de 1976, que estabeleceu que uma variante de autodeterminação que assegura a inclusão de grupos marginalizados dentro de um estado é consistente com o princípio de integridade territorial, foi reiterada quase 20 anos depois na decisão Ogoni c/Nigéria da African Commission on Human and Peoples’ Rights (Comissão Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos).
O termo ‘povos indígenas’ deveria portanto ser utilizado de forma prática, para atrair a atenção e aliviar a particular forma de discriminação que sofrem as comunidades. No contexto africano, essas comunidades são quase sempre nômades ou de caçadores-coletores. Identificando-se com o termo, elas sentem que as particularidades de seu sofrimento podem ser melhor articuladas e podem prestar-se para a proteção da lei de direitos humanos internacionais e padrões morais.
Um grito na escuridão: vivendo à margem
Grupos que se identificam a si mesmos como indígenas vivem uma existência periférica. A maioria dos governos na África não têm desagregado dados ou indicadores para monitorizar o estado social, econômico e político dos povos indígenas. Como podem seguir o progresso para atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio se os mais pobres dos pobres não são nem devidamente reconhecidos? Uma preocupação importante é que muitos estados se focalizarão na linha de base de atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, em vez de o assunto de quem os atinge ou como. Esse risco foi apontado no Relatório de Desenvolvimento Humano de 2003.[5]
Consideremos os Twa em Burundi, Ruanda, RDC e Uganda, por exemplo. Seu estilo de vida e a taxa de desmatamento têm feito com que se desloquem por décadas, deixando-os vulneráveis -fracassando nos craques de um sistema social e legal moderno que normalmente garantiria a posse tanto de suas terras quanto de seus meios de vida. A crescente pressão para preservar as poucas florestas tropicais remanescentes nos países mais densamente povoados da região dos grandes Lagos significa que se acharão excluídos de seus hábitats tradicionais. O estado de Ruanda tem esticado durante décadas seu controle sobre as áreas de florestas, guiado pela necessidade de políticas de conservação mais protetoras, o crescimento da indústria do turismo e as preocupações com a segurança ao longo de suas fronteiras com a RDC, Burundi e Uganda. Os Batwa têm sido os mais afetados por essas medidas, que os têm afastado de seu estilo de vida tradicional e meios de ganhar-se a vida. Eles têm sido incapazes de fazer uma transição bem sucedida para uma vida sedentária e uma economia de mercado.
A maioria das comunidades indígenas, incluindo os Twa, nunca foram compensadas depois de serem expulsas das ‘áreas protegidas’ ou ‘reservas do estado’ nas que costumavam viver, devido à sua tradicional marginalização e a quadros legais e de política defeituosos. Em decorrência disso, suas condições de vida se têm degenerado ainda mais. Hoje, a maioria dos Batwa têm uma existência chocantemente empobrecida. Um relatório recente do Forest Peoples Programme prediz que os Twa estão em perigo de extinção, a menos que se adote uma ação massiva e concertada para reverter sua declinação.
Esse é o estado de muitos outros grupos de povos indígenas, tanto pastoris quanto caçadores-coletores, desde os Barabaig na Tanzânia até os Tuareg no Mali.
O caminho menos percorrido
Os direitos indígenas, evitados por políticos no continente inteiro, têm achado consolo em um improvável setor: o poder judiciário. Considerados incorrigivelmente corruptos e ineficientes, os poderes judiciários no continente inteiro ainda não são reconhecidos como bastiões de justiça para os débeis. É aqui que a luta para o reconhecimento e respeito pelos direitos indígenas tem sido sacudidos mais vociferadamente. Desde Botsuana até Quênia, da África do Sul até Uganda, os tribunais têm virado o teatro para dramatizar a situação dos povos indígenas e a escala completa de seu desamparo. No Quênia, um bode sem dentes foi apresentado para persuadir um tribunal de alegações de genocídio ambiental perpetrado contra a comunidade indígena Il Chamus. Em Botsuana, centenas de membros da comunidade Basarwa, vestidos com seu colorido vestiário tradicional, suportaram uma audiência de 200 dias para demonstrar que eram realmente um grupo reconhecível, contrariamente à afirmação do estado. Os procedimentos judiciais têm sido usados com diferentes resultados para procurar a recuperação de terras para um grupo indígena na África do Sul, deter o deslocamento do estado dos Ogiek da floresta de Tinet no Vale Rift do Quênia, procurar a provisão de serviços sociais para os Benet em Uganda, deter uma companhia mineradora multinacional de procurar uma concessão de terra na área de Magadi do Quênia para a produção de carbonato de sódio, e garantir direitos da linguagem na Namíbia.
Desapontadamente, os governos africanos têm sido relutantes apoiar abertamente as decisões de seus próprios poderes judiciários. O governo de Botsuana, por exemplo, eludiu a decisão de seu tribunal constitucional e negou-se a permitir aos Basarwa retornar a seus meios de vida baseados na caça na Reserva de Caça de Kalahari Central. Um ano depois, o tribunal constitucional queniano manteve que um distrito deveria ser criado para os Il Chamus em Baringo para garantir sua participação na criação de políticas, mas não foi adotada qualquer ação. Uma situação similar prevalece em Uganda, onde dois anos depois de que uma sentença de deferimento tivesse sido proferida permitindo aos Benet direitos para pastar e cultivar a terra que ocupam, não tem havido qualquer ação pela administração para apoiar a decisão do tribunal. Em um continente que professa respeito pelo domínio da lei como um princípio central de sua ordem constitucional, o fato de que decisões judiciais não sejam implementadas, é um zombadora acusação dos compromissos da África com a boa governança e os ideais democráticos.
Sem desanimar-se, os grupos indígenas têm adotado mecanismos regionais para desenvolver precedentes de estabelecimento de padrões sobre direitos indígenas, mas suas tentativas ainda devem frutificar. Em 2006 a reclamação de terras dos Bakweri contra o governo camaronês foi derrotada quando a comissão declarou que a comunicação era inadmissível. Os povos indígenas na África esperam contendo a respiração a decisão da comissão a respeito da comunicação de Endorois contra o governo queniano, que procura a restituição de território ancestral.
A mídia, atrasadamente, tem feito sua entrada nessas dramáticas cenas e começado a destacar a loucura do não reconhecimento da situação das comunidades indígenas na África, permitindo o público africano e os criadores de políticas considerar sua difícil situação. As principais organizações da sociedade civil como por exemplo ActionAid e CARE em Uganda têm começado a exigir a atenção do Estado para os direitos indígenas como meio de atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. O surgimento de organizações como por exemplo o Centre for Minority Rights Development no Quênia e o Indigenous Peoples of Africa Coordinating Committee (IPACC) na África do Sul, dedicaram-se exclusivamente à luta pelos direitos indígenas na África, também está ajudando a outorgar visibilidade a esses assuntos.
Boas notícias, difíceis de conseguir, estão emergindo devagar. Países como a África do Sul e Camarões têm dado o corajoso passo de começar processos para ratificar a Convenção 169 da OIT, que estende um regime de direitos substantivos para os povos indígenas, incluindo o direito ao consentimento livre, prévio e informado com relação a processos de desenvolvimento em terras indígenas.
Ainda não fora de perigo…
As lutas dos povos indígenas para o reconhecimento de seus direitos devem ser consideradas dentro do contexto do desenvolvimento de sociedades multiculturais na África, onde diversas identidades contribuem com o bem-estar de todos. Sem essa mudança de paradigma, os direitos indígenas continuarão sendo percebidos negativamente, como instrumentos de provincianismo e divisão. No entanto, para atingir essa mudança, a África deve levantar-se para o desafio de sua própria identidade. Até esse momento, será um ‘ainda não uhuru'(*) para os grupos indígenas na África.
(*) “Ainda não Uhuru” significa que a independência pela que lutava o povo queniano ainda não tinha sido atingida. Provém do título de um livro escrito pelo primeiro vice-presidente do Quênia, o falecido Oginga Odinga, que observou que apesar da independência declarada do país, o governo liderado por negros era tão opressivo quanto o governo colonial.
* Extraído de: “The rights of indigenous peoples in Africa”, por Korir Sing’Oei Abraham, Centre for Minority Rights Development (Cemiride); o artigo completo foi publicado por Pambazuka em 13-11-2007 e está disponível em http://www.pambazuka.org/en/category/comment/44413